Verdades a gosto do freguês?

Verdades a gosto do freguês?
(Foto: Reprodução Banksy/Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.


Há muito tempo queria escrever sobre o momento em que vivemos. Tenho me sentido muito incomodada com a confusão que as pessoas vêm fazendo sobre ter opinião. Mas me faltava lastro teórico para essa aventura. Precisava me ancorar em alguém com um “lugar de fala” mais respeitado.

Eis que, lendo o maravilhoso livro de Eliane Brum – Brasil, construtor de Ruínas – um olhar sobre o país de Lula a Bolsonaro (Arquipélago Editorial) -, me veio a certeza que havia encontrado meu suporte. Numa das melhores partes do livro, ela discorre sobre os conceitos de pós-verdade e auto verdade. Lá achei as palavras certas, as explicações didáticas e bem desenhadas de tudo o que eu pensava.

É muito importante, antes de qualquer coisa, esclarecer que não há aqui, nenhuma crítica, é claro, à liberdade de expressão. É maravilhosa a liberdade de podermos nos expressar livremente e dizer o que pensamos. Mas precisamos, como imperativo ético, esclarecer a diferença entre ter opinião e criar uma verdade própria. É o que a autora chama de auto verdade, cujo valor não está em sua ligação com os fatos, mas na performance de quem fala, e principalmente, como fala.

Temos duas questões importantes aí: quando se trata de questões técnicas, em que haja pesquisa e criação de conhecimento envolvido, não temos que ter opinião nenhuma. Temos que estudar o assunto e aprender com quem pesquisa sobre.

Em segundo lugar, precisamos, acima de tudo, compreender o ponto de vista do grupo envolvido. Como branca, posso falar que em minha opinião o negro exagera sobre racismo? Como hétero e cis posso acreditar que a população LGBTQI faz “mimimi” de qualquer piada e acha que tudo é homofobia? O que eu sei sobre isso? Como o que eles vivem impacta em meu dia a dia?

Na turma que navega nesses mares, tudo aquilo com o qual o indivíduo não concorda, ele afirma ser uma ideologia. O respeito às questões de gênero se transformou em ideologia de gênero, a urgente causa do aquecimento global e destruição da Amazônia se transformou em coisa de esquerdista. Sentindo-se oprimidos por conceitos que não compreendem, criam suas próprias verdades e seu valor é medido pelo número de curtidas nas redes sociais.

Não conseguiremos avançar nas discussões das questões que assolam nosso país se não tivermos uma base de verdade comum. Eliane usa um exemplo de uma simplicidade desconcertante. “Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir, eventualmente discordar, sobre qual qualidade de laranja é melhor… mas não podemos discutir se laranja é cadeira ou laranja. Ou não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possiblidade de comprar laranjas… ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que laranja é cadeira.”

Mesmo que você não acredite na Teoria da Gravidade vai continuar preso ao chão, e não levitando por aí. Não é uma questão de opinião, não há fatos alternativos sobre isso.

Eu não tenho opinião sobre os cálculos que o engenheiro faz para construir minha casa, qual tipo de argamassa o pedreiro vai utilizar. Quem tem a verdade sobre isso são eles. Eu não discuto com um cirurgião, que tipo de técnica cirúrgica ele vai utilizar, nada sei sobre esse assunto.

Não precisamos ter opinião sobre tudo. Mais do que isso, não devemos ter opinião sobre tudo.

Não bastasse a auto verdade criando realidades paralelas, ainda temos a seara do discurso de ódio, da falácia de usar uma conquista tão cara que é a liberdade de expressão para exercer o rancor, para expressar aquelas ideias que eram até então vergonhosas, mas que agora podem ser ditas, e o pior, encontram quem as aplauda.

Quando tudo pôde ser dito, isso se confundiu, nas palavras de Eliane Brum, em autenticidade e “a perversão maior – com verdade”. A “minha opinião” muitas vezes é puro preconceito, disfarçado de bom senso.

“Compartilhado nas redes, o ódio deixou o lugar dos sentimentos que deveriam ser reprimidos em público e elaborados no privado. A ignorância deixou de ser um estado a ser ocultado e superado. Tanto ódio quanto ignorância passaram a ser ostentados – e ostentados orgulhosamente.”

Nesse cenário desanimador, penso que todos temos que estar atentos. Disseminar fake news é a escolha dos que querem manter a realidade paralela, pois certamente terão algum ganho político, econômico ou de outra natureza. Mas omitir-se, não contribuir para esse debate é também tomar uma posição. Para além dos muros acadêmicos, onde essas discussões têm seu imenso valor, penso que nós, cidadãos leigos também precisamos falar, escrever, esclarecer, fomentar o debate nas redes já que é apenas nesse campo que turma da auto verdade habita.

Sigamos em frente!

 

Luciana Marques da Silva, 46, é psicóloga e
servidora pública em Belo Horizonte, MG

 

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