O antibolsonarismo entre muralhas e pontes

O antibolsonarismo entre muralhas e pontes
A ideia de frente ampla ante um inimigo comum já pode ter o seu atestado de óbito expedido (Foto: Reprodução)

 

 

Na semana passada, diante do desastre que criou e preocupado com as drásticas consequências das confusões que fez, Jair Bolsonaro finalmente se acovardou e foi forçado a recuar. Teve que desarmar o circo golpista programado com os caminhoneiros e enfrentar as posteriores reconciliações com os operadores de campo da Operação Ataque ao STF, uma vez que muitos deles acreditaram no valor de face dos inflamados discursos do presidente e foram deixados, como se diz, pendurados na broxa, quando o dono da sala levou embora a escada em que se apoiavam.

Não foi a primeira vez em que a fé em Bolsonaro por parte dos membros do movimento foi testada por algumas horas de decepção profunda. Aconteceu na época em que Moro saiu do governo e repetiu-se de novo desde a última quinta-feira (9/9), a partir da carta de capitulação ante o STF que os bolsonaristas prometeram conquistar e dominar. Também desta feita, logo o perdoaram, que seita é seita e sempre há de prevalecer a crença de que algum plano incompreensível pelos fiéis foi posto em prática pelo profeta que os lideram. Não há fracasso nem acaso para quem vive da fé, mas um projeto infalível em marcha, mesmo que não seja inteiramente compreensível.

A questão que fica para os outros 90% dos que não são bolsonaristas é como lidar com Bolsonaro depois que essa tentativa de golpe fracassou? Sim, pois Bolsonaro foi repelido e forçado a recuar, o que não quer dizer que não tentará de novo. Antes, seria compelido a isso por duas razões.

A primeira é que tem uma ostensiva obsessão pelo cargo que ocupa, seja porque deve ser mesmo deslumbrante, para um homem com tão poucas qualidades, ter chegado tão longe, seja pelo que isso funciona como anteparo para protegê-lo, e aos filhos, dos braços da Justiça, que fatalmente um dia os alcançará. Por outro lado, mantida as condições atuais de temperatura e pressão, é cada vez mais claro que Bolsonaro não vencerá mais uma eleição no Brasil.

Na verdade, Bolsonaro não tem sequer trabalhado com uma lógica eleitoral, pois não demonstra o mínimo interesse em aumentar o número dos que o apoiam ou até de falar para outros públicos que não o membro radical da sua seita. O propósito é compactar as forças, não as ampliar, o que corresponde a uma lógica de quem quer se manter no poder, mas sem esperanças eleitorais. Precisaria de alguma insurreição para tanto, e se não foi agora, por não ter conseguido envolver as instituições da Polícia Militar e das Forças Armadas na sua aventura, isso não quer dizer que não continuará tentando.

Diante disso, ao que parece, há duas leituras do que fazer. Uns acham que, de um jeito ou de outro, teremos uma eleição em outubro de 2022, mesmo que Bolsonaro considere não ter chances de vencê-la. Outros acham que é perigoso demais deixar a espada do golpe bolsonarista pendurada sobre as nucas das instituições brasileiras, de forma que a melhor alternativa seria remover logo o presidente do cargo por algum meio legal.

E aqui começam as dificuldades. Por um lado, esse Sete de Setembro ajudou a consolidar um inegável consenso, nas instituições do Estado e da política, na sociedade e nos formadores de opinião, de que Bolsonaro foi um mau passo, um erro terrível e representa um perigo constante para a democracia, a saúde pública e a economia brasileiras. Acho, inclusive, que a percepção do risco que Bolsonaro representa para a economia deste país era a gota d’água que faltava para fazer transbordar a paciência até do setor da sociedade brasileira que pouco se importa com democracia ou saúde pública, desde que o dinheiro rode.

Por outro lado, entretanto, a política, de onde deveria vir a solução, divide-se sobre o que fazer a respeito. De um lado temos o Progressistas, a última garantia de sobrevivência política de Bolsonaro, que continua o seu papel de muito bem remunerado guarda-costas do mandato do presidente. Além disso, um formidável pelotão de pelo menos 200 deputados dá a Bolsonaro uma confortável margem de manobra e proteção. Enquanto houver orçamento, a proteção está garantida.

O problema é que, para além desse obstáculo, há considerável fratura nos que desejam que Bolsonaro se vá. Estes se dividem, hoje, entre quem prioriza colaborações táticas e ampliação de alianças, de um lado, e quem está mais preocupado em manter o seu grupo coeso, mobilizado e autoconsciente do outro. Uns querem pontes, outros reforçam as muralhas, e ambos fazem sentido.

No fim de semana, houve conflito aberto, na esquerda, entre os das pontes e os dos muros. Os primeiros acreditam que só um grande concertamento tático de todas as forças dentro do espectro republicano garante a derrota do bolsonarismo e a proteção das instituições democráticas. Os dos muros acham que fazer pontes e alianças táticas e eventuais pode ser péssimo para manter mobilizados os seus, reafirmar os próprios valores, marcar a própria diferença no mercado eleitoral e, eventualmente, expandir. O importante é determinar quem somos nós e se preparar para ganhar a luta com quem aderir. Há muitos defendendo esse ponto de vista, mesmo que camuflado em outras narrativas (como a de que “com fascistas não conversamos”), como faz o PT.

É muito difícil dizer, a este ponto, quem está certo em termos de eficácia estratégica. Mas o fato é que os revezes sofridos por Bolsonaro (que só constrói muros) nesses dias, em vez de desmotivar os que preferem falar para dentro dos seus grupos, reforçou ainda mais o ânimo destes. “Se Bolsonaro está fraco e não houver outra alternativa eleitoral de impacto, talvez possamos ganhar sozinhos”, pensam os petistas, enquanto escolhem os saltos que irão envergar. Talvez estejam certos, quem sabe?

E, para estes, não adianta repetir que frente ampla não é passeio no parque com os amiguinhos, mas aliança eventual e tática com qualquer um que queira ficar do lado de cá da trincheira para enfrentar um inimigo comum. Não precisa ter amor, sexo, intimidade, afinidades eletivas, só precisa de uma meta.

O fato é que na metade de setembro, na política nacional, há bem mais interessados em reforçar as muralhas e polir a própria identidade do que interessados em construir pontes, ainda que, como discurso de fachada, o PT e a direita possam negar isso veementemente. A realidade é que se o bolsonarismo está interessado em muralhas, o PT também, o PDT faz pontes seletivamente com quem não for do PT, e o movimento Vem Pra Rua mostrou, na manifestação do domingo passado, que prefere que o seu protesto morra do que se arriscar a ser visto numa “frente ampla” com os petistas que ontem mesmo jurava eliminar da face da terra. Nem a direita antibolsonarista parece interessada em aparecer junto com o PT, que tem força e número, nem o PT parece interessado em juntar-se a quem quer que seja, da direita ou mesmo da esquerda, sem que ele próprio esteja no comando.

Evidência disso foi uma guinada superagressiva dos petistas online, neste fim de semana, contra lideranças da esquerda que resolveram ir a protestos convocados pela direita. A este ponto, parece claro que acham que Bolsonaro já era e que é bastante torcer e trabalhar para que nenhum outro candidato competitivo entre em cena. Talvez seja uma estratégia eficaz, quem sabe?

Bem, a esquerda é pródiga em achar razões para se dividir. Nuns dias são ideias, em outro são nanodiferenças “importantíssimas”, noutros ainda são as mágoas e os ressentimentos. De vez em quando, é a consciência da própria sublimidade moral. Tudo serve. A política brasileira virou exatamente isso.

A ideia de frente ampla ante um inimigo comum já pode ter o seu atestado de óbito expedido e, paradoxalmente, a ideia de que é preciso e possível construir e enfrentar muitos inimigos ao mesmo tempo prospera. Os Nem-Nem da direita querem enfrentar bolsonaristas e lulistas ao mesmo tempo; Ciro ataca Lula e Bolsonaro e espera, na tocaia, que o capitão não esteja no segundo turno; petistas parecem interessados em tourear Bolsonaro e, ao mesmo tempo, bombardear a possibilidade de uma terceira via. E Bolsonaro, é claro, abre fogo contra todo mundo.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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