A quarentena e os prenúncios do passado

A quarentena e os prenúncios do passado
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de junho de 2020 é “quarentena”


Com a pandemia da Covid-19, alguns termos não usuais passaram a fazer parte do cotidiano, entre eles quarentena e distanciamento social. De uma janela do Capão Redondo, extremo sul da cidade de São Paulo, cada quilombo vê passar à sua frente um passado não tão remoto. No final dos anos 1970 esta era uma terra onde a morte era parte da paisagem. Grupos paramilitares faziam justiça com suas próprias leis e todos conheciam o código silencioso daqueles tempos, de manter o distanciamento de certos lugares, da polícia, ou de uma quarentena forçada após o “boa noite” de Cid Moreira. Nada mais que um presságio.

A gramática periférica há tempos conhece os significados que hoje soam novos, pois seus moradores sempre viveram em quarentena, apartados da vida na cidade, sem os direitos básicos para sobreviver no mundo moderno. Nossos espaços são aquilombamentos que receberam toda a diversidade do povo brasileiro, aqueles que foram violentamente alijados do centro, criando maneiras de ser, de estar, de se comportar em diversas subjetividades que somente o tempo e o embranquecimento de suas formas as fazem aculturadas pelos donos do poder.

Só assim seus grandes poetas, slams, saraus, suas formas de dançar e cantar podem ser captadas por algum Elvis brasileiro para tornar-se um sucesso midiático. Nossa cultura aguarda sempre o fim da quarentena do gueto, de sair de um canto silenciado. Nossas escolas preferem nos levar a uma Europa tão distante, onde o abismo se abre para o norte com a finalidade de conhecermos mais a Revolução Francesa que Canudos, mais Maquiavel que Luis Gama, mais Borba Gato que os Tupinambá, mais Princesa Isabel que Aqualtune, mais Harry Potter que Saci Pererê, mais Superman que Ogum, mais homens que mulheres, mais brancos que negros, mais todas as vidas que vidas negras.

Ainda não dá pra falar em educação, pois essa foi a primeira área a ser escanteada do campo das necessidades. Tudo bem, aqui a educação sempre foi à distância. Aplicativo não baixa, wi-fi sem sinal, apostila emperrada nos Correios, notas digitais, as mesmas aulas de sempre na TV.

Distanciamento social nunca foi segredo, já que na organização das cidades, pobres e ricos são distanciados de todas as formas possíveis. As classes sociais miram mais que distanciamento, miram racismo na forma institucionalizada da invisibilidade do outro. Posso ignorar que você é uma criança e apertar o botão da cobertura, no distanciamento de andares, de olhares, de quedas. Sobe o elevador social, sem placa antissocial, desce o de serviço. E ao fim seremos, contraditoriamente, tratados como gado no abatedouro, amontoados nos transportes coletivos, no trânsito, na fila, na falta de saneamento básico, na ausência de políticas públicas.

Entre tantos discursos desencontrados sobre a pandemia, nenhum tinha fundamento nos espaços periféricos, por isso o que vimos foram apenas ouvidos moucos. De tantas bocas de um lado ou de outro, o que ecoava era a necropolítica, que aponta o lugar do pobre, do preto, daquele invisível aos olhos do poder que hoje veste um uniforme que mascara, mas que dizem garantir o que sempre negaram: a vida.

Nem mesmo a face fecunda do fascismo nascente criou alguma expectativa, pois não temos como divisar entre o que seja democracia ou seu contrário, quando ainda temos que defender nossa sobrevivência. Essa é uma palavra que carrega a proximidade da morte. Num momento em que só se fala em serviços essenciais, a tradução para fundamentar quem somos numa sociedade mercantil se transformou em olhar aplicativos do governo para garantir uma renda emergencial que não garante nem refeição diária.

O prenúncio do passado chegou a qualquer periferia, não apenas nos bairros periféricos, mas em todo um país longe das metrópoles. Não como novas normativas, ou como um mundo que vai renascer pós-pandemia. Esse mundo já conhecemos, desde tenra idade. Ele faz parte do passado e, sem encontrarmos nosso próprio caminho ou saídas manejadas coletivamente, será o futuro.

 

Anderson Severiano Gomes, 46 anos, é professor, escritor,
pedagogo, doutorando em Educação pela UFSCar e diretor de
escola pública. Mantém o Espaço Quilombola no Capão
Redondo, onde mora

 

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