arquivo Cult | Estética e sistema

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A terceira Crítica de Kant, de 1793, batizada de Crítica da faculdade do juízo, ou apenas Crítica do juízo, é uma obra comprometida com diversas tarefas. Poderíamos mesmo dizer que o espírito de síntese e sistema que marca quase caricaturalmente o comportamento prático e especulativo do pensador de Königsberg encontra aqui ao mesmo tempo seu maior desafio e sua plena consumação. A terceira e também última Crítica é, por excelência, síntese, conexão, acabamento e completude.

Em primeiro lugar, e explicitamente, porque esse é um objetivo anunciado em poucas linhas da Introdução definitiva à obra: “proporcionar a passagem do domínio dos conceitos de natureza para o domínio do conceito de liberdade”. A terceira Crítica pretende mostrar que e em que medida o sujeito, às voltas com os problemas do conheci- mento e da decisão, não é resultado da justaposição de poderes, mais que heterogêneos, independentes; assim como deve haver uma ligação entre necessidade natural e causalidade livre, há que se situar com cuidado a estratégia analítica que parece romper os liames entre faculdade de conhecimento (Erkenntnisvermögen) e faculdade de apetição (Begehrungsvermögen).

Em segundo lugar, o título mesmo da obra com que Kant completa o sistema crítico trai seu interesse sistemático: Crítica da faculdade do juízo. A faculdade do juízo dispõe de um estatuto singular na economia da Crítica. Com o termo “faculdade”, Kant se refere, por um lado, a fontes subjetivas produtoras de representações específicas: assim são a faculdade da sensibilidade e suas intuições, o entendimento e o conceito como representação que lhe corresponde, a razão e as idéias que ela produz, a imaginação e o esquema… Por outro lado, “faculdade” é o nome daquilo que, segundo sugestão de Deleuze, se compreende como capacidade superior de mobilização do ânimo (Gemüt). Assim se caracterizam, por exemplo, a faculdade do conhecimento e a faculdade da apetição; registros de mobilidade do sujeito no horizonte dos quais as faculdades, na primeira acepção, articulam as representações de que elas são fontes em nome da determinação teórica dos objetos e da determinação prática da vontade. Mas a faculdade do juízo parece não se adaptar bem a nenhuma dessas classificações. Definida na Crítica do juízo como “poder de pensar um particu- lar como contido sob (enthalten unter) um universal”, ela percorre toda a extensão das “capacidades superiores do ânimo”, justamente buscando a conexão das representações específicas de que sensibilidade, imaginação, entendimento e razão são fontes, segundo o primeiro sentido de “faculdade”. Nós conhecemos porque a faculdade do juízo liga intuições da sensibilidade a conceitos do entendimento; nós distinguimos uma vontade moralmente boa de qualquer outra porque a faculdade do juízo liga a representação de uma ação possível com a idéia racional do moralmente bom. Ora, é justamente porque a faculdade do juízo é conexão, ligação, reunião e subsunção por excelência que ela não tem par sob as rubricas disponibilizadas pelo sistema terminológico de Kant. Única em seu gênero, a faculdade do juízo impõe à obra crítica a que ela empresta seu nome e de que ela se faz tema central o comprometimento com a tarefa da unidade.

O terceiro aspecto do projeto sintetizante a que a terceira Crítica aparece por todos os lados condenada se expressa não no objetivo anunciado, nem na escolha do tema, mas no desafio ao intérprete. Dividida em duas grandes partes, a Crítica da faculdade do juízo estético e a Crítica da faculdade do juízo teleológico, a obra desempenha dois papéis aparentemente paralelos. Ela é uma teoria estética em que Kant detidamente expressa suas reflexões acerca dos fenômenos do belo, do sublime e da arte e uma teoria acerca da conexão do conhecimento empírico com o princípio de uma causalidade livre.

Sabe-se que até 1788, a parte “estética” da terceira Crítica daria o nome ao conjunto da obra. Em sua correspondência, Kant então declara estar às voltas com o projeto de redigir uma “Crítica do gosto”. O problema fundamental do projeto kantiano de uma Crítica do gosto é situar e, à medida do possível, solucionar a controvérsia moderna entre duas teses estéticas: de um lado a tese de um gosto objetivo e científico, fundado na estrutura lógica da racionalidade e ligado ao conhecimento conceitual. De outro, a defesa do caráter eminentemente subjetivo, privado e idiossincrático de nossa apreciação do belo. Da primeira, caricaturalmente racionalista, Kant acredita poder encampar apenas o princípio da universalidade. Para ele, afirmar que algo é belo “para mim” não faz sentido. Ou bem é algo “para mim”, e então renuncio ao predicado da beleza para chamá-lo meramente de agradável, ou bem é belo, e então isso implica ao menos uma reivindicação de universalidade para o juízo. Da segunda tese, de acento “empirista” e eventualmente cético, Kant salva o “subjetivismo” do juízo de gosto, mas separa-o cuidadosamente de um sensualismo patológico e privado. A beleza não se rende à objetividade dos raciocínios e das demonstrações sem, todavia, sucumbir ao empirismo das sensações privadas. O que a analítica kantiana do belo expõe é, em suma, um juízo de gosto universalmente válido, mas investido de uma universalidade não-conceitual e não-demonstrável; nos termos de Kant, não-apodítica. Conciliação entre universalidade e subjetivismo e desclassificação das ideias de objetividade estética e gosto privado; eis a expressão, no registro de uma teoria do belo, do incorformismo de Kant em relação ao velho dogmatismo racionalista, contraponto de todo o seu projeto crítico, mas também em relação à sua pura e tosca negação.

Paralelamente, ao classificar o juízo de gosto como uma espécie dos juízos de reflexão, Kant lhe confere, além da universalidade, de uma necessidade indemonstrável e de uma motivação desinteressada, o curioso atributo da “finalidade”. Final é, para Kant, todo aquele juízo que de algum modo refere o objeto julgado ao princípio de uma intencionalidade; compara o objeto com a representação conceitual do que ele deve ser. Se assim é com o gosto, então ao julgarmos bela uma forma da natureza, consideramo-la como criada segundo a representação de um projeto, ainda que não o nosso, em conformidade justamente com nossas faculdades de conheci- mento. A “finalidade” que assim pertence à nossa consideração do belo não seria, entretanto, uma finalidade material. A tese de Kant é a de que quando julgamos bela uma forma da natureza, não produzimos sobre ela nenhum conhecimento, nem tampouco somos levados a um princípio intencional objetivo que teria tido a existência dessa forma como um fim. De acordo com ele, simplesmente refletimos sobre ela segundo o princípio pressuposto de que ela é resultado de uma intenção superior à nossa. O fato de não encontrarmos em parte alguma a representação objetiva desse fim qualifica, então, o juízo de gosto ao estatuto de um juízo de finalidade “sem fim”, também chamada de “finalidade formal”.

Isso tudo nos leva, entretanto, a perguntar: qual a contribuição, para o projeto de uma crítica do gosto, da decisão kantiana por tratar o belo de um ponto de vista “finalístico”? A crítica do gosto precisa da idéia da finalidade ou é o interesse por fazer da estética um caminho privilegiado de unificação do sistema crítico que leva Kant a conectar esses dois temas? Eis a tarefa pouco óbvia que uma tal diversidade de frentes põe para a interpretação: conceber o fio condutor a partir do qual se esclarece, primeiro, por que a analítica e a dedução de um tipo de juízo, a saber, o juízo de gosto, são o caminho privilegiado de uma investigação que tem como tema não um tipo de juízo, mas o poder de julgar enquanto tal; segundo, de que modo essa investigação do poder de julgar pela via privilegiada da estética conecta nossa contemplação do belo com esse princípio tão importante para as pretensões sistemáticas da terceira Crítica, o princípio reflexionante da finalidade da natureza.

Pedro Costa Rego é doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Texto originalmente publicado na Cult 79, de abril de 2004.


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