Visão crepuscular da beleza

Visão crepuscular da beleza
(Foto: Bob Sousa)

 

“I call to the eve of the mind
A well long choked up and dry
And boughs long stripped by the wind,
And I call to the mind’s eye”.
William Butler Yeats.

Segundo o historiador e crítico John Gassner, o poeta irlandês William Butler Yeats (1865-1939) converteu o teatro em um templo para a poesia mística e em um auditório para a poesia falada. Nascido e educado em Dublin, Yeats deixou-se fascinar pelo folclore de seu país e pelo ocultismo – o que o levou à crença no sobrenatural e ao desprezo pela ciência. Em 1916, seu amigo Ezra Pound apresentou-lhe o simbolismo do tradicional teatro nô japonês, estimulando-o a escrever At the hawk’s well, um sucinto drama musical composto para três cantores e instrumentistas e três atores. Baseada na lenda do herói da mitologia celta Cuchulain, a peça utiliza-se de máscaras ao estilo japonês e de recursos muito simples que levam a um notável estado de abstração e estilização das formas poéticas, cênicas e musicais. A história gira em torno de um poço seco localizado em uma montanha, guardado por uma mulher-falcão e vigiado obstinadamente por um ancião que há cinquenta anos espera poder beber daquela água prodigiosa, que brota tão esporadicamente. Ao local chega então Cuchulain, disposto também a saciar sua sede de sabedoria e imortalidade. Entretanto, o jovem herói falha ao não prestar atenção aos avisos do velho.

Inspirado no texto de Yeats, o espetáculo de teatro-dança O poço da mulher-falcão vem, desde novembro do ano passado, resistindo no (e por que não dizer também “ao”?) panorama teatral da cidade de São Paulo com sua forma inquieta e estranha beleza. Fruto de um processo de residência artística de dois meses e meio que a performer e coreógrafa Emilie Sugai e o diretor Fabio Mazzoni conduziram no CPT-Sesc, o trabalho conta no elenco com dez jovens intérpretes que contracenam com a própria dançarina e com o performer Toshi Tanaka, em participação especial muito bem-vinda. Os figurinos são de Telumi Hellen e a preparação vocal, de Sandra-X.

(foto: Bob Sousa)
(foto: Bob Sousa)

A adaptação dramatúrgica, a cargo de Emilie Sugai e Fabio Mazzoni, elimina as figuras dos três cantores e músicos em cena, cujas funções são comentar a ação e estabelecer a ligação do ancião e do jovem com a mulher-falcão, personagem sem fala, que se expressa coreograficamente. Cabe, então, aos dez integrantes do elenco assumir a função coral. A adaptação opta ainda por manter pouquíssimas falas do texto original, que se transforma assim em um roteiro de ações físicas a serviço da narração da história, sobre a qual estende-se o manto de uma atmosfera simbólica muito atraente aos olhos do público. E não propriamente os olhos da razão. Como o primeiro músico anuncia na fala inaugural da peça de Yeats (reproduzida acima como epígrafe do presente texto), tudo o que se vai passar dirige-se aos olhos da mente.

Eis a grande qualidade do espetáculo: envolver o espectador pelas vias da percepção – muito dependente da disponibilidade corporal-sinestésica de cada indivíduo –, da imaginação, da interioridade, da intuição, da reflexão sem palavras, daquele estágio que os estudos cognitivos chamam de pensamento pré-conceitual, quando a lógica ainda não é capaz de tiranizar a inteligência. Se na peça original, o dramaturgo irlandês alcança tais objetivos manipulando muito bem a forma poética (a musicalidade dos versos, reforçada pelos instrumentos tocados ao vivo, e a grande força imaginativa que emana da poesia de Yeats remetem a plateia a um estado de verdadeira fruição, como queria Roland Barthes), no trabalho conduzido por Emilie Sugai e Fabio Mazzoni, a poesia – em sua acepção mais genuína – advém do corpo mesmo dos intérpretes e do constante movimento que esses corpos fazem de mergulhar nas sombras e emergir delas. As formações corais advindas do diligente trabalho da dezena de moças e rapazes que integram o elenco são muito expressivas, não se podendo naturalmente deixar de destacar o trabalho da dupla principal de perfomers, Emilie Sugai e Toshi Tanaka, ambos artistas de pleno domínio técnico e atestada maturidade artística.

(foto: Bob Sousa)
(foto: Bob Sousa)

Tudo em O poço da mulher-falcão é regido pelos signos da economia e da síntese. Impressiona a sutileza na concepção do projeto. Uma sutileza a serviço de uma densidade de tipo desnuda, isto é, despida daqueles acessórios que, no mundo das insaciedades espetaculares de hoje, viram rapidamente penduricalhos, que se transformam, por sua vez, em foguetórios. Aqui não há retórica vazia. Caminha-se pelo essencial para se chegar ao verdadeiro.

Se na rubrica inicial do texto original da peça, Yeats faz alusão ao fato de as duas lanternas colocadas em postes instalados nos cantos externos do palco não fornecerem luz suficiente à cena, Fabio Mazzoni, na montagem brasileira, converte escassez em linguagem, fazendo o palco mergulhar constantemente na penumbra – o que já levou o diretor a ser chamado de “o senhor das sombras”. A cena imersa na semiescuridão leva à intuição do fantasmático, conceito-chave que orienta o trabalho.  Os figurinos de Telumi Hellen tangem os corpos para revelar espectros; o trabalho vocal de Sandra-X investe em uma sonoridade também espectral, embora mais próxima da quimera, do devaneio, da ilusão.

(foto: Bob Sousa)
(foto: Bob Sousa)

Por meio da eloquência da escuridão, a montagem brasileira promove o mesmo contato proposto por Yeats: o encontro de mundos diferentes, o do teatro nô e o da mitologia celta, molduras com que se guarnece a densa discussão posta em tela: que aquisições o tempo garante ao homem, afinal? O poço impõe um ritmo lento, esgarçado, trágico à vida daqueles dois indivíduos – “Alguma coisa segue seu curso”, profere a figura criada por um outro dramaturgo irlandês –, ritmo este ao qual eles reagem por impulso e, tragicamente, então, se quedam diante de uma engrenagem tão simples e ao mesmo tempo misteriosa como o medrar de uma mina d´água.

Com At the hawk’s well, William Butler Yeats está se conectando com as velhas narrativas do mundo antigo, que, muitas vezes, por caminhos tão diferentes, discutem a trágica futilidade da existência. O embate do jovem e do velho pela obtenção da sabedoria e da imortalidade a qualquer custo se dá nas malhas da malfadada viagem emocional que ambos empreendem rumo ao poço escuro deles mesmos. Rumo à trágica beleza do crepúsculo da existência. As sombras delineadas com tanta tenuidade pelos criadores do espetáculo procuram fazer o espectador vislumbrar o que ambos os protagonistas são incapazes de promover: a reconciliação da mente com o inconsciente; e, por extensão, da consciência da efemeridade com o cavalgar do ser sobre o dorso do tempo.

 

O poço da mulher-falcão

Até 3 de abril
Quartas e quintas, 20h
Sesc Consolação – CPT Sesc
Rua Dr. Vila Nova, 245 – 7º andar – São Paulo
Duração: 50 minutos
Classificação: 12 anos
Ingressos: R$ 40, R$ 20 e R$ 12

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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