A TV pública é importante?

A TV pública é importante?

Uma TV pública e uma TV estatal valorizadas podem ser o desejado ponto de equilíbrio com a televisão comercial

Gabriel Priolli Jr.

A televisão pública é importante para o Brasil? Vale a pena o Estado gastar dinheiro na montagem de um sistema público de televisão quando o país tem tantas carências? Esse gasto não fica ainda mais injustificado se considerarmos que a televisão pública existente tem baixa audiência e, portanto, interessa a pouca gente? Reformar essa TV pública, para que fique atraente e aumente a audiência, não interessa apenas ao governo – ou ao presidente Lula, no caso – para promovê-lo? Não é melhor termos apenas canais comerciais, que são pagos pela publicidade privada e não oneram demasiadamente o Estado? 

Essas e outras questões correlatas estão na ordem do dia no país, desde que, em fevereiro último, o ministro Hélio Costa, das Comunicações, anunciou que estava desenvolvendo o projeto de uma rede pública de televisão, a pedido do presidente da República, e que estimava preliminarmente o custo de implantação em R$ 250 milhões. O anúncio causou um compreensível impacto na mídia privada, que logo enxergou na nova rede um ralo pelo qual escoariam os recursos financeiros a ela destinados na forma de publicidade estatal. Pautada por essa ótica, mas sem explicitá-la, a mídia vem fomentando um estridente debate da proposta, com o unilateralismo, a imprecisão e as distorções, que mostra sempre que o tema em discussão é a própria mídia. E apesar do alarido e dos meses já decorridos, a opinião ­pública ainda não consegue avaliar com segurança se uma rede pública de televisão é ou não importante para o Brasil. 

Analisando em profundidade a televisão brasileira e suas conexões com a vida social, econômica e política, a resposta é clara e objetiva: sim, a TV pública é importante. Mais que isso, ela é indispensável. E não se trata apenas de construir uma rede de televisão federal, sob controle do Poder Executivo, mas de promover uma ampla reforma de todo o sistema público e estatal de TV, que transcende em muito o projeto do governo Lula e pode desempenhar um papel decisivo para o aperfeiçoamento e a democratização da comunicação eletrônica em nosso país. 

A televisão brasileira, como se sabe, surgiu em 1950 e se desenvolveu sob exclusivo regime comercial privado até 1968, quando entrou no ar a primeira emissora educativa do país, a TV Universitária de Recife, ligada à Universidade Federal de Pernambuco – portanto, uma emissora estatal. Nesses 18 anos em que reinou sozinha, a TV comercial teve todo o tempo e as condições necessárias para se organizar de forma a prover aos telespectadores o que a legislação de radiodifusão obriga: entretenimento, informação e educação. Mas não foi o que ela fez. A TV comercial se especializou na oferta de diversão, limitou os conteúdos informativos e esqueceu quase completamente os educacionais. Desequilibrou a programação, em favor de conteúdos de apelo mais fácil, de maior atratividade e, conseqüentemente, de maior rentabilidade. 

Não fez isso, convém dizer, por algum instinto malévolo, ou por compulsão ao descumprimento da lei. Fez porque é da lógica da operação comercial de televisão. Se uma emissora desse tipo oferece programas à fruição do público, ela se remunera oferecendo o público que consegue prender diante da tela aos anunciantes, que lhe pagam as despesas e garantem o lucro. Assim sendo, a regra é inexorável: quanto mais audiência, mais faturamento. E se a acumulação de audiência é a condição para a rentabilidade, ela se transforma no principal objetivo da operação e tem de ser atingida a qualquer preço. Mesmo ao preço do rebaixamento dos padrões estéticos e éticos, eventualmente a níveis intoleráveis, como os da chamada “baixaria”. 

A televisão pública, nascida formalmente educativa, veio como uma tentativa de reequilibrar o cenário televisual, para dar ao público o que a TV comercial sonegava: informação e, sobretudo, educação, considerados produtos televisivos de prestígio, mas de baixa ou nenhuma lucratividade. E já veio com forte viés estatal, porque o Decreto-Lei 236, que a instituiu em 28 de fevereiro de 1967 e segue em vigor, faculta a possibilidade de requerer outorgas de radiodifusão educativa apenas a governos, fundações e universidades. Nos últimos 40 anos, os três níveis de governo, as fundações públicas e as universidades federais conquistaram a maior parte das outorgas educativas. 

A missão de reequilibrar o sistema televisual, entretanto, não foi cumprida pela TV educativa. Cronicamente carente de ­recursos e apoio político, limitada por uma legislação canhestra, presa à concepção equivocada de uma teleducação receosa de divertir enquanto ensina, a TV educativa nunca conseguiu seduzir o grande público, a ponto de rivalizar com a TV comercial nos índices de audiência. Colecionou êxitos, alguns enormes (Vila Sésamo, Rá-Tim-Bum, Vox Populi, Roda Viva), mas limitou-se, em geral, a uma audiência periférica, raramente superior a 5% do universo de telespectadores, o que comprometeu o seu desenvolvimento. 

Com as políticas de privatização e de enxugamento das funções do Estado, adotadas no país a partir dos anos 1990, a situação da TV educativa deteriorou ainda mais. Os orçamentos minguaram a um ponto quase insustentável e a saída foi buscar dinheiro onde quer que ele estivesse disponível. A tentação de recorrer ao mercado anunciante, dessa forma, foi irresistível. Com malabarismos jurídicos e boa dose de tolerância dos organismos de fiscalização, a TV educativa contornou as restrições legais e se abriu à publicidade comercial. Para atrair o novo financiador, reduziu os conteúdos formalmente educativos, apostou no entretenimento mais qualificado, e acabou por se designar TV pública, para não soar tão aborrecida e sisuda como os telespectadores – e sobretudo os anunciantes e seus publicitários – supõem ser a televisão de finalidade educacional. 

Para complicar ainda mais o quadro, produziu-se a partir de 1995 uma nova inflexão na trajetória da televisão não-comercial brasileira. A lei federal 8977, conhecida como Lei da TV a cabo, abriu espaço para novos tipos de televisão pública, de carregamento obrigatório pelas operadoras de cabodifusão: a TV comunitária, a legislativa, a universitária e a institucional. Surgiram, em conseqüência do dispositivo legal, emissoras como a TV Senado, TV Câmara, TV Justiça, NBR (emissora da Radiobrás, empresa pública federal), TVs Assembléia, TVs de Câmaras Municipais, canais universitários e canais comunitários. Somados às antigas emissoras educativas abertas, eles constituem hoje o chamado “campo público da televisão”, com cerca de 180 canais geradores de conteúdo e uma rede de retransmissão e repetição do sinal que atinge quase 3.000 municípios brasileiros. 

Trata-se, portanto, de uma ampla estrutura de comunicação eletrônica, que vem cumprindo, em parte, relevantes serviços à educação, à cultura e à formação de cidadania no país. Mas que poderia fazer muito mais, muito melhor e beneficiando mais gente se merecesse, tanto da sociedade quanto dos poderes públicos e até do mercado, a mesma atenção que é dispensada à TV comercial. É essa demanda que vem à tona com toda a força, neste momento em que o governo federal decide reformular e articular os canais que detém, para constituir uma nova rede pública de televisão. 

A tarefa que coube ao ministro Franklin Martins, de coordenar, a partir da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, mas com participação ativa da Casa Civil e do Ministério da Cultura, não é pequena, nem simples. Implica em fundir as estruturas da Radiobrás e das TVEs do Rio de Janeiro e do Maranhão, o que é obra complexa de administração pública federal. Mas implica também promover uma relativa desestatização dessas estruturas, posto que o presidente Lula já deixou claro que não quer uma “TV chapa-branca” e deseja uma nova rede efetivamente constituída em molde público. Trocando em ­miúdos, significa entregar a nova rede ao controle de um con­selho gestor composto por representantes da sociedade, com participação minoritária do Estado, e infenso à pressão dos interesses governamentais. 

É assim que a nova TV Brasil (nome provisório) vem sendo gestada. Para ser uma rede que promova a educação, a informação e a cidadania, com entretenimento de qualidade, sem concessões ao comercialismo e seus imperativos. Para servir ao país e não à publicidade de Lula ou de seu governo. Ao menos, são essas as intenções iniciais, que as circunstâncias políticas permitirão ou não se materializarem. Dinheiro não faltará, porque se anuncia a disponibilização anual de R$ 350 milhões do orçamento federal para o projeto – quase o mesmo volume de recursos, de R$ 450 milhões, que toda a televisão não-comercial brasileira movimenta hoje anualmente, somados os canais de todos os tipos, na radiodifusão ou na cabodifusão. Se parece muito dinheiro, considere-se que a TV Brasil custará oito vezes menos que os R$ 3,6 bilhões que a TV Globo, apenas ela, faturou em 2006.  

É um investimento plenamente justificável para os efeitos positivos que pode produzir. Mas será insuficiente se a implantação da TV Brasil for a única iniciativa estatal para a televisão pública. Se ela não for acompanhada da reformulação de todo o campo público da televisão, com medidas de atualização regulatória, de fomento gerencial e financeiro, e, sobretudo, de disponibilização da variedade de canais não-comerciais da TV a cabo também aos telespectadores da TV digital aberta, o país não atingirá a “complementariedade dos sistemas privado, público e estatal de televisão”, prevista no Artigo 223 da Constituição Federal. Nem a preferência a finalidades educativas, o estímulo à produção independente e a regionalização da produção, como dispõe o Artigo 221. 

O Brasil já tem uma TV comercial poderosa, reputada e amada pelo público. Pode ter um dos melhores sistemas de televisão do mundo, se a TV pública e a TV estatal também forem valorizadas e puderem efetivamente servir como ponto de equilíbrio, em ética, qualidade, compromisso social e isenção política. É o que cabe aos brasileiros construir, em favor das gerações futuras.’

Gabriel Priolli Jr.
é jornalista e dirige o Núcleo de Eventos e Publicações da Fundação Padre Anchieta/TV Cultura. É presidente da Associação Brasileira de Televisão Universitária e supervisor-geral da TV São Marcos, produtora de audiovisual da Universidade São Marcos

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