arquivo Cult | Para entender a Crítica da razão pura

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Não se pode entender a Crítica da razão pura (CRP) sem entender o problema que ela tenta solucionar. Isso, por sua vez, não é possível sem perceber a sua dupla dimensão, tematizando o vínculo interno existente entre duas perguntas logicamente independentes: “Como são possíveis, física e matemática como ciência?” e “É possível a metafísica como ciência?”. Contudo, não há problema que não possua pressupostos, entendê- los requer explicitá-los. Então, que entende Kant por ciência, física, matemática e metafísica?

a) A noção kantiana de ciência difere da nossa, cujas raízes estão no século 19 (a CRP foi escrita na segunda metade do século 18). Kant aceita a idéia clássica de ciência como conhecimento universal e necessário (vigente desde Aristóteles ate o racionalismo moderno).

Conhecimento universal é aquele que se cumpre em todos os casos ou que vale sem exceção. Mas, o que é conhecimento “necessário”? Contemporâneos de Kant se colocaram essa pergunta e definiram de modo preciso o que é necessidade lógica: um enunciado é logicamente necessário quando sua negação implica contradição (por ex., dado que “figura de três lados” é a definição de triângulo, o enunciado: “Um triângulo tem três lados”).

A lógica explicita a legalidade da Razão, sendo essa a fonte da necessidade presente naquela. Os princípios lógicos são os princípios da Razão, dentre os quais o de contradição é um dos fundamentais. Apoiando-me exclusivamente na Razão (ou seja, na “Razão pura”), posso obter conhecimento necessário do ponto de vista lógico-formal.

Kant reconhece dois tipos de conhecimento: o empírico e o a priori. Experiência é um tipo de saber baseado, em última instância, nos dados proporcionados pelos sentidos. Conhecimento empírico é aquele que tem na experiência o fundamento suficiente da sua verdade. Conhecimento a priori é aquele cuja verdade não pode ser suficientemente fundada na experiência.

A experiência é incapaz de fundar um conhecimento universal e necessário; ela pode dizer como as coisas foram até agora, mas não que devam ser sempre assim ou por que não possam ser de outro modo. Logo, se há um conhecimento que tenha as qualidades de necessário e universal, ele não pode ser empírico, mas deve ser a priori.

Se o conhecimento científico contém necessidade e universalidade, é claro que ele supõe conhecimento a priori. Mas, é este a priori a base da ciência susceptível de ser fundado na Razão pura, é ele logicamente necessário?

b) Para Kant, física é sinônimo de mecânica newtoniana. Essa é interpretada com base na ideia clássica (racionalista) de ciência e, por tal motivo, considerada como algo mais que uma generalização de dados empíricos, como possuindo conhecimento de caráter universal e necessário.

A ciência físico-matemática procura reduzir o universo a um sistema de leis. Uma lei científica estabelece uma relação universal e necessária entre dois ou mais fenômenos. A possibilidade de uma tal relação entre os fenômenos é afirmada pelo princípio causal, que diz: “tudo o que acontece tem uma causa”. A legalidade da natureza pressupõe, pois, tal princípio. Contudo, pelo menos a partir de Hume, os filósofos sabem que ele não é logicamente necessário e, portanto, não pode ser demonstrado por meio do princípio de contradição. Então, em que se baseia, já que, por um lado, não podemos prescindir dele na mecânica e, por outro, não podemos fundá-lo nem na experiência, nem na Razão pura?

c) Por metafísica Kant entende a metafísica racionalista (Descartes, Leibniz, Spinoza etc.), que se propunha a responder perguntas tais como se existe Deus ou se a alma humana é imortal. É óbvio que essas perguntas, ao referirem-se a objetos não-perceptíveis pelos sentidos, não podem ser respondidas pela experiência, excedendo os limites da mesma. Só resta a tentativa de demonstrar tais crenças mediante puras inferências. Os racionalistas consideram que é possível conhecer, por meio da Razão pura, verdades que transcendem toda experiência possível, delegando à metafísica tal tarefa. Assim, a possibilidade da metafísica como ciência depende da possibilidade do conhecimento a priori de objetos transcendentes à experiência por meio da Razão pura.

Logo, tanto a mecânica newtoniana quanto a metafísica pretendem obter conhecimento a priori. Apesar da semelhança, há uma óbvia diferença: a mecânica newtoniana consegue construir um conjunto de conhecimentos que é aceito por todos e confirmado pelos fatos conhecidos, ao passo que a metafísica não, permanecendo uma eterna arena de disputas. Sua própria história é a prova mais contundente de seu fracasso. Mas, por que o conhecimento a priori é possível na mecânica newtoniana e não na metafísica? A resposta pede a explicitação de uma diferença entre o tipo de conhecimento a priori que é possível num caso e no outro não.

Os racionalistas pretendiam que a necessidade lógica fosse suficiente para fundar a metafísica, o que é um erro derivado de uma falsa ideia da demonstração matemática. Não é possível provar a existência de objetos transcendentes mediante procedimentos puramente dedutivos. A diferença entre o conhecimento a priori que a metafísica propõe e o que a física obtém não está, pois, em que em um caso se trata de verdades logicamente necessárias e no outro não.

Se chamarmos “analítica” a toda verdade que se demonstra mediante a Razão pura e “sintética” às que se subordinam apenas a esse procedimento e, dado que a necessidade lógica só se funda na Razão pura, podemos diferenciar uma necessidade analítica de uma sintética. Baseados nisso, diremos então que o problema da CRP é explicar a fonte de uma necessidade que não é “analítica”, mas “sintética”. Ora, por que é possível a necessidade sintética na física e na matemática e não na metafísica?

Uma simplificação muito difundida da CRP comete o erro capital de não ver que a física é parte essencial do problema e, por tal motivo, ensina que, segundo Kant, a metafísica não é possível como ciência porque trata de questões que não podem ser respondidas pela experiência. Isso é parcialmente certo, contudo, disso não se segue que a física seja possível como ciência porque se baseia unicamente na experiência. Se Kant pensasse assim, não seria preciso escrever uma CRP e ele seria mais um empirista. O verdadeiro problema é a diferença na situação da física e da metafísica em relação à possibilidade do conhecimento a priori não lógico; o fato de que num caso somos capazes de tal tipo de conhecimento e no outro não.

Há ainda um elemento que se deve ter em conta para entender o problema da CRP em sua verdadeira dimensão. Se a metafísica não é possível como ciência, as “questões” que ela se coloca são racionalmente necessárias. A tarefa própria e específica da Razão é procurar razões (buscar “porquês”); ora, é justamente cumprindo essa tarefa (perguntando-se o porquê do porquê do porquê) que a Razão se vê diante da idéia de uma causa última, do incondicionado ou absoluto. É dele que a metafísica pretende tratar. Mas, ao tentar conhecer o absoluto, a Razão termina caindo em contradição consigo mesma. Na metafísica, ela chega à situação em que consegue demonstrar coisas contraditórias ou produz “antinomias”. Basta um único exemplo para evidenciar a importância dessas: a contradição entre liberdade e determinismo – a tese diz que há uma causa livre; a antítese afirma que toda causa é causada. Sem causalidade não há lei e tampouco ciência, porém, sem liberdade não há responsabilidade e tampouco ética. O fato de que a Razão não só disponha de capacidades limitadas, mas conduza à sua autonegação, coloca uma dúvida de princípio sobre a mesma. Ou dissolvemos essa dúvida, ou nos vemos obrigados a abrir mão do pensamento racional em todos os planos, inclusive o ético.

Até Kant, a fundamentação do conhecimento, em particular do conhecimento a priori, era metafísica e apelava a uma instância transcendente (por exemplo, Deus). Kant, ao contrário, o funda na análise do próprio sujeito cognoscente. A ideia chave, que orienta a solução do problema da CRP, é metaforicamente denominada por Kant “inversão copernicana”. Se partirmos da suposição que o sujeito, no ato de conhecer, é totalmente passivo e se limita a receber um objeto que existe em si mesmo e que lhe é dado (metaforicamente: que o sujeito “gira” em torno ao objeto), então não existe modo de explicar como é possível um saber a priori, pois, como poderia o sujeito saber algo do que é absolutamente independente de seu conhecimento? A única forma de explicar a possibilidade de um saber a priori é admitir que, no ato de conhecer, o sujeito não é passivo e totalmente determinado pelo seu objeto, mas que é ativo, colaborando, de alguma forma (pelo menos em parte) na constituição do mesmo (metaforicamente: é o objeto que “gira” em torno do sujeito).

O sujeito cognoscente só pode conhecer a priori o que dependa dele de algum modo. A realidade (tal como é, independente de mim) me é incognoscível; o que posso conhecer dela é o modo como me aparece (fenômeno), que é sempre sensível. Esse modo, porém, dependerá não só dela, mas também de mim. Justamente por isso eu posso saber algo a priori dela. Expressado em termos kantianos: só é possível conhecimento a priori dos fenômenos, mas não das “coisas em si”.

Agora podemos entender por que o conhecimento sintético a priori é possível na física e não na metafísica: enquanto a física se ocupa unicamente com os fenômenos, a metafísica pretende tratar das “coisas em si” (do absoluto). Essa tese explica, também, a origem das contradições da Razão consigo mesma na metafísica: a Razão cai em contradições porque, ao introduzir a ideia do incondicionado na sua análise regressiva, trata o que é tão-somente fenômeno como se fosse uma coisa em si. Portanto, a distinção entre fenômeno e coisa em si, que explica a possibilidade do conhecimento sintético a priori, também nos presta um serviço inestimável na dissolução das contradições da Razão consigo mesma na metafísica (o que dá uma prova indireta, porém decisiva, da sua correção).

A ideia de que só podemos conhecer a priori aquilo que “produzimos” é intuitivamente satisfatória, mas tão metafórica quanto à “inversão copernicana” e, por isso, não resolve os verdadeiros problemas. Conhecimento a priori é conhecimento universal e necessário. Dizer que existe conhecimento a priori do fenômeno é dizer que é possível o conhecimento universal e necessário dele ou que é possível necessidade e universalidade nele (mais precisamente, nas relações entre eles).

Levado à sua menor expressão, o problema da CRP consiste em fundamentar uma necessidade sintética de caráter universal à qual estão submetidos os fenômenos (e só eles). O próximo passo de Kant será deduzir essa necessidade sintética universal de uma outra que é inerente ao fenômeno enquanto tal. O fenômeno não existe em si, mas tão-somente para mim. Fenômenos não são outra coisa que minhas “representações” e essas, enquanto minhas, só existem na medida em que eu sou consciente ou, pelo menos, posso ser consciente delas. Logo, eu devo poder ser consciente de todas as minhas representações (de reuni-las em uma consciência única) porque, do contrário, não seriam minhas. Toda representação ou (o que é basicamente o mesmo) todo fenômeno está submetido a uma condição necessária, a saber, a condição de que eu posso ser consciente dele. A jogada de mestre de Kant consistirá em mostrar que, do vínculo necessário que todo fenômeno tem com uma consciência única, segue-se uma relação necessária entre os próprios fenômenos. Kant denomina dedução transcendental o argumento que efetua essa demonstração e que consiste basicamente em derivar uma necessidade de outra: a possibilidade de reunir todas as representações numa consciência é necessária e, ao mesmo tempo, universal. É aqui, pois onde encontramos a origem última da necessidade e universalidade sintética, que estava na base da ideia de um conhecimento a priori que não fosse lógico-formal.

A fundamentação do conhecimento me leva não a algo transcendente, mas ao princípio da unidade sintética necessária da consciência e, por tal motivo, a uma necessidade puramente fenomênica, que é suficiente para fundar a física, mas não a metafísica, já que ela tem validez unicamente para um ser racional que, como eu, seja sensível, isto é, finito.

Mario Ariel González Porta é doutor em filosofia pela Westfälische – Wilhelms – Universität Münster e professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Texto originalmente publicado na Cult 79, de abril de 2004.


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