arquivo cult | Pontualmente, às três da tarde

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Conta-se que pontualmente às três da tarde Kant fazia seu passeio pelos arredores de sua casa, em Königsberg. A hora era tão certa que os vizinhos acertavam o relógio, tão logo viam passar o autor das três Críticas.

Se a anedota pegou, foi por conta da quase obsessão com que Kant perseguiu o ideal sistemático, unindo as partes da filosofia em nome da sistematicidade da razão. Daí a objeção de Schopenhauer: será que a razão faz sistema, como o passeio diário do célebre cidadão de Königsberg?

A ideia do relógio reaparece nos Prolegômenos a toda metafísica futura (1783), ali onde Kant declara diz ter sido acordado do sono dogmático por Hume. Até ali, Kant dormia o sono de todos os que, de Platão em diante, abandonaram o mundo sensível e se aventuraram “no espaço vazio do entendimento puro” (CRP). E o que é notável: neste espaço vazio, para além da experiência possível, a razão dogmática perfazia um movimento coerente, o que explica sua longevidade até a época da crítica.

As filosofias dogmáticas, em suma, retiravam sua força persuasiva de sua vocação sistemática – a qual, embora sem isentá-las da severidade das conclusões da Crítica da razão pura acerca do que podemos conhecer, irá lhes assegurar alguma sobrevida no interior do próprio criticismo. É importante sublinhar esse ponto. Aos olhos de Kant, as filosofias do passado têm validade mesmo após a Crítica limitar nosso conhecimento à experiência sensível – mas isso, claro está, não pelos resultados que procuravam em vão apresentar como verdades demonstradas e irrefutáveis em torno do suprassensível. Sua validade deriva de que os objetos da especulação metafísica sempre foram Deus, liberdade, imortalidade – todos temas que a filosofia kantiana acolhe, não suprime.

Acrescente-se que esse acolhimento temático é motivado por uma simpatia formal que o kantismo mantém com a metafísica clássica. Pois, conforme o exame levado a cabo por Kant ao longo da Dialética da razão pura, imortalidade, liberdade e Deus são ideias originadas na regressão da razão do condicionado ao incondicionado, perfazendo um movimento que totaliza as partes e institui, em um plano irredutível à verificação, o inteiro sistema do conhecimento empírico. Aquelas ideias, enfim, respondem à exigência racional de que a experiência configure uma totalidade, do mesmo tipo que a vigente num organismo ou num corpo de teses solidárias entre si. Os dogmáticos só erravam ao hipostasiar o impulso totalizante da razão no incondicionado em si.

Nesta correção (menos de rumo que de perspectiva) resume-se a manobra crítica de limitar o conhecimento à experiência para assegurar o lugar da moral e da religião. A liberdade, compreendida como autonomia do agente em relação aos estímulos sensíveis, assim como as idéias de imortalidade da alma e de Deus têm origem na própria racionalidade, cuja exigência pelo incondicionado é avalizada pela primeira Critica. Que só conheçamos objetos que podem ser determinados na experiência não elide o fato de que devemos pensar o incondicionado. Ao estabelecer esse ponto, formulado nos termos da distinção entre conhecer e pensar, a primeira Crítica prepara o terreno para a moral, cuja edificação transcorre sob o signo da totalidade exigida pela razão.

Se, ao interditar a metafísica clássica na primeira Crítica, Kant não errou em reservar para o incondicionado um significado válido, é no âmbito da moralidade que essa decisão (que Hume não aprovaria) adquire todo seu alcance. Pois a moral será concebida pelo kantismo a partir da oposição entre a exigência racional pelo incondicionado, de um lado, e o conjunto dos estímulos sensíveis, de outro. Oposição que define o próprio agente como ser dotado de razão e, ao mesmo tempo, inscrito na cadeia de determinações que caracteriza a experiência sensível. Ao agir moralmente,humilho minha natureza sensível, restituindo a mim mesmo a condição de ser racional.

Essa recuperação, por sua vez, atesta a diferença entre a condição natural e a destinação racional do homem – o grande legado da moral kantiana. Nela Schiller viu um abismo cuja superação exigiria o recurso a um terceiro termo, a arte, capaz de mediar a relação entre ser e dever ser. O jovem Schelling retomou o dualismo inaugurado por Kant para caracterizar a finitude como registro no qual toda posição é, ao mesmo tempo, oposição, dotando desse modo a condição mundana de negatividade capaz de restabelecer, do ponto de vista prático, a identidade originária do Eu absoluto. O mesmo compromisso com a síncope inaugurada por Kant entre o racional e o sensível é afirmado pelos românticos: enquanto Schlegel irá definir a ironia como remédio contra a cisão metafísica entre o ideal e o efetivo, Novalis irá ver no humor o resultado de “uma livre mistura do condicionado e do incondicionado”.

Não bastassem estes aprofundamentos, a estrutura dualista representada pela distinção e mútua referência entre o normativo e o efetivo deu vez à bem conhecida objeção ao formalismo de Kant. A polaridade entre o efetivo e o normativo exprime-se como imposição absoluta da razão aos sentidos; daí críticos de Kant terem apontado que, ao agir, o homem moral kantiano afasta todas as considerações que poderiam advir da experiência efetiva em que se vê inscrito para conformar-se exclusivamente à exigência da razão posta na lei moral. Com efeito, a moralidade tira seu caráter prescritivo da síncope que a preside: Deus e as criaturas puramente racionais, a rigor, não agem moralmente, pois, para Kant, a moralidade toma sua medida do mesmo contraste que o agente tem de suprimir.

Eis por que o imperativo categórico foi interpretado como expressão de uma moral avessa à realidade, e o homem virtuoso apresentado por Kant, como alguém dotado de grandes intenções, mas incapaz de agir de fato, como um personagem oscilando entre o patético e o trágico.

A favor de Kant, porém, recordemos o vínculo entre o dever e as idéias de Deus e da imortalidade da alma, cuidando de não resumir sua moral à formulação da lei da razão. Bastará ter em vista esse vínculo (plausível, pois a razão perfaz sistema) para retrucar aos críticos do formalismo kantiano: “vocês partem do falso pressuposto de que Kant defenda o dever pelo dever, ignorando que as idéias de imortalidade e Deus, embora incognoscíveis, são reabilitadas por Kant na filosofia moral”. Agir moralmente é, com efeito, determinar a ação pela razão – a mesma razão cujo movimento totalizante a primeira Crítica apontou como legítimo, embora irredutível a toda e qualquer determinação empírica. Respaldado nisso, Kant retoma a imortalidade da alma e a existência de Deus como postulados práticos mobilizados pelo agente virtuoso.

Não fosse assim, o constrangimento que o imperativo produz sobre nossa natureza patológica seria tal que o agente se veria esmagado sob o peso da razão. Seu compromisso com o céu inteligível o tornaria refém de um verso em que Drummond, nada iluminista, conclui que “o mundo não vale o mundo”. Em Kant, porém, embora a lei moral faça violência à sensibilidade, ela não nos condena à experiência inarticulada do incondicionado. O dualismo, aqui, não conduz à alternativa entre dois mundos excludentes – como se, ao pressentir a proximidade do Absoluto, só restasse ao homem “a escolha pânica entre o prazer sensual e a paz da alma” (Schiller) – como se, enfim, o cumprimento da Lei equivalesse ao sacrifício no altar da razão. É o inverso: por pautar sua conduta por princípios racionais, o homem moral kantiano adota uma perspectiva inteligível sobre o mundo efetivo, que convoca as ideias especulativas para lhes conferir um horizonte de determinação (prático) compatível com a interdição da ontologia clássica.

Em suma, a moralidade é a prova cabal de que, embora tenha sido acordado do sono dogmático por Hume, a vigília não converteu Kant ao ceticismo. Talvez porque acompanhar nisso o filósofo escocês seria faltar ao compromisso com a razão. Não que Kant fosse mais pontual que Hume, apenas ocorre que, em Königsberg, a pontualidade não era simples questão de costume.

Vinicius de Figueiredo é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná – UFPR e autor de Quatro figuras da aparência (Lido Editora), 1995.

Texto originalmente publicado na Cult 79, de abril de 2004.


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