De quando éramos antes

De quando éramos antes

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2021 é “memória”


O que me encantava era o gesto enquanto ela dizia, de maneira pausada e calculada Eu não sou mais a mulher que você conheceu e isso vinha com uma legenda pra mim de que toda aquela paixão que eu pensei que tivéssemos se esvaiu em algumas de suas andanças pelo mundo ao longo dos anos. Eu me lembro de nossa despedida na catraca do metrô. Ali não fumávamos como passamos a fazer, nem bebíamos tanto. Éramos jovens e já vivíamos as experiências dos desencontros, desses que só sabem contar grandes romancistas. Eu me desencontrei de si e passamos então a nos desencontrar todas as vezes que marcamos um café, um vinho, um papo, uma transa. A cada momento éramos estranhos, ficando de nós uma lembrança de um fio de fumaça, emanada de um cigarro fino, aroma bom e a promessa de que jamais voltaríamos a nos ver. E continuava me encantando seu gesto calculado de tragar e baforar a fumaça na minha cara, desculpando-se a cada vez a cada ano, eu não sabia se pela cuspida de fumaça, se pelo sumiço de meses ou se pelo reaparecimento repentino e aparentemente desinteressado de uma mensagem eletrônica dizendo: estou aqui, vamos nos ver? Eu ia. Era a minha viagem aos seus seios que eu buscava, que eu acho que nunca vi e aprendi a descobrir em tantas outras mulheres, adivinhando formas e gemidos seus que eram doutras.

Agora que sentido isso faz? Verdadeiramente, muito pouco. Há uma falta que não se preenche, uma noite dentro da noite que não oferece nenhuma resposta mais profunda que o negrume. Há apenas isso. Dias num portão, olhares voyeurs por andares de prédio, ventos, brisas, sol. E nada além da culpa, talvez, pela existência de ainda poder me esconder de um inimigo nanométrico que pode penetrar em mim, em nós, pelo ato de respirar. Um inimigo viral ou um agente do destino? Eu me escondo e as lembranças de um tempo anterior invadem com toda a força que podem ter. É apenas isso. E desta forma, os nossos desencontros pelo mundo fazem apenas ser o que eles são, o sabor de uma fruta mordida, a promessa de uma semente cuspida à terra, desejosa que seja frutífera, para dias melhores que não virão.

Quando nos encontrarmos eu poderei dizer a ela, como em nossa última vez juntos, que também não sou mais aquela pessoa que a conheceu. E eu já nem me lembro bem dela, aquela pessoa. Há qualquer coisa de outro mundo agora, de fantasmas assaltando a razão, fantasmas que saem dos armários, de gentes dizendo coisas que apenas pensavam e agora, sem qualquer cerimônia, parecem todos terem permissão. Não significa que eles não estivessem por lá antes. Apenas os ignorávamos, como a velha chata, o tio idiota do churrasco, o engraçadinho do almoço de domingo, da confraternização de fim de ano da firma, aquela moça que bebia demais e se excedia. E por aí ia. Fingíamos, ignorávamos e era sempre com Os Outros. Agora não. Fantasmas que julgamos ter enterrado, mas agora os mortos não têm mais sepulturas suficientes, em lugar algum do mundo. Eles se acotovelam pelas ruas. Dizem sentir falta de liberdade, de ter sonhos com o Terceiro Reich.  E agora eles têm, nós temos, permissão para desprezarmos os negros, espancarmos as mulheres, queimarmos os índios, fazermos lives para explicarmos sobre que não importa muito que morram cinco ou sete mil de nós, por dia, pois o Brasil, por exemplo, não pode parar, o dinheiro precisa dançar, bailar, num mundo que se movimenta, numa terra que antes eles diziam ser plana. Acreditaremos que um dia eles disseram, há poucos meses, que a terra era plana. Não podemos esquecer. E acreditaremos que eles disseram que não importava muito cinco ou sete mil mortos, que fossem velhos. Hoje já passamos dos quinhentos mil, em covas rasas e sem jazigos. Não podemos esquecer. São e foram velhos, jovens, moços, bonitos, brancos, pretos, com ou sem histórico de atleta. Acreditaremos que o presidente disse que não pegaríamos a doença aqueles que, como ele, tinham histórico de atleta. Não podemos esquecer. O mundo gira e a Terra não é plana. O Brasil não pode parar e a frase ribomba nos ouvidos enquanto observo as saúvas no quintal, colhendo, picando, carregando pedaços de flores, folhas, sementes, restos de bagaços das jabuticabas bicadas por sanhaços ou por mim e pelos cachorros, carregando sobre seus lombos – na falta de melhor descrição da anatomia das saúvas – dezenas de vezes o peso de seus corpos, atiçadas por saúvas ainda maiores e cabeçudas, de ferrões poderosos. Escalando paredes, como Sísifos dos insetos, sendo dia ou noite, sol ou sombra. Há aí qualquer coisa de análogo, qualquer coisa de lição malfeita para aprender quando concordamos todos com isso, sim todos, e sim mesmo agora que parar é um verbo que nos oferece ação de opção para alguns.

Eu não sou mais o mesmo homem de antes e não quero mais retornar para aquele mesmo mundo de antes. Eu não a encontrarei, tampouco os seus seios, de como eram antes. Sentiremos saudades um do outro? Talvez. Daquele mundo de quando éramos antes? O vento gargalha.

 

Mário Augusto Medeiros da Silva, 39, é paulistano. É professor da
Unicamp e autor de dois livros de contos. Gosto de Amora (editora
Malê, 2019) e Numa esquina do mundo (editora Kapulana,
2020). Gosto de Amora foi finalista do Prêmio Jabuti 2020, na
categoria contos.

 

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