Dos filhos desse Sítio

Dos filhos desse Sítio
(Foto: Bob Sousa)

 

Fotos de Bob Sousa.

Agropeça, criação do Teatro da Vertigem em cartaz no Sesc Pompeia até o próximo dia 14 de junho, é certamente uma das mais engenhosas, e sombrias, sátiras político-ideológicas que o teatro brasileiro recentemente concebeu. Com texto notável de Marcelino Freire, firme direção de Antonio Araújo e um elenco de oito performers de atuação impecável, a peça investe em um tipo de vigilância crítica sobre a realidade brasileira acompanhada o tempo todo por um hibridismo de registros que remonta ao ocaso da Antiguidade Clássica, batizado já pelos antigos de sério-cômico e estudado por Mikhail Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski. Os gêneros sério-cômicos opunham-se às formas bem delimitadas da epopeia, da lírica, da tragédia e da comédia e estavam impregnados de uma cosmovisão carnavalesca que fazia a imagem e a palavra estabelecerem uma relação toda especial com o real – tais instâncias, a imagem e a palavra, podem ser eleitas como os pontos centrais dessa desabrida experiência conduzida com  muito empenho por um dos mais importantes grupos do teatro brasileiro.

A primeira característica do sério-cômico é o tratamento direto da realidade e o contato profundamente familiar que se estabelece com os indivíduos e os temas contemporâneos e as decorrentes questões que eles evocam. A segunda peculiaridade diz respeito ao modo especial por meio do qual o sério-cômico baseia-se conscientemente na experiência e na fantasia livre, adotando uma criticidade de tom cínico-desmascarador. A terceira característica trata da pluralidade de estilos e da variedade de vozes, que fundem o sublime e o vulgar; o sério e o cômico, propriamente; a prosa e o verso; a língua e o jargão. Sobre ela Bakhtin afirma: “Concomitantemente com o discurso de representação, surge o discurso representado”, processo que parece igualmente essencial na condução da atmosfera da Agropeça, que não abre mão de, por meio da metalinguagem, revelar as artimanhas do discurso político.

(Foto: Bob Sousa)

O Teatro da Vertigem quis trazer ao palco um assunto incontornável para nós brasileiros, o agronegócio, que, para além da dimensão econômica, estende seu discurso totalizante sobre as esferas da cultura, da mentalidade e das ideologias política e religiosa – cada vez mais inseparáveis, diga-se de passagem, em um país cuja ética cristã convida cada cidadão pobre, favelado, negro, indígena, trans… a carregar sozinho sua própria cruz. Entretanto, em vez de se concentrar nas agruras do agronegócio, o grupo houve por bem imbricá-lo a uma criação literária que é um verdadeiro patrimônio no imaginário da literatura nacional, o Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, que, embora já viesse sofrendo pressões advindas do processo de revisionismo histórico – ora, agudo; ora, obtuso – que tem incidido sobre as obras canônicas, não havia ainda sido examinado com a mordacidade e a virulência que exalam do espetáculo. Ou melhor, com a devida perscrutação especulativa.

Se os que detêm uma certa visão de esquerda, arisca ao senso comum, inconformada não engolem de modo algum o ramerrame publicitário que ocupa diariamente o horário nobre da TV com o intuito de fazer as garras do agronegócio serem limadas a tal ponto de aquele slogan quase nos acariciar (a imagem das garras do tigre limadas é de Anne Uberfelsd), essa mesma visão progressista, em se tratando de Monteiro Lobato, ainda reluta em simplesmente cancelar o escritor, dada a importância de sua obra e a complexidade sócio-histórica que a concebeu. Obra essa que a Agropeça associa, crua e cruelmente, dentre outras coisas, ao conservadorismo e ao racismo estruturais brasileiros. Nada mais satírico, nada mais demolidor, bem ao espírito das velhas iconoclastias greco-latinas.

(Foto: Bob Sousa)

A criação do Teatro da Vertigem abre uma fresta na rememoração afetiva da infância que é o Sítio do Picapau Amarelo (que, além do sucesso editorial, foi três vezes adaptado de modo igualmente muito bem-sucedido para a dramaturgia televisiva) e a escancara, convertendo-a em uma janela sinistra, através da qual se revolve o solo do sítio a fim de não propriamente escavar o húmus, e, sim, remexer no esterco. Pelo viés da carnavalização, o mundo lobatiano é virado do avesso, e o espectador é convidado a entrar em contato não somente com a macela de que é feito o recheio da boquirrota Emília; como também com as vísceras que entranham a sacrossanta figura de Dona Benta.

É da fratura do tempo que advém a força expressiva do espetáculo. Menos pelo indício da evolução histórica – aquilo deu nisso; aquele sítio encantando deu nesse latifúndio de horror – e mais pela imagem absolutamente angustiante de que somos um país de tempos sobrepostos. Do eterno encontro marcado com o futuro e da sempiterna “consciência amena do atraso”, na feliz expressão de Antonio Candido. Isto é, o tempo mítico e o tempo histórico andam lado a lado em harmoniosa, e inconsistente, convivência.

(Foto: Bob Sousa)

Ordem, progresso e contradição. Elegemos um presidente de esquerda e um Congresso de direita, conforme tão bem nos lembrou Wilson Gomes em recente artigo publicado na Cult. Ordem, progresso e regressão, provoca o mestre Paulo Arantes, para quem somos “estritamente modernos, além de economicamente desfrutáveis”, mas não nos acanhamos em aproar o futuro rumo ao passado. A aprovação do projeto do marco temporal não nos deixa mentir.

Ainda sob a égide da sátira, Agropeça constitui, formalmente, um show de rodeio, virando de ponta cabeça o mundo da masculinidade de corpo taurino e inteligência bovina, da feminilidade servil, da tirania da família heteronormativa, do sentimentalismo barato do homem de bem, da histeria sonora das canções sertanejas, do fundamentalismo religioso, da negação do pensamento crítico e a consequente consagração do senso comum, da competitividade esdrúxula, da imitação dos modelos culturais norte-americanos… O elenco, afiadíssimo, encarna com muita energia criativa e disposição ao risco esse estado de espírito euforizante que constitui um rodeio, transformando-o pouco a pouco no verdadeiro show de horror que a coisa toda na verdade é. Não pela superfície, que se mantém feérica, e sim pelo substrato, em que o eufórico mal disfarça sua disforia.

(Foto: Bob Sousa)

Para toda essa atmosfera emocional, também concorre muitíssimo bem o projeto de iluminação a cargo de Guilherme Bonfanti, cuja eloquência é notável. A luz acentua o estado geral euforizante, mimetizando o brilho espetacular da forma-rodeio, ao mesmo tempo em que o arremeda, mas delineando também, individualmente, cada figura em cena, às voltas com a expressão de sua dramaticidade ou comicidade. As retinas do espectador hão de perceber o processo de explosão negativa dessa luz, em que a confiança arraigada no show da modernidade esboroa-se paulatinamente, revelando a opacidade e o par escuro/obscuro sobre os quais o moderno está assentado, sem que o indivíduo médio desconfie disso. A luz em cena repercute o itinerário que vai da intensa luminosidade ao apagar das luzes. Do brio/brilho ao breu.

É muito difícil que um elenco atinja integralmente o mesmo grau de excelência na atuação durante a realização de um espetáculo como ocorre aqui. André D’Lucca, Andreas Mendes, James Turpin, Lucienne Guedes, Mawusi Tulani, Paulo Arcuri, Tenca Silva e Vinicius Meloni conferem às figuras que encarnam uma dimensão corporal-sinestésica que fala diretamente à sensibilidade e à inteligência da plateia. Agropeça não promove uma retórica vazia a respeito do tema. O discurso está nos corpos dos performers. O corpo-macho, o corpo-fêmea, o corpo-gay, o corpo-trans, o corpo-negro, o corpo-branco, o corpo-estrangeiro, o corpo-criança, o corpo-bélico, o corpo-santo-do-pau-oco, o corpo-bovino, o corpo-animalizado… Toda uma corporeidade real, concreta, não representada, invade a cena, apropria-se do discurso de Monteiro Lobato e fricciona a pele dos próprios atores com a pele das palavras. Dele e da posteridade. Que o adota como um modelo da contemporaneidade ou que o interpela como um símbolo a ser superado.

(Foto: Bob Sousa)

Os corpos dos intérpretes expressam diretamente a realidade que os circunda como cidadãos, em uma bem-vinda operação em que experiência e fantasia se retroalimentam. Há muito de nonsense na modernização das figuras do Sítio, como há muito de absurdo no processo de arcaização a que estamos submetidos. As temporalidades se fundem e se fraturam, quando a velha boneca criada por Monteiro Lobato – assim descrita por Rachel de Queiroz: “Emília não tem medo de ninguém. Nem da vida, porque boneca propriamente não vive, nem da morte, porque não morre” – aparece no palco como uma outra. Ainda que seja ela mesma. E quando também lembramos que a escritora que acabamos de citar, encantada por essa “faísca de liberdade, de coragem e de insolência”, apoiou o golpe militar de 1964.

A despeito de se tratar de um espetáculo erguido a partir do conceito de processo colaborativo, é possível ouvir alto e em bom som o texto de Marcelino Freire, sobre o qual cada intérprete exercita, sim, seu idioleto, mas integrado, por sua vez, ao grande idioma dos sentidos proposto pelo escritor. A cadência, a imaginação cintilante, a mordacidade, os jogos de linguagem, os chistes, os trocadilhos, enfim, toda uma série de expedientes estilísticos e formais advém da pena de um autor que exibe plena maturidade artística e manipula muito bem os recursos expressivos da língua portuguesa a serviço da cena e do projeto concebido originalmente por Antonio Araújo e concretizado por cada um dos integrantes do grupo. O vocabulário, a sintaxe e a semântica da Agropeça são um ponto alto da capacidade analítica que o teatro brasileiro contemporâneo pode exercer, aqui no caso, criticando os modos incontornáveis, como querem nos fazer crer, do capitalismo contemporâneo – que transforma fantasia em pesadelo diariamente, num golpe de mágica típico de um espetáculo de féerie.

(Foto: Bob Sousa)

Há que se destacar também o trabalho de Antonio Araújo pela direção geral da empreitada. É admirável o modo como ele, além de conduzir todo o processo, concebeu ainda um espetáculo longo e espesso, que não perde o timing em momento algum; fragmentário, de estrutura aberta, em que cada cena, em seu aparente isolamento, comunica-se com o todo e desperta igual interesse; complexo, que poderia ter caído nas malhas da simplificação e da histrionice e que opta, inversamente, por duas vias: a da profanação simultânea de um clássico literário e do atual projeto de civilização brasileiro, que encanta boa parte da população, e a da destruição das distâncias entre o fazer artístico e a realidade política.

Com Agropeça, Antonio Araújo e o Teatro da Vertigem descem ao subsolo do Sítio do Picapau Amarelo e retornam à superfície com muitas minhocas na cabeça. Eles vão buscar no espírito da velha sátira greco-latina um antídoto contra esses vermes, que acabam se convertendo no monstro de três cabeças da política brasileira contemporânea: a bancada do boi, da Bíblia e da bala. Saber que a nova Tia Anastácia e o novo Saci passam a ocupar um outro lugar no panteão lobatiano, ou melhor, fogem desse panteão e inauguram um quilombo bem ao lado dele, e que a nova Emília pode também fazer parte desse verdadeiro sítio arqueológico não nos deve servir de consolo. Somente de estímulo. Para continuarmos alerta. O Brasil que nos é apresentado na Agropeça é um país cinicamente representado em um show da vida, e a nossa familiaridade com ele não pode nos fazer esquecer de que a realidade é sempre inacabada. E que antes que o Brasil bovino acabe conosco, é preciso dar por encerrada a farra do boi em que se transformou o país do futuro de outrora.

AGROPEÇA
Sesc Pompeia – Galpão
Rua Clélia, 93 – Pompeia, São Paulo
Quinta a sábado, às 20h; domingo e feriado, às 17h
Sessões extras dias 6, 13 e 14/06, às 20h
Ingressos: R$ 50, R$ 25 e R$ 15
Duração: 120 minutos
Classificação: 14 anos
Até 14 de junho

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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