They are expendable

They are expendable
O presidente Jair Bolsonaro durante pronunciamento em rede nacional de televisão e rádio (Foto: Reprodução)

 

They were expendable é um belo filme de guerra de 1945, dirigido por nada menos que John Ford, e estrelado por Robert Montgomery e John Wayne. O título foi vertido em português ao longo dos anos como Fomos os sacrificados ou como Homens para queimar, porque esse cândido “expendable” aí é difícil de fixar semanticamente em uma única expressão em nossa língua. É um filme sobre soldados que o Comando considerou que eram para gastar, eram descartáveis, dispensáveis, consumíveis, do ponto de vista de um objetivo estratégico durante a 2º Guerra Mundial. Estavam ali para ser dissipados, expendidos, usados; eram outros os indispensáveis, os cruciais, os necessários, os que deveriam ser poupados a qualquer custo.

Estou falando disso porque esse título me veio à mente esta semana depois de ver o vídeo do bolsoguedista Junior Durski (Madero), ler o tweet do bolsolavista Sérgio Camargo (Fundação Palmares) e assistir, enfim, ao pronunciamento em cadeia nacional do Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Não se iluda, não são burros, são sinceros. Disseram de maneira cristalina que há um determinado número de mortes de brasileiros perfeitamente aceitável nas circunstâncias em que nos encontramos, desde que a economia não deixe de rodar. Uma ideia, aliás, que nenhum líder de país civilizado, teve o desassombro de apresentar aos seus concidadãos, exceto, talvez, Trump, mas este não está cota da civilização. 

Para Durski, sete mil óbitos é um preço baixo a pagar. Podemos, sim, nos dar ao luxo de tanger as pessoas para a epidemia já sabendo, a priori, que sete mil brasileiros morrerão por causa disso. Gastaremos aleatoriamente sete mil pessoas, mas salvaremos o essencial, os nossos negócios e a economia brasileira. Camargo, outro sábio da ciência de dados, acha que dois milhões (falou de 1%, não foi?) de infectados não justifica não botar a negralhada para trabalhar. E disse, com todas as letras, que achava uma imbecilidade levar em conta a contaminação de dois milhões de brasileiros. Uma ninharia de gente, completamente descartável, desnecessária. 

Para Bolsonaro, tanto faz quantos morram no processo. Não teve sequer o pudor de ir logo afirmando que ele, como atleta, está fora do alcance do vírus. Primeiro o essencial, claro, tranquilizar a nação da invulnerabilidade do seu líder. Isso posto e garantido, a morte dos nossos pais e avós, convenhamos, é para ele um preço aceitável. Velhinhos são “expendable”, temos muitos, demais até, todos a sobrecarregar a Previdência e a entulhar as filas das lotéricas. Não tem problema se um bom número deles morrer, infere-se do que disse o presidente. O Brasil é que não pode parar, pois se a economia para, o governo Bolsonaro acaba. E a salvação deste governo, sim, é crucial, essencial e deve ser garantida a qualquer custo. 

Faltou, naturalmente, combinar com os “expendable”. Enquanto os descartáveis forem os outros, a psicologia das escolhas racionais diz que o cálculo dos dispensáveis pode nos parecer razoável. Desde que não seja eu ou quem eu amo, as perdas podem ser aceitáveis. O problema é que ninguém sabe a priori quem será escolhido pelo vírus. Ontem morreu um menino de 21 anos, alguns médicos já contraíram o vírus e muitos morrerão. Este é exatamente o problema da lógica segundo a qual algumas pessoas precisam morrer para que a maioria se salve: a incerteza. O erro do bolsonarismo consiste exatamente nisso, pois admitir sinceramente que alguns devem morrer para que outros se salvem só funciona se as pessoas só pensarem nisso depois de tudo ter acontecido. Normalmente, ninguém se voluntaria para ser descartado e ninguém aceita bovinamente que tem que haver pessoas prescindíveis se souber que o seu nome pode estar na lista.

Projetar para o futuro – do jeito fatalista adotado pelo dono da Madero ou quase como se fosse uma política pública, como o fez Bolsonaro – é como dizer a todas as ovelhas que de agora em diante toda noite o lobo passará e levará algumas delas. E que cada uma acordará no dia seguinte angustiada porque sabe que o alívio é provisório e que a vida a ser tirada na noite seguinte pode ser a sua. 

Pois é bem isso que o presidente e a sua seita propõem: uns morrerão, isso é aceitável para a economia não parar, e como não sabemos ainda quem morrerá, vivam com isso. E se, no final do dia, eu descobrir que dentre os destinados a morrer estavam meu filho ou a minha mãe, mesmo assim vai me parecer que sete mil mortos e dois milhões de infectados é um preço insignificante a pagar? Duvido. 

O bolsonarismo não têm a dimensão das forças do inconsciente que eles acabaram de despertar. Pois de agora em diante, cada morto pranteado, cada parente infectado e cada pessoa que a gente ama em agonia pela possibilidade de morrer, tudo isso irá parar na conta do presidente e da sua seita política. A vida não é um videogame e as vidas dos que amamos não se reiniciam. Ninguém gosta da ideia de que um presidente considere descartável a sua única e singular existência.  

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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