Entre os que pensam e os que não pensam

Entre os que pensam e os que não pensam
O que há de mais importante nesse momento é tentar não cair em transe e, acordar, com cuidado, os que estão (Ilustração Victor Mosquero/Reprodução)

 

A possibilidade de que a democracia brasileira dê espaço ao autoritarismo de Estado no dia 28 de outubro de 2018 tornou-se um pesadelo na vida de milhões de pessoas. Fragilizada por tantas violências sofridas, a democracia perdeu a pouca consistência que tinha desde os anos 80 quando foi autorizada pelo regime militar e, de fato, pode agora dar o aval para sua própria destruição, colocando no poder uma estranha proposta autoritária.

É a própria democracia, portanto, o que está posto à prova em um momento como esse.  Todos já perceberam a autocontradição que pode ser realizada pela via coletiva do voto. Digo “todos” em um sentido retórico. Não há essa unidade. Tampouco se pode compreender o fenômeno em jogo pela ideia de uma polarização pura e simples.

Nesse momento, a polarização entre “esquerda” e “direita” sobre a qual muitos falam, tornou-se secundária perto da oposição entre os que sabem o valor da democracia e os que não a valorizam.

Um amplo espectro que vai da esquerda à direita, passando por um centro amplo e variado se posiciona pela democracia, enquanto uma parcela da população desdenha dela. De um lado, estão os autoritários de raiz, digamos assim, por pertencerem às elites econômicas. De outro, aqueles que por muitos motivos querem se aproximar dessas elites mesmo que seja por imitação de suas ideias e discursos. Há também aqueles que se sentem desdenhados pela democracia e, de algum modo, pretendem se vingar dela. É por isso que muitos votam como piada, como acinte, como deboche.  São os mesmos que dizem que “querem ver o circo pegar fogo”. Há nesses grupos quem não imagina que possa ser queimado juntamente com o fogo que estimula. Mas há também quem, mesmo sabendo que pode ser aniquilado, entrega-se a uma perspectiva niilista.

A incitação à matança

Jair Bolsonaro alimenta perspectivas diversas, mas sobretudo desse último grupo. Daqueles que, acreditando ter o monopólio da violência, pregam violência, e que, no limite, mesmo sendo vítimas da violência que pregam, não se importam em continuar a pregá-la. O discurso da incitação à violência é o mal radical do momento que se mistura ao mal banal, praticável por qualquer um. Viola-se um mandamento religioso e cultural que é o “Não Matarás” com imensa tranquilidade.

O discurso de ódio evolui para a incitação à matança. Pelo WhatsApp, uma rede social de viés subterrâneo, a funcionar em uma lógica de segredo, circulam estímulos a formar grupos de extermínio. De se partir para a rua com as armas que se tiver a mão. Na ausência de armas de fogo, barras e facas.  O discurso da incitação explícita à violência está longe de se mostrar como um mal menor em nome de um bem maior. É o puro gozo da aniquilação do outro o que está sendo conclamado. A retórica dos niilistas bolsonaristas não envolve uma proposta para o país. Seu discurso é o da simples liberação e incitação da ação violenta. É o mal pelo mal, o ódio pelo ódio. Não há amor por ninguém. Nem promessa de um amor maior que há de vir.

A grande polarização do momento está, portanto, entre o consciente e o inconsciente. Entre aqueles que se mantém despertos e aqueles que estão mergulhados em um estranho sono. Trata-se, na verdade, de um limiar como em um delírio, quando o sujeito fica situado entre o sonho e a vigília. Zona cinzenta da fantasia. É nesse limiar que as pessoas alucinam ou simplesmente vivem crenças paranoicas, aquelas que não admitem a presença de perspectivas diferentes. Que o voto tenha um papel importante nesse delírio, que ele possa aniquilar a presença da diferença, é o que se promete nesse momento e junto, é a própria auto-aniquilação de quem sonha com a aniquilação do outro, o que está em jogo.

Podemos nos perguntar se, caso estivessem conscientes, os indivíduos agiriam do mesmo modo? Um sonâmbulo colocaria seu pé no abismo se estivesse consciente do seu ato? Talvez. Se, estando louco, precisasse provar que acima de tudo não está louco. O delírio é, portanto, mais grave, não basta mostrar que se trata de um delírio. A psicologia das massas já sabe como proteger-se das perguntas difíceis que expõem contradições.

Um sono dogmático

Como essas pessoas foram colocadas nesse estado? Como foi criada essa tal situação de torpor mental e emocional onde só cabe o ódio e a raiva? A ideologia é o sono dogmático criado no tempo no qual discursos prontos e falta de questionamento são a regra. Meios de comunicação de massa, púlpitos, televisões, celulares demais para todo lado, educação e cultura de menos ao mesmo tempo, e a ideologia como “consciência falsa”, como grande ilusão, instaura-se como realidade e como verdade. As fake news são naturalizadas em nome do ódio.

Nesse momento a ideologia dominante é representada pela crença de que há um “pai cruel e malvado” que é, ao mesmo tempo, o “salvador da pátria”. Esse salvador não tem nada de bom e respeitoso. Ele é aquele que tem coragem de “abater” o “inimigo”. Há muito tempo que não se trata apenas de um pai capaz de caçar e “matar bandidos” que ameaçam seus filhos, mas de um pai que livraria a todos de tudo o que lhes perturba. Não abateria os inimigos apenas, mas as ideias que esses inimigos representam.

Esse pai seria um salvador da pátria bem imediato, bem a mão. No caso, é alguém que “resolve” tudo falando. Nunca fez nada como político, mas fala e como fala. É um pai cruel e também é um falastrão. Tanto que muitos não acreditam no que ele diz e, mesmo assim, ou por isso mesmo, votam nele. Ele pratica o ato mágico de falar por seus filhos e, ao mesmo tempo, autorizar por meio dessa fala que eles mesmos façam o que ele promete dando-lhes a liberdade de um gozo antes proibido por leis fundamentais da civilização, como “Não Matarás”. Um pai que fala e que nunca fez nada além de gritar a gritaria da aniquilação e da morte. Um pai performático. Quem dera fosse apenas isso.

E esse pai que é capaz de aniquilar tudo pode ser justamente aquele que traga uma estranha paz. A paz dos infelizes, aquela de alguém que já se sabe subjetivamente morto, aquela que só se pode alcançar na morte realizada. A paz de quando já não se existe mais, quando cessa o pavor de ser quem se é. Assim, lança-se ao outro uma ameaça, uma agressão, um assassinato, no qual se pode até estar incluso. Mas isso é o de menos. No transe, se está livre de produzir uma vida rica. Se está livre de ter que olhar para a própria miséria subjetiva e, muitas vezes, também objetiva. Vingando-se do outro, vinga-se da própria existência vivida na base do ressentimento. A vida aniquilada do outro, tratada como a vida que não importa, apenas reproduz uma vida subjetiva, própria, que não importa.

Por estranho que possa parecer, para quem está profundamente doente das emoções, a promessa da morte funciona bem. Ela age contra angústias imensas trazidas pelo desejo insuportável. Melhor não desejar e acabar com tudo antes que se possa desejar.

Vingança

Hoje, quem sofre humanamente é aquele que acredita na democracia, os demais vivem em transe hipnótico anestesiados como se fossem bárbaros em guerra, prontos à matança estimulados por um pai cruel. Esse pai não pode ser visto como um louco, por isso não deve aparecer muito, ir a debates. Não se deve perceber sua inabilidade, seu delírio, sua inconsistência, sua torpeza. Mas, sobretudo, o pai da horda de assassinos reais ou potenciais, deve permanecer “sagrado”, mítico, intangível.

Para isso, para sua “sacralização”, serve algo como um atentado. Especula-se sobre a doença, a saúde, o ferimento, e há quem até duvide da veracidade do atentado a Jair Bolsonaro. Mas é fato que ele se sacralizou ainda mais a partir daquele evento. Depois de vitimizado, não deveria mais aparecer no mundo humano senão em raras circunstâncias epifânicas. No sul do país, Lula preso injustamente, produz o mesmo efeito. Vitimizado ele é ainda mais amado, pois o sentimento da injustiça, bem como o “enfraquecimento da vítima” desperta sentimentos de identificação. Mas Lula não era um pai cruel. Era materno demais, amoroso demais e, por isso mesmo, odiado, além de tudo por presentar a “paz e o amor” em oposição à guerra e ao ódio bolsonarista.

Não se deve perceber que, ao mesmo tempo, o grande pai cruel não se responsabiliza pela violência que estimula, como convém a um cínico.  Não se deve, portanto, deixar que seus eleitores percebam que é um cínico, pois deixaria de ser um grande pai cruel e tornar-se-ia apenas um frouxo.

A questão acerca do desejo de quem vota contra uma sociedade de direitos e até mesmo contra os próprios direitos pode ser analisada à luz do inconsciente atuando nesse momento. Há um “princípio de morte” no ar. Esse princípio é o da destruição, do medo, do abandono, do ressentimento, do ódio e da vingança. A imagem do pai cruel é apenas a do sujeito que autoriza a tudo isso.

Por isso, o que há de mais importante nesse momento, é tentar não cair em transe. E, do mesmo modo, acordar aqueles que estão mergulhados no transe hipnótico com muito cuidado. Se acordarem sem saber o que fazem, sonâmbulos podem cair em pânico.

A atitude que a nossa ética democrática nos pede nesse momento é que  estejamos prontos para ampará-los. Mas só poderemos fazer isso se estivermos vivos. E essa é a questão mais dura que recai sobre os que permanecem em vigília.


> Leia a coluna de Marcia Tiburi, toda quarta-feira, no site da CULT

(4) Comentários

  1. Quem prega o ódio é a esquerda .. e quem levou uma facada foi Bolsonaro . A verdadeira ameaça á democracia, certamente vem da parte de quem apoia o regime ditatorial que se instalou na pobre Venezuela .. um lugar onde seres humanos comem lixo e carne podre para sobreviver ..

  2. Texto lúcido. Pena que os defensores do grande pai cruel estão em todos os lugares para defendê-lo de qualquer opinião contrária. Isto é fascismo.

  3. Bom texto! “Pai cruel e malvado” e “performace”; são termos que estão no texto e que se referem a Bolsonaro, e que também têm relação com o “grande mito” Hitler. Na Alemanha os fanáticos nazistas, fossem militares ou civis, defenderam seu mito e salvador da pátria de modo incrível, deram as próprias vidas pelo psicopata que pregava o ódio e a morte. Na segunda guerra, mesmo a Alemanha sendo bombardeada por França, por um lado, e URSS, por outro, a maioria dos alemães defenderam cegamente os ideais nazistas. Foi um verdadeiro suicídio de milhões de fanáticos que acreditavam que Hitler iria por a Alemanha acima de tudo. Qualquer semelhança entre o mito Hitler e o mito Bolsonaro não é mera coincidência.

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