As angústias do coletivo

As angústias do coletivo

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”


Você já esteve em uma situação na qual está chovendo muito e você está debaixo de um cobertor quente, sobre uma cama macia, mas mesmo assim você sente uma grande angústia? Sente uns pingos gelados caindo sobre a cama, tomando seu corpo e te proporcionando um desconforto terrível? Pois, vez por outra, passo por esta sensação, um estado emocional entre o delírio e a realidade. Uma coisa que toma conta de mim e não quer mais sair.

Acho que essa sensação é comum em muita gente, só que as pessoas que são acometidas por esta síndrome não se comunicam, acham que o problema é só delas. Mas vou tentar retratar as origens desta angústia para você leitor, talvez você conheça alguém que passa por estas mesmas sensações angustiantes.

Voltarei ao tempo de criança quando morava próximo do KM 0 da BR 324. Eu morava no Largo do Retiro, um bairro periférico de Salvador, Bahia. No largo havia uma avenida, um conjunto de casas de aluguel, que pertencia a um homem chamado Sebastião.

Eu passava horas na frente de um rio, brincando, descobrindo as novas plantas que cresciam naquele lugar. Era uma sensação muito boa de viver. Deitava no chão e ficava olhando para o céu, construindo casas, carros, móveis e tudo que a imaginação deixava fazer a partir dos formatos das nuvens. Ê vida boa!

Mas aquela sensação boa não durava muito, principalmente quando a chuva chegava. Nos tempos frios o rio enchia e tomava todas as casas. A avenida ficava ilhada e poucas pessoas conseguiam ficar na própria casa. A minha morada era a mais afetada, por ser localizada bem próxima do rio. Lembro, quando as águas estavam próximas de alcançar a janela, que as pessoas passavam na rua e diziam: – Saiam daí! Saiam daí!. Minha mãe corria de um lado para o outro para nos proteger, mas o desespero dela transparecia bem mais do que o espírito de dar segurança aos filhos.

Foi em um dia daqueles, em que a água já alcançava a altura da janela, que nasceu esta angústia em mim. As águas começaram a invadir a casa pelas frestas e já estava bem próxima da altura da cama. Minha mãe chorava, e as pessoas gritavam para que nós saíssemos de lá. A gente só tinha aquela casa! Como sair dali?

Foi quando um Filho de Deus, como minha mãe chamava as pessoas boas que ela encontrava, resolveu ir à casa do meu tio Jorge e relatar o acontecido. Uma hora depois ouvi umas batidas fortes na porta, acompanhada de uma voz potente que gritava pelo nome de minha mãe. Surgiu então aquele homem alto, robusto e corajoso para mim, dizendo que iria nos tirar dali. Minha mãe, inicialmente, se negou a abandonar a casa, mas depois que viu os filhos do outro lado da rua em segurança, resolveu ceder e deixar a casa. Meu tio Jorge se parecia com o santo de um quadro que havia lá em casa. Naquele dia eu consegui vê-lo no quadro, e as imagens se movimentavam. Era aquele homem negro e sisudo que vinha para salvar a gente do dragão da maldade.

Passamos uns cinco dias na casa de um outro tio nosso. A casa era confortável, segura e havia muitos brinquedos lá dos meus primos. Eu gostava daquela situação, mas ao mesmo tempo vivia um sentimento confuso, pois queria voltar para casa. Em uma noite daquelas começou a chover muito e foi ali que nasceu a angústia que descrevo agora: toda vez que chove, mesmo que eu esteja em lugar seguro, sinto uns pingos gelados caindo sobre mim. Nunca consegui superar esta angústia, pois ela não é uma angústia pessoal, ela é uma angústia de toda uma coletividade. Ela nasce de todas as intempéries que a pobreza pode trazer e isto não se resolve a partir das conquistas materiais individuais.

Ao ver as fotos e vídeos das fortes chuvas que acontecem na Bahia neste final de 2021, a angústia voltou, ela estava sublimada. Aqueles pingos estão mordendo a minha pele, trazendo um incômodo social que atravessa o individual: a angústia não acabou e vai permanecer enquanto as assimetrias sociais continuarem.

O leitor vai se perguntar: – Isso é história verídica ou ficção? Ao que eu respondo: – A leitura pertence a você. Reaja como pode. E quem quiser que conte outra história.

 

Cleonilton Souza, 58, é doutorando em Educação pela
Universidade Federal da Bahia. Vive em Salvador e adora
caminhar na beira da praia ouvindo música.

 

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