Um rolê com a beata Perpétua

Um rolê com a beata Perpétua
Joana Fomm como a viúva Perpétua na novela “Tieta”, de 1989

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O conservadorismo bate à porta: Parte 2

“Existe uma ecologia das ideias danosas, assim como existe uma ecologia das ervas daninhas.”
Grégori Bateson

“A identidade do sujeito feminista não deveria ser o fundamento da política feminista.”
Judith Butler

Quando decidi escrever esse texto em duas partes, preocupada com o surgimento de uma agenda política antitrans na esquerda política em específico e no campo progressista-democrático em geral, desconsiderei o impacto que os comentários e reações à primeira parte teriam sobre a escrita da segunda, que já estava de todo estruturada. Que ingenuidade a minha! Os comentários e reações à primeira parte do texto constituem uma espécie de prévia da segunda parte, porque nas muitas respostas dadas à publicação encontramos em abundância a bílis amarga e feérica que compõem os discursos que me esmero em denunciar nesse ensaio.

Convido, então, aqueles que evitaram os comentários a lerem alguns deles: desde os que supõem que sou ressentida devido à minha “aparência” (entenda-se: mulher gorda, não padrão, cabelos crespos e trans) aos que supõem que minhas posições emergem de algum sentimento ruim por ser feia (não tenho medo dessa palavra, quem teme a feiura são aquelas que não podem ser nada além da beleza).

Vocês percebem a semelhança destas insinuações ofídicas com aquelas que os homens cis usam para desqualificar mulheres feministas? Pois é. A lógica é a mesma, faltou chamar de “mal comida”. Apelos inúmeros à biologia, à ciência, às mulheres que se levantam contra homens de saia etc. Nos parágrafos seguintes, retornarei a alguns desses enunciados para, juntas, desvelarmos o caráter reacionário e conservador que carregam.

Com vistas a contextualizar as questões e problemas que serão mobilizados nesse texto, afirmo antes de tudo: não somos nós, as mulheres trans e travestis, as primeiras a tecer críticas ao feminismo radical e outros. Ao longo do que se convencionou chamar de “terceira onda” feminista – opto pelo uso da classificação em ondas por puro didatismo, dada sua imensa difusão. É importante considerar que ela não esgota e nem dá conta da variedade de lutas empreendidas por mulheres e feministas no mundo, sendo, frequentemente, um esquema centrado nas mudanças e transformações feministas ocorridas no Norte Global –, tantas outras mulheres puseram em questão as pautas, discursos e agendas feministas.

Por isso, opto aqui por falar em feminismos e não em feminismo, como se essa palavra pudesse dar conta de toda a luta das mulheres no mundo e como se mulher ou mulheres significasse sempre o mesmo em quaisquer lugares do globo. Já desde os anos 1970, são muitas as vozes que alertam para os perigos que a adesão acrítica ao discurso feminista universalizante nos oferecia. Em nome de uma suposta unidade, da constituição de um sujeito unitário pretendidamente representável em termos universais – o patriarcado, a família burguesa, o casamento, a heterossexualidade, a maternidade –, tais categorias sempre foram aplicadas a uma etérea e universal “mulher”, num feminismo que se apresentaria seja em sua mística feminina ou em sua suposta materialidade, subsumindo as multiplicidades e experiências daquelas “outras”. E acreditem, leitoras, não eram poucas as outras.

Os feminismos ditos de terceira onda construíram um conjunto de críticas ao que, naquele contexto, constituía o feminismo mesmo, suas categorias operativas. Guardavam uma cumplicidade silenciosa com outras estruturas de poder como o racismo, a heterossexualidade, a juventude, o capitalismo, a nacionalidade, o colonialismo. É no interior dessas críticas que veremos os universalismos desmontarem frente à emergência de sujeitos situados e suas especificidades, suas diferenças, que antes não eram vistas e nem tomadas como uma questão, porque estavam sufocadas sob o peso do universalismo feminista.

Observamos, também, o surgimento de todo um conjunto de proposições teórico-políticas e epistemológicas rumo à constituição de práticas feministas que pudessem efetivamente configurar-se como práticas políticas transformadoras. As muitas críticas advindas da diversidade de corporalidades, de formas de estar no mundo e de suas reivindicações puseram em cheque todo um universo conceitual pretendidamente universal e trans-histórico: a diferença sexual, quaisquer categorias pretendidamente universais e o próprio sujeito do feminismo, uma inexistente e colonizadora identidade estável “mulher”. No limite, questionou-se até mesmo a necessidade de um sujeito feminista que reivindicaria a igualdade.

De onde vieram tais críticas? Obviamente, do conjunto de corpos que não cabiam nas reivindicações de igualdade. Das mulheres negras que jamais foram o sexo frágil ou privado de trabalho, das lésbicas recusadas nas reuniões feministas, porque as frágeis donzelas brancas da burguesia tinham medo delas, ou ainda das domésticas chicanas, das imigrantes vietnamitas…. todas essas formas de “ser” mulher não compartilhavam em nada as reivindicações feministas expressas na segunda onda, no feminismo místico e no radical. A imensa operação político-teórica que se verificou foi construir uma teoria, uma prática política e uma ética que pudessem dar conta da multiplicidade de experiências e das diferentes posições na trama do poder que resultam das muitas diferenças entre as mulheres no interior dos feminismos. Sobre isso, a filósofa feminista Carolina Meloni reitera:

Dicho cuestionamiento vino, precisamente, de aquellas que habitaban lo inhabitable, que se habían quedado al margen de los debates, espacios académicos y partidos políticos. Las voces de aquellas mujeres comenzaron oírse como un eco fantasmático dentro de una comunidad feminista en cierto modo cómplice con la exclusión y la violencia. La voz de la frontera, de aquellos sujetos fronterizos en todos los sentidos del término — fronteras físicas y geográficas, corporales y sexuales, lingüísticas, raciales — reclamaba una política de la transformación basada no en los cohesionadores conceptos de unidad y de una identidad común, sino en la diferencia, la disonancia, el antagonismo y el reconocimiento de la alteridad.

Não há nada de novo em dizer que os feminismos podem ser capturados pelas lógicas do poder de seu tempo. É justamente por isso que a autorreflexividade, como prática epistemológica, faz-se tão presente em inúmeros trabalhos feministas, uma vez que permite interrogar as próprias verdades, posições e práticas. O horizonte prático dos feminismos deve se traduzir em movimentações constantes e não em um corpo teórico e ritualístico cristalizado no tempo e surdo às transformações do real.

Esse ensaio, que denuncia a violência de certos discursos e práticas pretendidamente feministas e aponta os riscos que oferecem para o conjunto das lutas e dos feminismos, não está sozinho ou isolado no interior da teoria e pensamento feministas. Ao contrário, alia-se a um conjunto de feminismos críticos, marginais e, nos termos de Ballestrin, subalternos. As transexuais e travestis constituem, hoje, a margem dos processos sociais, constituem a ausência nos partidos políticos e o grupo preferencial alvejado por conservadores de todo tipo. Somos a corporificação do indesejado: não querem que pratiquemos esportes, nem usemos o banheiro, nem que tenhamos infância, nem que possamos ter documentos de identidade ou que tenhamos acesso a hormônios ou à Saúde Integral. Dizem não nos querer nos feminismos e, agora, também insistem que não cabemos nos movimentos LGBTs, já se vê por aí a sigla “LGB”. Tantas recusas, cada uma justificada por seus defensores, quando somadas evidenciam o desejo de que não possamos existir. Se não há nenhum lugar para nós, é porque, no horizonte político destas pessoas, apenas a inexistência total é possível.

A reivindicação da categoria “mulher” empreendida por nós, ou ainda a ampliação dessa categoria para dar conta de distintas mulheridades, não é outra coisa senão parte do processo de desnaturalização da condição de “mulher” – apontada por Mead em Sexo e temperamento e por Beauvoir ainda nos anos 1940.

Aqui, apelo àquelas que estão entrando em contato agora com as discussões feministas, apelo àquelas que se sentem perdidas em meio às discussões que opõem feministas radicais e mulheres trans: aproximem-se da luta das mulheres trans e travestis e percebam que em nada oferecemos risco aos direitos e às conquistas históricas das mulheres cis. Convido à leitura dos tópicos adiante no intento de desfazer os mal-entendidos e as mentiras que se espalham nas redes contra as pessoas trans, o transfeminismo e o conjunto de nossas reivindicações.

Em conformidade com o anunciado na primeira e mais singela parte desse ensaio, reúno aqui alguns conceitos e noções falaciosos, que são propagados em redes sociais com a finalidade de deslegitimar mulheres trans e travestis e suas reivindicações. Discursos que, propagados por autoproclamadas feministas, confundem o campo progressista e quem está agora tomando contato com as discussões do feminismo e alimentam as fileiras conservadoras e reacionárias na surdina. Penso que consiste em um compromisso ético de parlamentares de esquerda, de coletivos feministas, grupos de estudo e articulação, coletivos partidários e tantos mais, promover ações formativas e políticas no sentido de denunciar a transfobia que nos toma por dentro.

A questão da socialização

Argumenta-se que há uma socialização propriamente masculina e uma socialização propriamente feminina no interior do patriarcado. Interpeladas por um conjunto de imposições sociais, construímos uma perspectiva generificada do “eu”. Nesse processo, seriam-nos impostos os papéis sociais de gênero: a socialização imporia às mulheres  a maternidade, o cuidado, a emotividade, a vaidade etc. Aos homens, imporia a conquista, o domínio, o bélico etc. Nenhum desacordo tenho disso, que conste. A questão é como se dá tal socialização: não basta evidenciar a existência dos processos de socialização, é preciso entender que tipo de sujeitos os processos irão formar, como eles se dão e, para além disso, de que modo cada indivíduo em sua singularidade irá experimentar, significar e introjetar as experiências advindas da interpelação das normas de gênero.

A noção de socialização foi uma das mais importantes do ponto de vista de uma epistemologia feminista e foi uma ferramenta político-conceitual central nos embates com o essencialismo biológico (da recém-nascida sexologia e psiquiatria) que remetia ao âmbito da natureza os papéis sociais de gênero e tomavam por crônico, portanto natural, a inferioridade da mulher – posição hegemônica durante o século 19 e meados do século 20. A aliança entre os discursos jurídicos e médicos desse período fizeram com que o enfrentamento ao essencialismo biológico das desigualdades entre homens e mulheres fosse central na conquista de direitos e autonomia das mulheres.

Naquele momento, eram as feministas que estavam “contra a ciência”. Não pensem que a inferiorização biológica da mulher se dava de forma discreta ou apenas nos consultórios psiquiátricos, não mesmo. Exemplo disso é a publicação, em 1900, de um trabalho do neurologista alemão Paul Julius Moebius com o infame título de A inferioridade mental da mulher: texto fundamentado com estudos que comparavam cérebros de homens e de mulheres.

Destaquei a obra de Moebius, mas ele não foi voz isolada. A busca por uma causa biológica para a condição subalterna da mulher esteve presente ainda na primeira metade do século 20, associada aos postulados do darwinismo social. Percebam que a afirmação de Beauvoir, já clássica e tão repleta de diferentes interpretações e leituras, como é comum acontecer com textos densos e teóricos, opunha-se radicalmente aos argumentos biológicos, psíquicos e naturalistas da época e localizava no seio das dinâmicas sociais a produção da condição da mulher. Transcrevo aqui a citação, porque sua eloquência e força são únicas:

Ninguém nasce mulher; torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.

Fico imaginando quantas pessoas não disseram “Mas Simone, e a ciência?”, “Mas Simone, há aquelas pesquisas comparando os cérebros”, “Mas Simone, e a frenologia?”. Esse é um primeiro e vigoroso passo rumo à desnaturalização dos papéis de gênero. Até aqui, não apenas concordo com a existência de processos de socialização acontecidos no cotidiano, desde a mais tenra idade até o fim de nossas vidas, como também reconheço a centralidade histórica desse conceito para o feminismo.

O cerne do problema da socialização para o referido feminismo transfóbico é que ela é tomada como destino inelutável: os homens são socializados como homens e introjetam a violência, o ódio ao feminino, o controle e o sentimento de posse sobre o corpo da mulher, o comportamento sexual predatório etc. E o mesmo no que diz respeito à mulher. Esse processo aparentemente se daria de modo perfeito e infalível e, por isso, a socialização de mulheres trans e travestis seria masculina e isso a definiria como homem.

Há uma aparente crença na estabilidade do sistema sexo-gênero, por parte destas feministas, quando tomam equivocadamente a noção de “socialização” como destino/condenação. Tal discurso é profundamente anacrônico, porque confunde o caráter compulsório do gênero sobre todos os corpos com sua estabilidade. Ora, os sujeitos são distintos, múltiplos e atravessados não apenas pelo gênero, mas também pela raça, pela classe, por suas crenças, culturas e localização geográfica. Por óbvio, frente à tamanha multiplicidade, um sistema fechado, “preto e branco”, como é o sistema sexo-gênero, vai colapsar e produzir suas brechas e rachaduras. Não é um processo limpo e perfeito.

Como há uma infinidade de corpos e de identidades que escapam ao processo de “socialização normal” do sistema sexo-gênero, tais identidades, que não foram inventadas nos anos 1990 pela teoria queer, são frequentemente classificadas como “alienadas”, “alheias”, “hereges”, “patológicas”: categorias que são mecanismos discursivos e biopolíticos de captura para a sustentação do sistema sexo-gênero e da ordem. Veja, se o patriarcado oprime as mulheres por causa de sua vagina desde o nascimento, ele precisa, necessariamente, operar dois movimentos:

1. Sustentar a relação vagina-mulher; e

2. Condenar, moral ou religiosamente, os corpos e identidades desviantes do modelo, que em sua existência denunciam a falibilidade da relação mulher-vagina.

A identidade trans, alvo completo da patologização, é uma das identidades que “desloca” a relação gênero e genital para uma possibilidade não estável e que escapa à normalização sexo-gênero. De partida, quando pensamos as identidades dissidentes, duas instabilidades se mostram necessárias e perceptíveis:

1. A instabilidade identidade X expressão normativa, que se instaura no rompimento da performance de gênero esperada em relação à identidade assumida pelo sujeito, logo, mulheres masculinizadas estão nessa instabilidade;

2. A instabilidade biologia X identidade, na qual situam-se as pessoas trans.

Os primeiros casos culminaram na condenação e na perseguição das pessoas homossexuais, lésbicas, homens afeminados e mulheres masculinizadas. O segundo, na criminalização e na patologização das identidades transexuais e travestis.

Ora, nos interditos, na tentativa de exclusão patológica dos casos que se contrapõem, em termos existenciais, à ideia de estabilidade sexo-gênero, é que esse sistema se mantém. A reafirmação da estabilidade via socialização representa apenas a defesa do aparato de gênero que sustenta as violências pretendidamente combatidas, de modo que o discurso feminista radical em torno da questão da socialização redunda em essencialismo. Resta-nos saber se é apenas equivocado ou profundamente mal-intencionado.

Veja, não nego, em minha crítica, a noção de “socialização” ou a constatação de que há uma construção opressora a partir do nascimento com vagina, afinal, é um dado da realidade. Contudo, é falso que as pessoas trans, geralmente em desconformidade com o gênero que lhes é imposto, possam crescer repletas de privilégios. Em primeiro lugar porque, no seio da masculinidade, os afeminados, os que sonham em se tornar mulher são violados, aprendendo, desde cedo, qual o lugar que nos cabe no mundo. Qualquer busca rápida pela história de pessoas trans vai revelar isso. Há uma mulher cis, com suas experiências, e há também mulheres trans, com suas experiências, e travestis com as suas próprias. É justo reconhecer as diferenças e é justo reconhecer os pontos que nos unem e nos permitem, a todas, o acesso à construção feminista.

Ser mulher? Sentir-se mulher? Identidade e materialidade

“O cara põe saia e vira mulher.”

“Ser mulher agora é passar batom?”

“Eu sou materialista, mulher é uma fêmea humana adulta, não um sentimento.”

“Sou lésbica e agora vão me obrigar a gostar de pau?”

Eu poderia listar centenas de expressões desse tipo vociferadas há anos, diariamente, por feministas radicais transfóbicas em páginas, perfis e grupos. Vamos a algumas delas? Peço perdão se me repetir, há de fato imensa circularidade neste debate, o que demanda o retorno a argumentos já apresentados, ainda que sob pontos de vista distintos.

Ser mulher?

Na filosofia há, entre outras, questões de duas grandes ordens: ontológicas e epistemológicas. As primeiras tentam responder acerca do “ser”, do que somos; as segundas a como podemos conhecer algo, ou seja, como e de que maneira algo chega a ser conhecido. Em geral, as questões relativas à identidade remetem à ontologia, a um ser, um elemento ou uma essência comum constituíram uma mesma categoria de “seres”. Pode não parecer, mas essas duas categorias de perguntas têm sido centrais (equivocadamente, penso) nos muitos feminismos que conhecemos.

A pergunta “o que é uma mulher?” tem sido feita há décadas e muitas formulações teóricas, ativistas e políticas tentam dar conta dela. Para os vitorianos, como nos lembra Laqueur, mulher seria um homem incompleto; para os recém-nascidos anatomistas, clínicos e sexólogos positivistas do 19, havia uma determinação científica e biológica, o útero, e ser mulher seria reproduzir. Para os gregos, era zoé, como os escravos, as crianças e alguns animais. Eram muitas explicações e todas buscavam uma definição que pudesse ser tomada como universal.

As ciências médicas e da natureza foram, no século 19, capazes de lidar de forma eficaz com os exemplos ou “realidades” que depunham contra uma natureza biológica compartilhada entre “mulheres” ao catalogar as dissidências em termos de “patologia” ou “anormalidade”, incumbindo-se, então, de buscar formas de corrigir e curar. A afirmação do que “é” uma mulher implica em dizer tudo o que não é uma mulher.

Ainda quanto à famosa frase de Beauvoir, é importante lembrar que ela referia-se ao fato de que aquilo que se pensava como mulher e sua condição estavam atreladas à constituição da mulher como o “Outro” do Homem, em função dele. Ou seja: não há nada de natural, biológico ou essencial que determine a mulher, são condições outras.

Mulher, assim, seria uma relação. Homem e Mulher seriam uma relação, marcada no patriarcado pela dominação do homem sobre a mulher. Como, inclusive, propôs a feminista radical Sulamith Firestone ao pensar a mulher como uma classe política, caracterizada pela dominação de outra classe, o homem.

Inevitavelmente, as questões acerca de uma ontologia da mulher terminavam respondidas em “mulher é outra coisa”. As tentativas, inclusive as feministas, de definir mulher e suas condições produziam inevitavelmente exclusões. (O discurso de Soujourner Truth sobre as mulheres negras é exemplo, assim como a provocação de Wittig ao dizer que lésbicas não são mulheres.)

Os feminismos ditos de terceira onda (e também o movimento negro, LGBT e afins) provocarão (como explica Hall) o descentramento do sujeito moderno universal, pondo abaixo a estabilidade da noção de identidade que, não mais una, precisa dar conta das muitas e diversas demandas por reconhecimento. Não haverá sujeito uno. As relações se complexificam e a agência dos sujeitos volta à baila, não sendo mais mera consequência de um destino biológico inelutável e nem mesmo resultado do meio.

Nesse ínterim (houve um salto imenso aqui, sorry), as relações entre homens e mulheres e os papéis socialmente exercidos por eles são pensados majoritariamente em termos de “gênero”, categoria que assume e assumiu dezenas de sentidos distintos e, penso, segue sendo um termo em disputa. Para alguns, gênero seria uma construção social que produz o que é um homem e o que é mulher, organizando tais papéis para a manutenção do patriarcado etc., definição ainda corrente.

Essas discussões orbitavam em torno de um determinismo cultural ou biológico, a já cansativa discussão natureza/cultura que segue fantasmagoricamente assombrando o Ocidente.

Por que seriam dois os “sexos biológicos” e dois os gêneros? Por que “fêmeas” tornavam-se mulheres e “machos” homens? Se nada de “natural” ou “biológico” havia no gênero, do que decorreria isso? O “sistema sexo-gênero” produzia essas relações arbitrárias, segmentando o corpo em compartimentos que seriam socialmente significados (pênis, macho, homem, masculinidade, heterossexualidade X vagina, fêmea, mulher, feminilidade, heterossexualidade).

Há evidentes limites na compreensão do gênero como uma construção cultural sobre o sexo biológico, uma vez que permite a entrada pela porta do fundo de um substrato biológico, aparentemente neutro, que, se não pode mais dizer o que concerne à natureza da mulher ou do homem, irá dizer, então, o que é um macho e uma fêmea e quais seriam seus aspectos “biológicos” que não seriam modificáveis pelo conjunto estável das interpelações sociais.

No extremo oposto, o do radfem, o processo de socialização de gênero teria como ponto de partida a constatação da “existência” de uma vagina. Neste momento, seria imposto às mulheres a socialização feminina e aos homens a masculina. A socialização e a produção de identidade impostas ao corpo constituiria o que é uma mulher. Com esse fundamento denominam-se materialistas, mas parecem confundir material e concreto, afinal, não se pode chamar de materialista, ao menos no sentido que tentam evocar (marxismo), a recusa em lidar com as contradições do real que se apresentam – ainda que no plano da linguagem, tão material, ainda que não tão “concreta” quanto uma pedra ou uma vagina.

Mulheres transexuais, nesse sentido, não poderiam ser mulheres, uma vez que sua “socialização” imposta na constatação do genital foi “masculina” e, portanto, estruturalmente “privilegiada”. A “mudança de sexo” ou a transição de gênero representaria apenas mais um dos privilégios masculinos (escolher ser mulher, enquanto às mulheres “verdadeiras” isso se impõe). Os homens trans, nessa argumentação, seriam mulheres que se “fantasiam” de homem para tentar escapar à violência patriarcal.

A socialização de gênero não representa destino ou sentença, afinal, não somos sujeitos unos e estáveis destituídos de agência, de classe, de raça. As inúmeras interpelações do Real, a experiência do sujeito no mundo, no encontro com outros mundos, com sujeitos com outros repertórios e saberes do corpo e a ação do desejo na vida produzem imensa fricção e um intenso processo de subjetivação singular. Por isso, afinal, que somos feministas, não é? Afinal, que mulher é socializada para se insurgir?

Como pode alguém com pau tornar-se mulher? Eu não sei, porque esta me parece a questão errada. E é nisto que reside a crítica que quero expor aqui: há uma paixão identitária profunda no feminismo radical, fruto, veja só, de seu anacronismo (e por isso é preconceituoso, afinal, como propõe Arendt, o preconceito é um juízo deslocado do tempo e irrefletido no presente), da época em que a afirmação de um sujeito mulher “inteiro”, estável e com uma história comum era a melhor forma de demandar direitos políticos e civis.

Peço desculpas, mas preciso fazer um parênteses

Em A história da virilidade 1, Vigarello explica, a respeito dos “homens” em Esparta, que a virilidade, condição de homem, era uma investidura que os recém-nascidos recebiam após uma série de provações impostas pela gerúsia (Conselho de Anciãos). Ora, tal condição (tornar-se homem) estava atrelada ao logro das provas e não ao “corpo”.

Ainda hoje, notamos o uso “moral” das categorias de gênero, como investiduras. Por exemplo: “Fulano engravidou Ciclana e foi embora. Não paga nem pensão/ Ah, é? Isso não é coisa de homem, não. É um vagabundo. Um moleque”. Hombridade.

Outras formas de construir relações entre sujeitos que não tenham a “diferença sexual” ou a “biologia” como ponto de partida existem aos montes. Recomendo os trabalhos Sexo e temperamento, da antropóloga Margareth Mead, e Gênero da dádiva, de Marilyn Stratern.

Ainda sobre a questão de ser mulher, as contribuições de Judith Butler…

As formas de tornar socialmente inteligível (e, portanto, de pôr em relação, em posição) se modificam na história. O que hoje se conhece por “mulher” é diferente do que se entendia em tempos e culturas outros. Afinal, como propõe Foucault, somos efeitos das relações de poder. Os discursos médico, jurídico e de saber, que se articulam no século 19, produzem uma epistemologia dotada de um conjunto de dispositivos e formas de perceber. Por isso, nos vemos incapazes de escapar das categorias que possibilitam as violências e desigualdades as quais tentamos superar.

Não há, neste caso, resposta possível ao questionamento “O que é ser mulher?”, porque simplesmente não é, ou seja, não há uma substância, um conteúdo essencial ou natural, não há um “ser” cuja existência corresponda à categoria “mulher”. É possível apenas perguntar: como funciona aquilo que em dado tempo é chamado de “mulher”? Ou, ainda melhor: como funciona o gênero? Butler, em Problemas de gênero, aponta a limitação da categoria “mulher” como fundamento da luta feminista. A reivindicação desse sujeito (cuja definição inexiste) como passível de representação pelo feminismo é uma forma de reafirmação da diferença sexual e, portanto, do próprio gênero.

Homem x mulher são um binário opositivo, cujo sentido de um termo depende da existência do outro e, portanto, não existe possibilidade de câmbio de sentido sem que haja uma destituição dos sentidos de ambos e mais: dos mecanismos que produzem a diferença entre eles.

Butler, em sua crítica ao sujeito do feminismo e à sua representação, opõe-se ainda ao determinismo cultural de gênero, à abordagem biológica e ainda à psicanalítica. Ela irá postular, inspirada na teoria dos atos de fala e da performatividade de Austin, que o gênero é performativo e pré-discursivo, organizado por um conjunto de “atos estilizados” que produzem e fazem gênero todo o tempo.

Não se trata de mera encenação, como se o gênero fosse uma “falsidade” ou algo que “não existe”. As construções sociais existem tanto quanto qualquer coisa. A performatividade diz respeito à capacidade criadora, modificadora, aos efeitos produzidos pelas práticas de gênero no mundo. Quando passo a “funcionar” como aquilo que se chama mulher, então, estou fazendo gênero.

As normas de gênero e sexualidade são produzidas pela confluência de uma infinidade de discursos e saberes, os quais estabelecem um “campo de normalidade” organizado por aparatos reguladores e de verificação da “normalidade” de gênero e sexualidade. Tais “aparatos” (a justiça, a violência, a exclusão, o estigma, a chacota, a suspeição) docilizam, corrigem e punem as transgressões. É o caso do garoto afeminado que apanha: suas práticas de gênero sofrem correção e são apontadas e marcadas como humilhantes, perversas e abjetas, porque põem em risco o sentido mesmo da masculinidade.

A transgressão incorrigível, inassimilável, irá habitar o “exterior”, também produzido pela norma, como aviso constante do significado da anormalidade. Afinal, é o exterior da norma que a significa.

“Ah, mas e a materialidade do corpo? A mulher sofre violência doméstica, estupro, feminicídio.” Sim, trans e travestis também.

A questão da cisgeneridade

Dialogando com ativistas e mesmo com pessoas fora do ativismo, tenho percebido algum nível de confusão quanto ao uso do termo “cisgênero”. Alguns, já familiarizados com o termo, ignoram sua importância política para a luta das pessoas trans. Outros, geralmente os que estão completamente fora do ativismo, não conseguem entender a necessidade de o termo existir e o contestam com falas como: “Não sei porque dar tantos nomes. Não tem porquê”. Assim como tenho percebido, em diálogo com acadêmicos e pesquisadores, que há um certo grau de resistência ao uso do termo cisgênero.

Cisgênero (ou “cis”, como geralmente aparece em textos virtuais) é, grosso modo, uma marca identitária e de gênero que indica que o sujeito se identifica com o gênero que lhe designaram no momento de seu nascimento. Nomear essa relação de identificação é desnaturalizar o processo de “ter gênero”, de modo que tanto a condição de homem quanto a de mulher seriam frutos de processos de identificação (ou de desidentificação), eliminando a noção de que existem “mulheres normais” e “mulheres trans”, “homens normais” e “homens trans”.

Tradicionalmente, o “desvio” da norma sexo-gênero é sempre marcado linguisticamente. A homossexualidade, por exemplo, era marcada como “sodomia”, “pederastia” e, apenas em 1858, nos trabalhos do austríaco Karl Maria Kertbeny, surge o binômio “heterossexualidade e homossexualidade”, atribuindo, portanto, uma igualdade linguística e epistemológica às duas possibilidades da sexualidade humana. Não se tratava mais de “normalidade e desvio”.

Falar em transgeneridade e cisgeneridade é um movimento da linguagem, e também político, para superar a discussão do “normal” e do “anormal”, demonstrando que há, em ambos os casos, processos de identificação que se constituem na subjetividade dos sujeitos, muito além de uma conformidade “natural” entre gênero e genital. Trata-se de reconhecer as diferenças e nomeá-las sem juízo de valor, sem que uma seja categorizada como natural e a outra como patológica.

A articulação do termo cisgênero é, nesse sentido, importante para a despatologização das identidades trans, revelando que não há naturalidade total na aquisição de gênero: nem dos que estão em conformidade com a norma, nem dos que escapam das possibilidades da norma.

Falar em pessoas cisgênero é uma forma de resistência. Por isso, o conceito precisa ser pensado, aprofundado e discutido na construção de práticas de resistência.

Há, aparentemente, outro ponto de tensão na definição mais simples de cisgeneridade. Alguns argumentam que não se identificam com os estereótipos de seu gênero, que mulheres feministas têm posto a feminilidade em questão, com o que concordo. Justamente por isso, tenho proposto, junto com a psicóloga e transfeminista Sofia Favero, a existência de “cisgeneridades subalternas”.

Contudo, é importante percebermos que a existência de mulheres trans e travestis, assim como de homens trans, permite entrever um novo eixo da diferença. O que difere uma mulher trans e uma mulher não trans? Não me venham com “mulher trans e mulher normal” (como já vi por ai), com “mulher biológica e mulher high-tech” ou ainda com “mulher uterina e mulher não uterina”. Quando a medicina chama estas experiências de transsexuais, ela abre, sem querer, a possibilidade de leitura inversa: o inverso de trans é cis (lembra-se de gordura cis e gordura trans? De cisplatina?), indica lados diferentes.

A categoria de cisgeneridade nomeia a experiência de não ser trans, a experiência de pertença (confortável ou não) ao gênero atribuído no nascimento. A categoria cisgeneridade é fundamental porque ela denuncia o caráter não natural das identidades de gênero tomadas como “normais”, afinal, não é apenas a identidade trans que é “criada” em oposição a uma forma natural de ser. É uma categoria que pode ser muito útil ao feminismo de modo geral se tomada de forma crítica.

O caso David Reimer: John Money, ideologia de gênero e medicina

Alguns anos atrás, quando ministrava uma formação em Gênero e Sexualidade para professores da rede público do estado do Ceará, um professor me interpelou sobre o fundamento científico dos estudos de gênero. Em dado momento da discussão, seguindo a cartilha fundamentalista da “ideologia de gênero”, ele fez referência ao Dr. John Money e ao caso David Reimer.

Eu já conhecia o caso e as proposições de Money, contudo, isso não se tornou o tema da conversa. Esse não era o objetivo daquela formação e eu não tinha pretensão de permitir que o espaço fosse tumultuado com obscurantismo.

Percebi, depois, que o caso Reimer é frequentemente usado como exemplo de “ideologia de gênero”. Tanto o invocam os conservadores assumidos quanto as feminista radicais em sua crítica ao conceito de “gênero”.

Procurei textos e vídeos acerca do caso Reimer e todos, de alguma forma, conectavam o caso à “ideologia de gênero”, sempre com expansões de sentido, tomando o caso de David como aplicável às pessoas transexuais e às pessoas intersexuais.

Para quem não conhece a história de David Reimer, simplifico: dois irmãos gêmeos foram circuncidados. Um deles, Bruce Reimer, teve seu pênis queimado e destruído durante o procedimento. Os pais, em desespero, procuraram o médico especialista em pessoas intersexuais John Money, que propôs operar Bruce para que ele se tornasse uma menina. Ele acreditava que o gênero poderia ser “moldado” até determinada idade. Bruce, então, passou a se chamar Brenda, foi submetido a uma cirurgia para a construção de uma neovagina e foi criado como uma menina. Ela apresentou diversos conflitos durante a vida, até que seu pai revelou o processo pelo qual passou e, por isso, Brenda decidiu voltar a ser menino e assumir o nome de David. Suicidou-se em 2004 e, em 2012, o seu irmão também se suicidou.

A grande questão em torno do uso da história de David Reimer em uma campanha contra os direitos das pessoas LGBTs se sustenta em três mitos:

Mito 1: O conceito de gênero foi criado por um médico louco e mal-intencionado (é assim que pintam Money, dialogando com o imaginário coletivo do cientista maluco);

Mito 2: O conceito de gênero proposto por John Money é exatamente o mesmo utilizado pelos movimentos feministas e LGBTs atualmente;

Mito 3: Os movimentos feministas e LGBTs querem submeter, nas escolas, as crianças à mesma violência sofrida por Reimer.

O uso da história de David serve ainda para trazer ao argumento, que, em verdade, é religioso, o ar científico, exemplificado. É preciso fazer uma leitura mais atenta do que aconteceu com David Reimer.

Fato 1: Ao ter seu pênis queimado, sua família buscou um médico pensando, claramente (como lemos no depoimento da mãe), em “como ele vai conseguir ser um homem?”. Havia ali a ideia de que ele precisava de um pênis para ser um homem, e que se não o tinha, deveria ser outra coisa. A primeira imposição sobre Reimer é de caráter genital e normativo;

Fato 2: Money estava equivocado e, junto com a família, decidiu impor a Reimer um gênero. Os movimentos LGBTs e feministas têm lutado contra a imposição social do gênero. As pessoas precisam se reconhecer neste ou naquele gênero e não tê-los impostos pela sociedade, pela igreja ou por um médico. Se David quisesse ser uma mulher, a família deveria ter esperado pela decisão dele;

Fato 3: A violência imposta a David Reimer ainda hoje é imposta a pessoas intersexuais. Sem nenhuma proteção dos conservadores e de suas instituições.

Eles vendem uma interpretação do caso Reimer, por meio da mistificação dos movimentos LGBTs e feministas. Não andamos com bisturis por escolas. Ao contrário, defendemos que as pessoas sejam livres, inclusive, as que não se sentem confortáveis ou que são violentadas pelas normas e padrões de gênero produzidos no mundo ocidental.

David Reimer foi vítima de violência de gênero. Ponto.

A questão do banheiro (eu nunca pensei em escrever sobre o direito de fazer xixi)

Ser uma ativista trans/travesti é ter, ao longo de sua trajetória, defendido o direito ao xixi mais vezes do que se imagina, de modo que coloco aqui um texto que escrevi há algum tempo sobre o assunto:

***

Em defesa do banheiro: 5 respostas aos que querem proibir mulheres trans em banheiro feminino

Porque todo mundo mija?

Quem dera.

O uso do banheiro feminino por mulheres transexuais e travestis é sempre alvo de um conjunto imenso de questionamentos, alguns dos quais eu gostaria de responder aqui. Confesso que me sinto sem jeito de me ver obrigada a argumentar sobre usar o banheiro, como se isso fosse das coisas a mais excepcional. O que não é.

1. “Mulheres transexuais têm pênis. Eu não gostaria de ir ao banheiro e deparar com o pênis de uma travesti. Não gostaria que minha filha passasse por isso.”

É um argumento de mistificação, afinal, os banheiros femininos, no Brasil, têm cabines devidamente fechadas, nas quais não se costuma ver o genital de ninguém. Nenhuma pessoa trans demanda a criação de mictórios em banheiros femininos.

2. “Homens podem aproveitar a permissão para que mulheres trans usem o banheiro feminino para se fantasiar de mulher e estuprar ou assediar.”

Isso é construir uma caricatura da pauta, não? Além, é claro, de incompreensão da dinâmica da cultura do estupro na sociedade brasileira. Há milhares de casos de estupro por ano. Em quantos deles os homens vestiram-se de mulher para estuprar alguém? Homem algum precisa se vestir de mulher para estuprar. Além disso, as estatísticas em torno de assédio e de estupro envolvem o ambiente doméstico (onde raramente há separação de banheiros) e homens conhecidos, com quem já se tem algum nível de relação e/ou confiança, e não homens vestidos de mulher em banheiros públicos.

3. “Eu li um caso em que uma mulher trans estuprou uma mulher cis no banheiro feminino.”

Eu acredito que tenha lido. Mas isso é um caso raro e, se ocorreu no Brasil, ocorreu mesmo sem permissão de uso do banheiro. Assim como existem pessoas cis honestas e desonestas, violentas e calmas, o mesmo ocorre entre as pessoas trans. Não é possível afirmar que mulheres trans oferecem risco a mulheres cis no banheiro tendo uma notícia anedótica por base. Assim como os casos em que mães maltratam os filhos ou os casos de violação sexual empreendida por uma mulher cis não podem servir para propor que mães estejam longe de seus filhos ou que a violência sexual seja cometida majoritariamente por mulheres. Percebe? É evidência anedótica, não é a prevalência e não serve como fundamento.

4. “Eu entendo tudo isso. Mas existem mulheres que ficam constrangidas com a presença de mulheres trans no banheiro.”

Sim, provavelmente existem. Afinal, mulheres trans e travestis são muito pouco vistas nos lugares à luz do dia, ou em espaços mais formais. Entretanto, precisamos pensar em duas possibilidades. A primeira delas é de que o constrangimento esteja associado ao preconceito: é comum, por exemplo (e digo isso por já ter ouvido relatos), que mulheres cis hétero estranhem a presença de mulheres cis lésbicas masculinizadas no banheiro. Algumas dizem ter medo de assédio, outras apenas acham que não deveriam estar no mesmo lugar. Isso é lesbofobia. O mesmo para pessoas trans. O direito de usar o banheiro não pode se dobrar frente a um constrangimento da ordem do preconceito.

A segunda possibilidade é de que o constrangimento tenha origem em um trauma. Nesse caso, devemos retirar as pessoas trans por respeito ao trauma da mulher que se sente constrangida? Não. Inverta a situação e pense em uma mulher que, por alguma razão, tenha um trauma em relação a mulheres negras. Devia-se proibir? Não. O trauma deve ser acolhido e  deve-se buscar seus caminhos de dissolução, sem que isso impacte o direito dos outros.

5. “Ai, tá. Mas eu não aceito dividir o banheiro com uma mulher trans.”

Não vá ao banheiro.

***

Considerações finais

Esse texto já muito se alonga e suspeito que ele tenha ficado mais denso do que eu gostaria. Infelizmente, as respostas mais simples não correspondem sempre às respostas corretas. Deixo para um próximo texto os aspectos masculinistas que nos invadem, assim como os do feminismo radical conservador. Peço aos leitores que percebam a inexistência de contradições entre a luta de mulheres trans e travestis e a das mulheres cis. Precisamos construir um feminismo em que nossas diferenças fortaleçam a luta por mais vida, direitos e dignidade pra todas nós. Vamos nessa?

Helena Vieira é escritora e transfeminista.


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