Lesbofobia de Estado e política de extermínio

Lesbofobia de Estado e política de extermínio
Edição de 1983 do boletim "Chanacomchana", publicação independente da comunidade lésbica nos anos 1980 (Reprodução/Acervo Bajubá)

 

Da Ilha de Lesbos, com a poesia de Safo, na Grécia Antiga, aos julgamentos na Inquisição do Santo Ofício, que resultaram em punições como as que Felipa de Sousa sofreu no Bahia por se relacionar com outras mulheres. Das Dyke Marches – marchas de protesto e visibilidade lésbica, iniciadas na década de 1980 nos Estados Unidos e Canadá – aos expressivos indicadores de violência letal motivada por orientação sexual e identidade de gênero no Brasil – como a morte de Luana Barbosa dos Reis, em 2016, após ter sido espancada por policiais na esquina de sua casa, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, um caso que continua sem resolução judicial. Qualquer que seja o tempo histórico elegível ao debate, não resta dúvida de que as múltiplas expressões das lesbianidades insistem em resistir ao apagamento, à negligência estatal e à desproteção social.

A escritora chicana, feminista e lésbica Cherríe Moraga, no ensaio “La güera” (1981), aponta que sua lesbianidade foi o que mais lhe ensinou sobre o silêncio e a opressão, por se constituir um agravo real do quanto não somos seres livres. Compartilhando a mesma experiência, sustento neste texto a noção de “lesbofobia de Estado”, que se conforma a partir da invisibilidade, do apagamento, da desproteção social e da violência letal como estratégias para manter a ordem de gênero calcada na heterossexualidade obrigatória.

Há um conjunto de normas, símbolos, instituições e leis que nos obriga a entender a heterossexualidade como única forma sadia, aceitável e legítima de vivenciar as relações sociais. Esse é o argumento de Adrienne Rich, escritora estadunidense, feminista e lésbica, no artigo “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica” (1980). No curso dos estudos de gênero e sexualidade, as ideias de Rich se somam às de Monique Wittig, escritora francesa, feminista e lésbica que também reverbera que a invisibilidade lésbica é ponto nevrálgico para manutenção da heterossexualidade. Wittig sustenta, em The straight mind and other essays (A mente hétero e outros ensaios, 1992), que “as lésbicas não são mulheres”. A afirmação causou controvérsia nos redutos feministas da época, especialmente porque a teórica acirrou as críticas ao feminismo ao considerar que suas teorias teriam dividido o mundo de maneira antagônica e reducionista entre homens e mulheres, observando a dominação masculina sobre as mulheres.

Essa dominação estaria assentada na divisão sexual do trabalho, na educação de meninas e meninos para reproduzi-la, na disseminação de valores e ideias de que mulheres só encontrariam felicidade e realização no casamento com um homem e na maternidade. A não identificação desse cenário com a realidade de opressão imposta às lesbianas – que guardam profundas distinções, já que tornar-se lésbica envolveria recusa das expectativas sociais que determinariam o tornar-se mulher – levou Wittig a afirmar que as lésbicas não são mulheres. Tanto Wittig como Rich estavam engajadas em questionar a naturalização e a obrigatoriedade da maternidade e da heterossexualidade; por consequência, a lesbianidade foi alçada ao estatuto de prática revolucionária. A polêmica gerada pelo argumento dessas teóricas foi determinante para que depois pudéssemos imaginar uma multiplicidade de gênero e sexualidade cujo debate conceitual vem sendo amplamente refletido nos estudos queer.

Ao entender a periculosidade da política lesbiana e sua capacidade de confrontar a heterossexualidade obrigatória e outros valores centrais para a manutenção do sistema patriarcal no bojo da ordem societária capitalista, é possível observar como determinados corpos e vidas – na medida em que provocam fissuras, alargamentos nas normas sociais – se tornam alvo de táticas sofisticadas de apagamento e de processos de invisibilização. Processos que conformam uma nítida estratégia de aniquilação: seja pela desproteção social – na ausência de direitos como educação, saúde, pleno emprego, previdência etc. –, seja pela violência letal, mediante assassinatos com motivação lesbofóbica ou suicídios. Em todos os casos, a gestão da vida e o controle dos corpos estão sob domínio e jugo do Estado, por via de seus aparatos de regulação social da vida.

Luana Barbosa dos Reis, logo após ser brutalmente espancada por policiais em Ribeirão Preto (SP), em 2016. Ela morreria dias depois no hospital, de uma isquemia decorrente de traumatismo crânio-encefálico (Foto: Reprodução/YouTube)

Apagamento e invisibilização das existências lésbicas

A hegemonia do pensamento judaico-cristão e o advento do capitalismo nos marcos do colonialismo impingiram valores morais ancorados em um modelo de família heterocentrada. Discussão amplamente difundida por diversas feministas, como a lesbofeminista dominicana Ochy Curiel. Nessa direção, a invisibilidade das práticas afetivo-sexuais lesbianas resulta da clandestinidade histórica à qual estiveram submetidas.

Beatriz Gimeno, ativista lésbica e deputada espanhola, levanta uma polêmica interessante em defesa do lesbianismo: para ela, a heterossexualidade não é natural, mas sim um regime de regulação da sexualidade, dos corpos e dos gêneros. Portanto, um instrumento biopolítico utilizado pelos homens para dominação das mulheres e dos dissidentes de gênero. Gimeno também pergunta “quem foram as lésbicas?” no livro Historia y análisis político del lesbianismo: la liberación de una generación (2005), que se tornou um clássico para estudiosas e ativistas lésbicas. A pergunta é fulcral para entender a invisibilidade lésbica.

A fim de aprofundar a discussão, toma-se de empréstimo aqui a noção de “zona do não ser”, difundida na obra Pele negra, máscaras brancas (1952), de Frantz Fanon, como uma zona infecunda e árida. Fanon alerta para a forma como o olhar ocidental e branco definiu o negro em uma inexistência, não o reconhecendo como humano. Pelo lugar de abjeção, repulsa e desprezo relegado às lesbianidades, dialogo com Fanon ao afirmar que as lésbicas também foram fixadas em uma “zona do não ser”. Dessa forma, a pergunta de Gimeno sobre quem são e quem foram as lésbicas nos dá a noção do apagamento que marca as vidas que ousaram romper as hierarquias sexuais, raciais, de gênero e de classe social.

A desumanização que interpela as vivências lésbicas impõe àquelas que se relacionam com mulheres – quer se reconheçam ou não como lésbicas – um estado de ódio de si mesmas, como definiu Cherríe Moraga ao afirmar que, mesmo sendo militante lésbica feminista, passou muitos anos ignorando sua própria homofobia. A zona do não ser, esse lugar de desprezo, tem largos efeitos sobre a subjetividade de grupos minoritários.

Os apagamentos relacionados às trajetórias LGBTQIA+ envolvem um debate teórico-político sobre o qual tem se dedicado o estudioso queer Sam Bourcier, autor de “Les politiques de l’archive vive” (publicado em 2021 na REBEH, Revista Brasileira de Estudos da Homocultura). O pesquisador afirma que o arquivo e a memória oficial estão imbuídos da dominação e da hierarquização racial, sexual, de gênero e classe social. E, quando se trata de grupos minoritários, há uma exclusão dos arquivos e culturas oficiais, assim como uma má representação e maltrato dessas imagens históricas. O que traria uma tarefa urgente aos movimentos sociais: revisitar e reconstruir nossos “arquivos vivos”, nos termos de Bourcier.

A invisibilidade social passou a ocupar as agendas reivindicatórias dos movimentos LGBTQIA+ entre as décadas de 1970 e 1980. Contudo, os movimentos de lésbicas, no Brasil e no mundo, tiveram de constituir uma centralidade no debate da visibilidade, muito em função da reprodução do sexismo, da misoginia e do androcentrismo nas práticas políticas de parte das primeiras gerações de grupos e coletivos gays.

A dupla exclusão – pois se tratava da parcela homossexual nas organizações feministas ou da parcela “feminina” nos movimentos homossexuais dos anos de 1970 – também foi determinante nos processos de organização dos primeiros coletivos lésbicos no Brasil, como mostram os registros da imprensa lésbica do período. É o caso do jornal Chanacomchana e das diversas publicações de Marisa Fernandes e Miriam Martinho, ativistas lésbicas que construíram a militância e a imprensa lésbica desse período.

Um exemplo explícito do apagamento lésbico está no fato de poucos saberem que pessoas trans e lésbicas foram as principais articuladoras da Revolta de Stonewall, em 1969. No Brasil, não são muitos os que conhecem a história do Levante do Ferro’s Bar, ocorrido em São Paulo em 19 de agosto de 1983: as lésbicas – com apoio de grupos feministas e de esquerda – estavam fartas de serem expulsas do bar por policiais e de terem confiscados seus panfletos e jornais, como o Chanacomchana. Como salienta Sam Bourcier, o apagamento e os silêncios, assim como as lacunas históricas, distinguem o arquivo das minorias e dos subalternos.

Desproteção social e lesbocídio no Brasil

A política de extermínio de grupos socialmente marginalizados, executada pelo Estado, detém sofisticadas formas de operar. Vão do apagamento e das lacunas históricas, já destacados, à ausência de políticas públicas compromissadas em dirimir as desigualdades sociais e econômicas decorrentes do racismo, sexismo, capacitismo e LGBTfobia. O não reconhecimento da cidadania, a não possibilidade de participar da vida política com condições de igualdade e a não adoção de um princípio de redistribuição socioeconômica solavancam políticas governamentais de cerceamento das liberdades democráticas e aprofundam hierarquias sociais. Terreno fértil para a reprodução do binarismo de gênero, para a agudização da divisão sexual e racial do trabalho e para o fortalecimento da heteronormatividade.

Judith Butler, filósofa queer estadunidense, em sua obra Vida precária (2004), traz uma importante chave analítica: pode-se afirmar que a precariedade das vidas LGBTQIA+ se agudiza com o não reconhecimento da diferença e de seus distintos arranjos familiares pelo Estado e com o estabelecimento de uma moralidade sexual que reduz as experiências de gênero e sexualidade a um regime de verdade ou a uma norma compulsória para orientação sexual e identidade de gênero.

Isso ajuda a explicar o fato de os movimentos gays e lésbicos terem perquirido o reconhecimento da homoconjugalidade pelo Estado, devido a um desejo que metaforiza, em partes, uma vontade de assimilação das normas sociais, como a própria Butler pondera no artigo “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” (2002). Sob esse contraponto, ela afirma que o casamento, por sua própria história, só se torna uma “escolha” quando é estendido como norma, “uma opção que prolonga as relações de propriedade e torna as formas sociais da sexualidade mais conservadoras”. No entanto, mesmo que o reconhecimento da homoconjugalidade signifique avanço de direitos LGBTQIA+, é a violência nos espaços públicos, familiares e institucionais, e a não inserção no mercado de trabalho formal, que determinam a desproteção social LGBTQIA+. Em ambos os casos, é a ausência de um Estado regulador da cidadania e protetor dos direitos humanos – uma ilusão no capitalismo – quem vai decidir pela vida e pela morte de sua população.

Ainda que, no Brasil, as pessoas LGBTQIA+ não convivam com a pena de morte, como em muitos países – 38% do mundo, segundo dados da ILGA World –, os indicadores de violência letal são suficientes para afirmarmos que viver aqui é um risco perene. Conforme a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, quase metade da expectativa de vida nacional. O dossiê do Lesbocídio no Brasil de 2014 a 2017, coordenado por Milena Peres, Suane Soares e Maria Clara Dias, apontou um crescimento de 237% no número de mortes de lésbicas no período analisado, registrando 54 casos de lesbocídio no país. O dossiê traz elementos de como o Estado brasileiro tem negligenciado as mortes lésbicas ao não constituir nenhuma medida de segurança para essa população, mas especialmente ao não registrar esses dados como lesbocídios. Os registros de assassinatos LGBTQIA+ vêm sendo elaborados pelos movimentos sociais desde a década de 1980, quando o Grupo Gay da Bahia iniciou a publicação de seus relatórios. Por alguns anos, o Disque 100, vinculado à área de Direitos Humanos no Executivo federal, registrou e compilou em relatórios as denúncias de violência contra pessoas LGBTQIA+, mas desde 2018 os registros não têm sido divulgados.

“Lesbocídio” é o termo proposto, no referido dossiê, para definir a morte de lésbicas por motivo de ódio, repulsa e discriminação contra lésbica, ou seja, por lesbofobia. O lesbocídio se diferencia do feminicídio na medida em que a recorrência é menor em âmbito doméstico e familiar, em comparação aos dados que indicam majoritariamente crimes de ódio motivados por preconceito, assassinatos e suicídios decorrentes da experiência de discriminação. A responsabilidade do Estado por tais mortes se explicita pela negligência nos registros de dados de violência, pela ineficiência na criação de políticas de combate à lesbofobia, pela não regulação dos meios de comunicação – quando permite concessão a emissoras de televisão que propagam ódio e desinformação em sua programação – e fundamentalmente pelos inúmeros assassinatos que seguem impunes.

No atual contexto brasileiro de recrudescimento do conservadorismo, que se explicita nas estratégias da gestão de Jair Bolsonaro, temos visto largos retrocessos no investimento para políticas públicas destinadas à população LGBTQIA+, como indica a plataforma Gênero e Número em recente publicação: o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não gastou os recursos previstos em ações para a população LGBTQIA+, e o Ministério da Cultura, com decisões autoritárias, não contempla em seus editais projetos que abarquem temas LGBTQIA+.

Desde 2019, o atual presidente vem excluindo áreas do governo que se dedicavam, por décadas, à educação para diversidade, como os conselhos de direitos LGBTQIA+, e esvaziou politicamente setores com larga experiência em enfrentar os processos de vulnerabilização de gênero e sexualidade. No gráfico a seguir, sistematiza-se o percurso das decisões favoráveis à população LGBTQIA+ no Brasil nos últimos 20 anos.

É possível observar, na primeira década do século 21, a ausência de decisões no Legislativo e a preponderância de ações no Executivo, bem como a influência dessas políticas nas decisões judiciárias, que se ampliaram com maior pungência a partir da segunda década.

O recrudescimento das políticas de extermínio, especialmente imbricadas no ideário neoliberal – face atual e devastadora do capitalismo –, tem produzido desempregados, refugiados, corpos descartáveis e expostos à morte. Vidas matáveis, como as de lésbicas, atingidas por hierarquias, classificações e discriminações, muitas vezes fundamentadas na moral religiosa e nos discursos biológicos e médicos.

Insurgências e resistências lésbicas

Como em todo processo de dominação, há disputas e resistências. As insurgências lésbicas têm promovido ações de desarquivamento de suas histórias coletivas. É notório o surgimento de diversas ações de reivindicação da memória lésbica como alternativa para fissurar a história oficial.

Há muitos desafios a ser enfrentados pela agenda de visibilidade lésbica, como a ocupação crítica das mídias e da política partidária. Mesmo que observemos um recente avanço na representação das lesbianidades nos meios de comunicação, por muito tempo ela foi e ainda é construída com base em estereótipos ou personagens higienizadas, que pouco se assemelham ao cotidiano lésbico em sua pluralidade de experiências e vivências. E, quanto à representação político-partidária, os ataques e as ameaças às deputadas e vereadoras lésbicas, trans e bissexuais, principalmente negras, demonstram os desafios da paridade na política, que também devem ser pensados nas agendas de partidos comprometidos com a democracia – garantindo assim que elas concluam seu mandato com vida e que casos emblemáticos, como o de Marielle Franco, sejam solucionados e não se repitam.

As ruas guardam uma ambivalência para as lésbicas: embora sejam lugar de violência e violação de direitos, são também lugar de luta. Há quase 20 anos, em São Paulo, acontecem as Caminhadas de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, que reúnem pessoas de muitos lugares do Brasil. Marcam posição crítica ao pink money e às apropriações indébitas da luta pela diversidade sexual e de gênero.

As resistências lésbicas produzem coletividade, afetos e sentidos de vida, como revelam os projetos potencializados pelas redes sociais, como a Enciclopédia sapatão (idealizada pela Casa 1), Revista Lésbi, Alternativa L e Revista Brejeiras; entidades dedicadas à preservação da memória lésbica, como o Arquivo Lésbico, ou à produção de indicadores censitários, como o recém-lançado Lesbocenso (coordenado por Coturno de Vênus e Liga Brasileira de Lésbicas, com amplo apoio de grupos da sociedade) ou o curso Pensamento Lésbico ofertado na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A feminista negra e ensaísta lésbica Cheryl Clarke ousou afirmar, de maneira irreverente, que o tribadismo – sexo entre mulheres – seria uma panaceia ancestral, referindo-se à Panaceia, deusa da cura na mitologia grega. Em tempos de luto por tantas perdas pela Covid-19, mortes que poderiam ter sido evitadas caso não tivéssemos em curso um projeto negacionista e de lucro acima das vidas, que a panaceia ancestral lésbica reverbere cura e vida àquelas que resistem ao extermínio e à lesbofobia, mas também a todas, todos e todes que bradam contra as injustiças sociais.

 

Bruna Andrade Irineu, professora doutora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFMT.


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