A esquerda precisa falar sobre a ditadura cubana

A esquerda precisa falar sobre a ditadura cubana
Foto: YAMIL LAGE

 

Cuba, 11 de julho

Os cubanos saíram às ruas em centenas de milhares no domingo, 11 de julho, gritando por liberdade e mudança de regime, contra o comunismo e pela saída imediata dos atuais dirigentes do sistema político que está rodando por lá há 62 anos.

Sei que é difícil acreditar em informações provenientes da Ilha, uma vez que o jornalismo é parte da guerra ideológica, mas estamos na era dos telefones celulares e das mídias digitais e não é preciso mais que alguns minutos para alguém poder assistir a dezenas de vídeos feitos por pessoas comuns, que estiveram presente e testemunharam tanto os gigantescos e difusos protestos do domingo quanto a brutal repressão feita pelo regime. Diverge-se sobre o número de pessoas presas por conta dos protestos, mas é certo que o governo promoveu um apagão da internet de 48 horas nos dias seguintes e introduziu algumas palavras novas para a censura automatizada nas comunicações digitais. Assim como é certo que as ruas continuam controladas por militares e civis apoiadores do regime, que compareceram para a patrulha antiprotestos munidos de paus e bastões de baseball.

Desde o 11 de julho, o regime entrou em campo para a “guerra de narrativas”, que lá, como cá, é parte constituinte do conflito político. A blogueira e jornalista cubana Yoani Sanchez resume em três as tradicionais frentes de ataque do regime para emplacar a sua versão dos fatos. Primeiro, tentam minimizar o acontecimento, vendendo a ideia de que só algumas pessoas participaram dos protestos, apesar dos vídeos mostrando multidões gritando por liberdade e mudança de sistema político. Além disso, o oficialismo tenta retratar os manifestantes como delinquentes comuns, criminosos, um truque que conhecem muito bem os que viveram uma ditadura no Brasil. Por fim, o governo tenta vender a versão que diz que tudo isso foi financiado de fora, que tem pessoas que pagaram aos manifestantes, que nada foi autêntico. O presidente qualificou os manifestantes como vendidos ao imperialismo americano e como inimigos da revolução. Como veem, os mesmos truques de sempre, que se usa em toda parte do mundo para desqualificar os protestos de que não gostamos.

Nesse sentido, vem a calhar um tweet que recolhi de um anônimo: «Los dogmáticos de izquierda usan el término “pueblo” para obtener beneficio personal. Cuando la gente habla, dejan de ser “pueblo” para convertirse en golpistas».

 

Brasil, um golpe com data marcada

Cortemos para o Brasil. Nas últimas semanas são muitas as declarações do presidente da República ameaçando explicitamente as próximas eleições. No dia 9, declarou que entregará a faixa a quem ganhar a próxima eleição, mas tem que ganhar no voto impresso. A urna eletrônica que o elegeu não serve mais e será fatalmente manipulada contra ele, decidiu. Assim como suas fantasias persecutórias lhe revelaram, e ele o afirmou publicamente, que foram fraudadas tanto as eleições de 2014 quantos as de 2018.

Fundamento? As vozes golpistas que falam dentro da sua cabeça. Até as emas de Brasília sabem que Bolsonaro não recorre a qualquer evidência para justificar a sua pregação. Numa tentativa de explicar por que teriam sida fraudadas as eleições de 14, balbuciou um texto incompreensível, sem pé nem cabeça, enunciado com voz pastosa e olhar perdido. Parece discurso de bêbado. O vídeo está disponível para quem quiser conferir.

Bolsonaro quer apenas plantar uma dúvida sobre a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro pois sabe que provavelmente não ganhará a próxima eleição. Deseja um álibi preventivo para, como diz no futebol, “melar o jogo”. Com Trump não funcionou a ideia de, depois das eleições, gritar que foi roubado e que de fato é o presidente eleito. As instituições o expulsaram da Presidência. Prevenido, Bolsonaro trabalha com a hipótese de nem sequer haver eleições.

E foi assim que declarou, para quem o quisesse ouvir, e sem a menor compostura: “Corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”. Disse-o e o repetiu várias vezes nas últimas semanas.

Com todos os seus defeitos, os Estados Unidos são decididamente um país de governo civil, de forma que os militares não têm o golpismo como costume. Aqui é hábito que cultivam desde a origem da nossa República. Foi por isso que, no dia 7 de julho, uma lamentável nota dos 3 Comandantes Militares contra o presidente da CPI da Pandemia ressoou no país como uma ameaça direta ao Parlamento. Em que dia exatamente se decidiu que o as Forças Armadas são um dos Três Poderes da República e, pasmem, superior ao Legislativo, é um mistério. Certamente uma ideia tão espantosa nunca encontrou guarida em qualquer Constituição democrática. Para que a atitude de ameaçar o Congresso não pareça a comandantes militares a aberração que efetivamente é, temos que supor que nos quartéis brasileiros há uma outra Constituição, autocrática e não escrita, sendo ensinada aos oficiais.

Não contente com isso, contudo, o comandante da Marinha teve publicada em 9 de julho uma entrevista feita pela repórter Tânia Monteiro, do jornal O Globo, em que, inquirido sobre se “poderiam embarcar numa aventura golpista” respondeu categoricamente que “Homem armado não ameaça”. Ameaça é para fracos, entende-se, para quem não tem meios para cumprir o que prometeu. O que se infere da afirmação é que não se trata de reles ameaça, mas de uma promessa garantida.

Não sei se todos se deram conta, mas na semana passada se sacramentou no país o anúncio, não a ameaça, de um golpe de Estado.  Pelo menos foi assim que o entenderam seja o presidente do TSE, o ministro Barroso, quanto os presidentes da CPI, da Câmara e do Senado Federais, que reagiram ante a promessa de ruptura institucional do governo brasileiro com apoio militar. Mas o fato é que agora temos a peculiar circunstância de um golpe anunciado. Quer dizer: a) com data marcada – as eleições de 2022; b) uma condição já estipulada – há que ter voto impresso ou não tem eleição; c) com os meios a serem empregados já definidos – será “manu militari”, como todos os outros golpes de Estado que o precederam.

 

Temos ditadura de estimação?

Mas o que isso tem a ver com Cuba?

Bem, um golpe com data marcada deveria mexer, como nunca, com os brios republicanos dos democratas brasileiros. É preciso renovar a nossa convicção de que tudo faremos, os indivíduos e as instituições, para que esse país não volte a ser a uma ditadura. As nossas crenças em um Estado de Direito, a certeza de que não queremos abrir mão de qualquer uma das nossas liberdades políticas e civis, a afirmação de que não permitiremos a quem quer que seja o roubo do nosso direito a eleições livres e limpas, tudo isso precisa ser desempoeirado, confirmado em rituais coletivos e reafirmado em discursos. Ditadura nunca mais!

Mas aí, vieram os protestos populares em Cuba. A Ilha, curiosamente, continua desarmando as convicções democráticas de uma certa margem da esquerda brasileira. Ou porque é a encarnação romântica do seu sonho revolucionário de juventude ou porque esta gente conserva no fundo do coração convicções já desbotadas de que o socialismo até teria podido dar certo em Cuba se não fosse o maldito embargo americano. A Cuba do imaginário de certas esquerdas brasileiras lhes embota os sentidos de modo que, exatamente por isso, não conseguem ver o país real e as coisas que por lá se passam.

E foi assim que tivemos, na segunda-feira, um dia muito louco, com os bolsonaristas defendendo quem fala mal do governo e o desafia… mas só em Cuba, enquanto os paleoesquerdistas defendiam que não tem nada demais um governo liberticida e autoritário… mas só em Cuba. Em Cuba, os sinais se invertem. O que não serve para o nosso sonho de Brasil, à Ilha lhe cai muito bem.

Mas o que podia muito bem representar apenas a kombi dos hippie velhos da esquerda, sem real importância para as nossas certezas democráticas, revelou-se no dia seguinte ser muito mais que isso, porque os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, que não precisavam dizer qualquer coisas sobre os protestos populares em Cuba, resolveram, apesar disso, entrar no debate público. E o fizeram da maneira mais desastrada possível.

Em uma sequência de tuítes de estilo praticamente idêntico, e que pareceu combinada, ambos condenaram o embargo americano, como era de se prever. Mas, além disso, empenharam solidariedade ao presidente de Cuba, o que não deixa de ser inquietante para um partido que tanto se solidariza com “o povo cubano” que, no caso, está contra o seu governo. E, por fim, endossaram in toto a versão dos fatos para os quais o regime cubano procura comprador internacional, sem encontrar.

Dilma Rousseff foi inábil em interpretar o que estava acontecendo nas ruas brasileiras em 2013 e 14 e parece ter conservado a mesma inabilidade para ler os protestos desta semana em Cuba. No seu diagnóstico, parece um protesto sobre as consequências do iníquo bloqueio econômico e financeiro de Cuba pelos Estados Unidos. E só. Não há ali uma ditadura e as pessoas não estão gritando por liberdade e democracia.

Dilma condena o embargo e silencia inteiramente sobre o fato de que as pessoas em Cuba foram à rua enfrentar o regime porque não aguentam mais 60 anos de ditadura. Por fim, conclui: Manifesto meu apoio ao povo cubano e ao presidente Miguel Diaz-Canel. Se depender dela, os protestantes cubanos estão entregues à própria sorte;  Já para o presidente contra o qual se protesta, aquele abraço.   

Logo depois, foi a vez de Lula meter a mão nessa cumbuca. No primeiro de cinco tuítes minimizou e ignorou completamente o número enorme de vídeos mostrando o que por lá aconteceu nesses dias. “O que está acontecendo em Cuba de tão especial pra falarem tanto?! Houve uma passeata. Inclusive vi o presidente de Cuba na passeata, conversando com as pessoas”. Imagino o que se passaria no coração de um cubano ao ler isso neste momento. O presidente e os manifestantes estão em campos opostos, é impossível que Lula não tenha sido informa disso.

E continua. “Já cansei de ver faixa contra Lula, contra Dilma, contra o Trump… As pessoas se manifestam. Mas você não viu nenhum soldado em Cuba com o joelho em cima do pescoço de um negro, matando ele… Os problemas de Cuba serão resolvidos pelos cubanos”. Pois eu vi vídeos de garotos manifestantes (negros, claro, estamos em Cuba) cercado por policiais e apanhando até desmaiar no meio da rua. Lula também poderia ter visto alguns desses vídeos, se quisesse.

Por fim, houve o registro das únicas coisas que deixaram Lula e Dilma indignados no 11 de julho cubano: os americanos e seu embargo. “Os americanos precisam parar com esse rancor. O bloqueio é uma forma de matar seres humanos que não estão em guerra. Do que os EUA tem medo? (…) O Biden deveria aproveitar esse momento pra ir a televisão e anunciar que vai adotar a recomendação dos países na ONU de encerrar esse bloqueio”.

Os paleoesquerdistas vibraram, claro, pois podem reiterar a sua tese de que, naturalmente, o capitalismo é que não quer que Cuba seja um sucesso. “Cuba não pode dar certo, mostraria ao resto do mundo que há alternativa ao projeto neoliberal imperialista”, disse um. Outro aproveitou para mandar aquela indireta do bem aos intelectuais de esquerda que insistem em dizer que, sim, tem embargo, mas também tem ditadura: “É uma pena que muitos intelectuais confundam discutir política com ‘ser a favor ou contra países/regimes’”.

Em que isso nos alcança?

O fato é que, de repente, o regime democrático, que na semana passada parecia a luta mais decisiva das nossas vidas diante do golpe anunciado pelo bolsonarismo, agora não vale nada, é completamente desimportante, a única coisa que importa realmente é o sistema econômico, e o de Cuba só não funciona por causa da opressão imperialista americana. Assim, Dilma Rousseff e Lula, lastimavelmente, entregaram ao autoritarismo bolsonarista o argumento que ele queria e esperava para sair das cordas da acusação de golpista e pró-ditadura. Então, dizem, a questão para eles não é uma escolha entre democracia e ditadura, entre autodeterminação e golpe, mas entre esquerda e direita, eles são como nós, com o sinal trocado. Se a ditadura for de esquerda, não tem problema.

Ora, o embargo americano é uma iniquidade, nada há mais para se discutir aqui, somente para condenar. Por outro lado, sejamos honestos, o regime cubano já era uma ditadura antes dele. O embargo pode explicar a pobreza, a incapacidade do socialismo cubano de gerar riqueza, e até a duração do domínio dos Castros, mas não fez de Cuba uma ditadura. Se ainda não ficou claro para alguém no universo, foi o socialismo quem fez de Cuba uma ditadura. Ponto.

O socialismo, regime adotado pela Revolução em Cuba promove justiça social, sim, mas revelou-se um fracasso na entrega de igualdade e liberdade políticas. Sem liberdade política, pode-se ter tanta justiça social quanto se queira, mas este regime nunca será democrático. Sem a possibilidade de divergir de quem governa, sem Três Poderes Autônomos, sem opinião pública livre, sem que se possa viver como bem lhe aprouver, pode-se ter encarnação do sonho bolsonarista de uma teocracia ou do delírio socialista de uma sociedade economicamente igualitária, mas nunca uma democracia.

E o socialismo como regime econômico nunca rodou numa democracia como regime político, apesar de ter tentado muito entre 1917 e 1989. Nem conseguiu um regime político melhor do que a democracia que eles chamam de “burguesa”, como sempre prometeu. Só entregou ditaduras. Se tem alguém da esquerda democrática que ainda não entendeu isso, então essa pessoa não é realmente da esquerda democrática.

Condenar a ditadura cubana não é dar o braço a torcer aos bolsonaristas. Eles são totalitários, não se incomodam com ditaduras, só não as querem de esquerda. Querem no Brasil o mesmo regime político que há em Cuba, só não querem o mesmo sistema econômico.

Condenar a ditadura cubana não é servir ao imperialismo americano, mas servir ao povo cubano que não aguenta mais viver sem liberdade e sem autodeterminação política por 62 anos.

Condenar o regime cubano não é desconhecer que o socialismo, onde quer que tenha sido implantado, promoveu efetivamente igualdade social, mas só ao custo de roubar a igualdade política dos cidadãos e as suas liberdades.

Condenar ditaduras, quaisquer ditaduras, é mostrar que não abrimos mão da democracia, sob nenhum apelo. Caso contrário fica claro que uma parte da esquerda tem, sim, uma ditadura de estimação.

Ah, mas a ditadura, caso exista, é um problema dos cubanos, não nos caberia julgar, dizem. Bem, ninguém está propondo uma força expedicionária para redemocratizar Cuba, a China ou Arábia Saudita, mas nos cabe dizer, sim, que aqueles países são uma ditadura. No dia em que eu não for mais capaz de distinguir entre uma ditadura e uma democracia eu me declararei incompetente para julgar a vocação autocrática do bolsonarismo. Qualquer ditadura é nosso problema se a gente quiser ter moral para enfrentar o golpe que está sendo fabricado aqui. Só uma repulsa de qualquer ditadura, por princípio, nos dará superioridade moral aos golpistas que moram aqui ao lado.

A respeito da questão cubana, adoto um lema simples: “Só se fala, se for para falar mal”. Lula e Dilma não precisavam falar sobre Cuba, mas falaram, com entrega, e escolheram um lado, que não é o da população. E, para completar, silenciaram convenientemente sobre a ditadura contra a qual se protesta. Achei ambas as declarações um completo desastre político, ainda mais quando na nossa casa a usina do bolsonarismo funciona 24 horas por dia para fabricar uma autocracia novinha em folha para nós.

A esquerda não pode parecer que é complacente com ditaturas, porque isso nos desmoraliza. Aqui não tem “mas”, “contudo”, “todavia”. Certa esquerda precisa analisar e superar o seu “sintoma cubano”, pois isso já não é mais romântico nem perdoável. Ainda mais nas circunstâncias em que estamos enfiados.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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