Giberto Braga: a Globo e o artista I

Giberto Braga: a Globo e o artista I
A atriz Beatriz Segall (Foto: Reprodução/Globo)

 

É sabido que as esquerdas ativas e combativas nos anos de 1970 desprezavam solenemente a televisão, suas novelas e a sua apresentação vitoriosa da cultura de massas, através da imagem mercadoria e da expansão controlada do mercado de consumo, de fato o novo horizonte de subjetivação e de biopolítica no país. Aquela conquista geral da cultura capitalista dos corações e das mentes da vida popular brasileira, organizada de fato no mundo da vida pela TV tornada comum no país, sincrônica dos massacres, das torturas e dos assassinatos ditatoriais, era intolerável de ser compreendida e não podia ser vista de frente, na lógica dos próprios poderes que enunciava tanto quanto celebrava.

Durante a década, decisiva do ponto de vista da nova subjetivação, que hoje e só agora se chama de neoliberal – após Foucault um dia, nos anos de 1980, finalmente dizer que as pessoas se tornaram plenos sujeitos regulados somente pelo mercado –, as esquerdas brasileiras estavam mobilizadas em processos de grande violência, de crise de perspectivas políticas barradas e, enquanto o mundo acontecia ao redor, lutavam uma guerra de liquidação, em muitas frentes. Não tinha tempo, evidentemente, por isso e deste modo, de ver novelas de televisão, estudar a sua ruína, e a sua reconstrução. Nem as ruins, nem as boas.

Envoltas no rescaldo da derrota violentíssima da tentativa de jovens universitários de classe média de estabelecer uma guerra revolucionária contra a ditadura, a partir do final dos anos 1960 (figurados na história em transição da personagem Julia, por Gilberto Braga, em Dancing Days…); bem como no choque desagregador total da política de representação institucional, deformada pelos efeitos do AI-5 através do qual a ditadura censurava com satisfação e, ainda em 1975, 1976 e 1977 caçava deputados eleitos ao gosto dos generais; concentrada na tentativa de convencer por conciliação os militares a deixar o poder, em um processo político controlado inteiramente por eles; e um pouco reorganizada, no fim do período, em uma nova perspectiva trabalhista sindicalista que ganhava relevância com a grande industrialização recente – usina social de infraestrutura centrada na indústria automobilística que era a mesma vanguarda, fonte de todo o amor pela mercadoria e pela modernidade conservadora de massas nas televisões que se expandiam pelo país.

Do movimento popular de operários que levaria às greves por salário e por representação, e não por socialismo, de 1978 e 1980, origem do PT, e que fariam de Lula – retirante do anos 1960, operário e sindicalista dos 1970, líder partidário de esquerda nova, vínculo da esquerda intelectual com os pobres através da indústria e seus desígnios de consumo, conservadores… – a solução de compromisso possível entre o desejo de sociedade melhor e a lógica real do trabalho, do mercado e do consumo; as esquerdas ilustradas e críticas brasileiras, movidas então um pouco por Chico Buarque de um lado e um tanto por Caetano e Gil de outro, por algum teatro político isolado e pela nova prática e sociologia universitária de pesquisa científica e de departamentos, pouco ou nada prestavam atenção aos processos fortes da poderosa indústria cultural que avançava, sua subjetivação e seu controle imaginário, produção de sujeito e de desejo, que estavam à sua frente.

O pensamento crítico entre nós quase nada sabia da vanguarda técnica da representação total da vida no país, operada pela televisão, de fato pela rede nacional eleita pela Ditadura, a Globo, e sua verdadeira biopolítica: o que se deve fazer, pensar e desejar para viver naquele mundo.

Diferente do pensamento de Antonio Gramsci, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Guy Debord, marxistas atentos às modificações da vida subjetiva na modernidade da explosão da cidade da mercadoria desde o século 19, pelo mundo da eficácia técnica e pela ciência do fetichismo que acompanhava de perto a luta de classes, que em 1920, 1930, 1945, 1960 e 1970 apontaram para a força de conquista do desejo e da própria estrutura do eu, da dinâmica técnica da produção de cultura – de modo a se administrar as subjetividades, oferecer imaginário ligado à vida alienada do trabalho e orientar a vida de trabalhadores para a própria reprodução geral do Capital, nas imagens, nas lojas e nas cidades – a esquerda brasileira dos anos 1960 e 1970 – formada na teoria comunista comum da tomada socializante dos meios de produção fundamentais, e da terceiro mundista nacionalista de ruptura com o Capital internacional que submetia, enquadrava e reduzia as possibilidades de desenvolvimento social – não era capaz de observar o sentido e o poder da ordem nova, baseada certamente em repressão direta, da conquista subjetiva geral pelo avanço e multiplicação da forma mercadoria, da indústria da cultura organizada e sistemática, entre o seu jornalismo, a sua dramaturgia e a sua propaganda, da vida dos pobres orientada para estes desejos.

Não foi por acaso que Lula, um homem pobre do Brasil, qualificado pela própria indústria automobilística, sabedor do desejo conservador do carro, da televisão, da comida na geladeira e do shopping no fim de semana do povo brasileiro – rigorosamente o mesmo projeto de fundo da imagem de modernização controlada e excitada da novela e da grade geral de propaganda da própria televisão entre nós… – tenha, por fim, totalizado o campo da esquerda no país. Era ele o corpo que enfeixava em si o pacto de sociedade modernizada, seus meio direitos sociais e humanos, sua alienação forte no trabalho, sua exclusão tolerada e sua festa geral da mercadoria. Isso, lembrando um pouco aos poderes originais radicais da concentração no Brasil, que seriam necessários para realizar o projeto, se acaso ele fosse verdadeiro, de liberar alguma renda da hiperconcentração brasileira, para alcançar aquele modelo de capitalismo norte-americano, como dizia Gramsci sobre ele desde 1919. Nada a ver, a princípio, como o destino das coisas deixaria claro, com as ilusões e mitificações de socialismo e independência terceiro mundista dos anos de 1950 e de 1960. Lula e Globo, em certa dimensão das coisas do Brasil, ao contrário do que pensa o sistema de slogans, tão simples quanto os do fascismo, para o autoconvencimento obsessivo do mundo de certa esquerda, tinham uma ligação eletiva de fundo, civilizatória, por assim dizer.

Até onde pude estudar tal processo de não entendimento material, e político, do poder ideológico da nova técnica universal sobre a massa trabalhadora do Brasil que, em conjunto com a polícia de extermínio de sempre, orientava com sistema a consciência popular para a vida de um tênis, uma calça, um carro, um churrasco, uma novela e, mais tarde, um celular, uma viagem para a Disney, uma maquiagem para brilhar no Instagram ou uma festa funk, gerando, com o tempo, uma nova espécie de classe trabalhadora ostentação, afeita à propaganda tanto quanto a classe média branca que a explorava nas casas e nas fábricas do país – efetivamente consumista e de mínima exigência como princípio de cultura e de desejo – tal processo histórico só foi tocado rapidamente como problema crítico por Roberto Schwarz, na inquietação de seus textos sobre a guinada da cultura crítica do final dos anos 1960 no Brasil.

Ao anotar com precisão a ruptura do pacto entre cultura crítica e alguma organização política dos pobres, realizada à bala pela Ditadura, Schwarz percebeu, pela primeira vez, o horizonte de um novo modo ideológico de produção de forma em que os artistas tidos por mais avançados do tempo escancaravam o desejo atualizado, que inaugurou a lógica pós-moderna entre nós, de fusão de vanguarda e conformismo, através da nova indústria da cultura. A arte e a cultura críticas ganhavam outro estatuto, que nada tinha a ver com a força antissocial e antiburguesa das vanguardas artísticas históricas, de homens como Picasso, Klee, Kafka, Brecht, Benjamin, Schoemberg ou Adorno, Godard, Antonioni ou Glauber Rocha. O crítico escreveu, pela primeira vez entre nós, sobre a excitação e o novo cinismo de inserção e assimilação de músicos hiperinformados da vanguarda estética da época, que também viam no mercado e na propaganda um bom destino para sua arte… Isto valia tanto para a música erudita, de um Gilberto Mendes ou de um Júlio Medaglia, quanto para a popular, dos jovens tropicalistas e seu maestro, Rogério Duprat, e para a poesia concreta de um Décio Pignatari, dono de agência. Espetaculares artistas de vanguarda e propagandistas comuns do mercado se encontravam pela primeira vez na história, no ato radical da Guerra Fria de encerrar, com uma Ditadura Militar de vinte e um anos, as perspectivas modernas de emancipação de um país periférico.

Percebendo o sinal da guinada de artistas rumo ao show conservador da cultura de mercado, sem mudança na cumulação e na estrutura de renda, acesso à terra e exploração primitiva da vida dos pobres no país, Roberto Schwarz chegou a pensar um pouco diretamente sobre o poder, ou não, da cultura de consumo, que aparecia pela primeira vez para a consciência crítica local. Em 1970, no trabalho em que comentou a situação cultural e política do Brasil a partir da Ditadura, publicado na revista moderna radical, de engajamento mundial revolucionário, Temps modernes, de Sartre, o crítico escreveu:

O país está igual, onde Goulart o deixara, agitável como nunca. A mesma permanência talvez valha para a cultura, cujas molas profundas são difíceis de trocar. De fato, a curto prazo, a opressão policial nada pode além de paralisar, pois não se fabrica um passado novo de um dia para o outro. Que chance tem os militares de tornarem ideologicamente ativas as suas posições? Os pró-americanos que estão no poder, nenhuma; a subordinação não inspira o canto, e mesmo que consigam dar uma solução de momento à economia, é ao preço de não transformarem o país socialmente; nestas condições de miséria numerosa e visível, a ideologia do consumo será sempre um escárnio.

Percebendo a crise radical, entre uma cultura derrotada orientada para a liberdade e para as consequências sociais de suas ações, um estado policialesco que congelava as opções e a falência de uma cultura conservadora nesta ordem de tensões modernas globais, Roberto Schwarz evoca pela primeira vez a solução social cultural total, possível para a Ditadura no Brasil: a criação de uma sociedade de consumo de massas. Ao mesmo tempo que intui ser este o destino das coisas, o crítico não consegue conceber como, com grande população de miseráveis e excluídos, seria possível no Brasil uma hegemonia de tipo elogio do consumo e da mercadoria. Bem posicionado com os movimentos da história, ele intuiu o destino de tudo aquilo, na solução da Guerra Fria capitalista para um país periférico importante, mas esfrega os olhos e vê nela uma miragem, dada a ordem real da violência da exploração e da exclusão da renda social na sociedade fraturada. Ele não acreditava, então – no mesmo momento que o advento tecnológico novo do satélite punha o campo cultural mundial do espetáculo em fase sincronizada, aqui representada pela Globo – que tal solução estrangeira, técnica e industrial, farsa distante das vidas reais, seria viável para o país.

Intuía tudo, mas não considerava produtiva a força da repressão política, que se estenderia de fato por toda uma década, e a nova força da sedução espetacular da gestão fetichista da vida, que emergia no tempo, pela centralidade da forma social total da televisão moderna. Duvidava delas serem verdadeiramente capazes de criar o que criaram, uma sociedade de massas de desejo e biopolítica de consumo em país de grande manutenção de pobreza e miséria. Foi exatamente este o ponto de leitura da história e das suas forças maiores de produção, de sujeitos, que fez a superioridade formal, conceitual e desejante da visada, ainda em 1967, de Alegria alegria de Caetano Veloso para a cultura, superior e vencedora, em relação à velha imagem do povo brasileiro herói que, como exército de libertação nacional, ainda faria com seu braço e seu cavalo a revolução da esquerda na nova ordem que se instalava a pau de arara e imagem técnica mundial.

Apenas nos anos 1980 setores críticos da esquerda, sabendo por fim de uma nova teoria universitária da comunicação, e tendo que se haver com a real nova hegemonia da cultura de massas no Brasil, se deteriam sobre a tomada de posse do espaço público e imaginário nacional pela televisão, seu controle dos fluxos e política de afirmação do grande mercado e o seu balanceamento modernizante da grande ditadura concentracionária brasileira, pela via da legitimação da vida do mercado e do consumo como continente da cultura. Ver, nesse sentido, Signagem da televisão, de Décio Pignatari (Brasiliense, 1984); Um país no ar, de Inimá F. Simões, Alcir Henrique da Costa e Maria Rita Kehl (Brasiliense, 1986); e Telenovela, história e produção, de Renato Ortiz, Silvia Helena Simões Borelli e José Mário Ortiz Ramos (Brasiliense, 1989). 

A televisão havia então totalizado a vida simbólica e dava perspectivas de fato, entre o presente e o futuro, do país. Percebia-se, então, como a rede nacional de comunicação Globo, seu sistema imenso e ambivalente de produção e seus agregados talentosos no sistema de publicidade e das artes, foi a verdadeira origem da cultura moderna conservadora da Ditadura Militar brasileira. Sua política cultural real.

Não foram os últimos agenciamentos do nacional e do popular, das negociações tardias dos cineastas cinemanovistas com a Ditadura, e suas ilusões de um cinema democratizante e crítico a um tempo – com Bye bye Brasil de Cacá Diegues registrando o fim da própria proposição – ou dos grupos de teatro, de dança e de cultura local, nas grandes cidades, ou o desejo de intelectuais socialistas de educação crítica, ou de crítica material da vida, e ainda nenhum tipo de literatura moderna ou contemporânea do tempo, que deram o tom, a liga e fizeram a vida da cultura brasileira dos anos 1970. Como todos sabemos, foi a Globo, seu jornalismo e sua teledramática, e seu sistema geral de coordenação da cultura como consumo. Essa espécie de dispositivo biopolítico total organizou a reversão da consciência do país em uma cultura da excitação geral de mercado.

Com ela, surge também uma primeira quase memética geral nacional – se pensarmos o fenômeno contemporâneo nas redes em sua natureza de retórica imagética de propaganda – então televisiva: a ocupação do mundo da vida pela publicidade, a imagem mercadoria voando rápida, leve e feliz entre todos – exatamente como ela apareceu na música original de Caetano Veloso de 1967, do mundo mágico das coisas em expansão no Brasil. Minha geração de classe média urbana que crescia nos anos 1970 se lembra ainda hoje dos efeitos profundos, do laço de imaginação e fé, produzidos pela sedução generalizada da imagem e som, sem densidade, próprios da imagem televisiva, das propagandas sem fim de chocolates, brinquedos, sucrilhos, iogurtes, sabão em pó, calças jeans, bicicletas, cobertores, fogões, geladeiras, aspiradores, motos, carros e papel higiênico… e uma infinidade de imagens coisas de um mundo que se duplicava, pela televisão, em nossa vida contida. Mundo vivo deste modo.

O projeto era bem claro na consciência dos que o produziam, embora obscuro, como nova ordem forte de produção de vida e cultura, de reprodutibilidade técnica total, para a esquerda em conflito de vida e morte com a ditadura, dividida, então, entre a conciliação e alguma modalidade tardia de contra-cultura ou desbunde de inserção. Em palestra na Escola Superior de Guerra, em 1975, o administrador da TV Mauro Salles dizia “motivação política, formação da vontade nacional, são tarefas impossíveis sem uma ampla sistemática de comunicação social livre e apoiada em todas as mídias em todos os veículos”. Tal projeto tinha então projeção social tão forte, a partir da televisão, que o executivo chegava a exigir desenvolvimento econômico social para completar o quadro político/biopolítico: “a fome e a marginalidade não são o caldo de cultura para a formação de uma opinião pública sadia, por isso vimos o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, anunciado exatamente a um ano atrás, dar nova ênfase aos objetivos sociais de governo e, em termos econômicos, apontar fortemente para o mercado interno como plataforma cada vez mais necessária à continuidade do processo brasileiro”.

Como se observa, há correspondência com o projeto de afirmação do mercado de consumo interno lulo-petista de trinta anos depois, como forma econômica social de completar a ordem capitalista no Brasil. O homem da televisão já era então um político progressista da integração social pela renda e pelo mercado: “é tarefa urgente da economia brasileira e do parque de comunicações sociais do país: incorporar ao mercado de consumo o quarto estrato da população – cerca de 20 milhões de brasileiros; são os sub-brasileiros, de responsabilidade de toda nação. Na miséria na fome na opressão e na desesperança não existe opinião pública”.

Nas palavras de Maria Rita Kehl, em meados dos anos 1980, sobre aquele discurso do executivo da TV aos gestores políticos de um Estado autoritário, os militares capitalistas conservadores do tempo, “a televisão é o ponto de confluência onde se resolve simbolicamente a relação entre o poder político, o poder econômico e as necessidades da população. O poder político concessionário (e consequentemente policialesco), o poder econômico do qual a TV depende mais que qualquer outro veículo pelos seus altos custos e sua voraz necessidade de publicidade, e o poder público, tão abstrato durante a década passada, mas que justamente por isso se manifestava nem tão passivamente quanto possa parecer, em suas opções de consumo, inclusive cultural, de comportamento”.

Assim se congregavam a engenharia social e de linguagem da televisão de massas com sua perspectiva de construção de realidade política, comprometida no fundo com a ideia de opinião pública, modulada por ela, radicalmente ligada à formação do sujeito do consumo, individual e coletivo. A democracia, daquele ponto de vista, seria uma sociedade de opinião, gerida por meios de comunicação de massas e seus textos gerais, pactada na raiz no desejo comum como sociedade industrial de consumo.

Sociedade de classes, feliz nos textos que a representavam no espaço psíquico das massas e conservadora do princípio geral de reprodução da vida como vida para a forma geral da mercadoria. Os homens da televisão, que produziam cotidianamente este mundo, estavam ao menos 10 anos na frente no destino do capitalismo brasileiro e da Ditadura, que inevitavelmente era entrave à democracia entendida nestes termos. Para não dizermos 30. A ditadura controlava de forma autoritária a exclusão tradicional brasileira, contendo mercados, e não realizando-os, como pressupunha a nova biopolítica da televisão. Os homens da TV falavam isso, na cara dos militares brasileiros, autoritários e conservadores de tipo antigo.

Assim, outro administrador da Globo, Walter Clark, explicitava ainda mais a lógica, de infraestrutura política, econômica e simbólica da televisão, em 1976: “esta é a importância maior da comunicação em um sistema produtivo: transformar a população em um mercado ativo de consumo, gerando a disposição ao consumo, relacionando cada bem, produto ou serviço ao extrato social a que está destinado, atingindo simultaneamente a todos os extratos e imprimindo mais agilidade ao mecanismo produtivo”.

E Mauro Salles completava, reconhecendo os efeitos culturais e políticos de tal gigantesco processo de transformação da população por princípio: “a Indústria Cultura realizou algumas revoluções pacíficas nos últimos 20 anos: o fenômeno hippie, a contracultura, a conscientização do consumidor como força política, a luta ecológica por melhor qualidade de vida, a política do lazer, a explosão do turismo internacional, a destruição dos preconceitos internacionais, a emancipação feminina, a revolta contra a massificação da moda”.

Assim, era sociologicamente avançada a atenção aos processos de sentido no âmbito do movimento da vida das massas, dos circuitos mais gerais de pensamentos sociais, das novas práticas de mercado ampliadas e das novas éticas modernizantes, incluindo entre elas, já em 1977, contracultura, feminismo, ecologia, e opinião pública crítica, tudo entendido como processo regulado pela televisão, ligado ao desejo geral de fundo de mais mercado.

Como dito, as tribulações políticas difíceis da esquerda nacional a impediam em grande medida de reconhecer criticamente com precisão a força de tal processo, mesmo sendo ele total. Mesmo ele estando na raiz da sociedade totalmente recoberta por imagens e hiperexcitada que vivemos hoje, que se formava de fato lá, no amor simples pela imagem em movimento e seu duplo na forma mercadoria. Esta dificuldade crítica com o meio político e seus discursos, como dispositivo total, pode ser observado claramente no modo de, até a década de 1990, ou até mesmo os anos 2000, se compreender a dramaturgia das novelas, das séries, dos programas humorísticos de massa, sem considerar sua força social e política possível da própria forma ou formação. Com todo o poder de articulação do desejo público do meio, assim mesmo, quando se detia sobre as novelas, tal entendimento tratava o novo produto eletrônico sempre como o velho formato folhetim, de raízes melodramáticas arcanas, e transmissão de ideologia direta e fácil.

Não havia possibilidade de trabalho de pensamento social reflexivo, formalmente crítico e dialético, no interior do processo geral de sedução da consciência das massas para a aceitação de uma realidade brutalmente violenta e excludente. Nem da sua transformação de uma população em mercado de consumo. Nem da preparação, desde aí, de uma sociedade para uma democracia nestes termos.

Assim, nas avaliações da televisão dos anos 1980, e das telenovelas que congregavam milhões em todo país, em uma experiência unificada de fantasia nacional desde o Rio de Janeiro, de uma classe média técnica e vagamente desejante de sociedade, não era possível se distinguir o trabalho de um Gilberto Braga, bem como o de um Vianinha – em uma série como A grande família – dos demais discursos mágicos, melodramáticos simples, como os de Janete Clair, ou ainda de política não socialmente modernizada, no melhor dos casos, como os de Dias Gomes, Jorge de Lima, Lauro Cézar Muniz ou Walter George Durst, bem como não era possível se observar a verdadeira corrosão crítica cotidiana que programas humorísticos da TV, que há muito se afastaram da ingenuidade primordial do circo, como Planeta dos macacos e Viva o gordo, de Jô Soares, faziam permanentemente da política, social e econômica, da Ditadura.

Era enorme a ambivalência da Globo, entre sustentar e legitimar governos de interesse nos grandes negócios, controlando as exigências políticas legítimas de transformação da sociedade, criar um público consumidor e desejar mais renda social para a produção de mais consumo e liberar a crítica modernizante, liberal nos costumes, que projetava uma nova autonomia do indivíduo, livre no mercado, que chegaria a confrontar os foros de autoridade e fidalguia de tipo antigo que animavam o espírito de oligarcas, militares e ditadores no Brasil. A televisão oscilava abertamente entre o elogio conservador do poder, em programas oficiais, o horizonte liberal da democracia de massas, de consumo, e a crítica ao arcaísmo brasileiro que travava o processo, que sua própria modernização estrutural, por assim dizer, confrontava inevitavelmente.

Nessas condições históricas, seria uma grande lacuna de cultura e de consciência, que tal dispositivo de infraestrutura de mercado e marcador das tendências da imagem mercadoria entre nós não tivesse gerado seus verdadeiros artistas, como teve em Walter Clark, em José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, e no próprio Roberto Marinho, seus verdadeiros administradores e ideólogos, econômicos, políticos e sociais. Dos vários artistas produzidos no interior da indústria da televisão, que significava cada vez mais a gestão imaginária de toda uma sociedade, como hoje se sabe, Gilberto Braga foi um dos maiores. Era grande a complexidade social de seu folhetim – com a típica estrutura pura de gestão do imaginário do bem e do mal, valores básicos fora de questionamento, como o amor transcendente a tudo, e o direito político do amor materno antes de tudo – que se articulava em planos novos dos circuitos de modernização de costumes, pela mudança do papel da mulher na vida urbana e pela revolução sexual mais geral dos anos 1960 e 1970, e alcançava com nitidez, em muitas linhas de fuga, a crítica social das violências marcadas de classe no Brasil contemporâneo, particularmente da face antissocial da elite do grande dinheiro entre nós.

Dos esquemas tradicionais de sinalização explicitada do bem o do mal, o alegorismo simplificador da relação vítima justa versus o poderoso injusto do melodrama moderno, que começara a conceber a dinâmica da sociedade de classes duzentos anos antes, Gilberto Braga chegava à própria dinâmica simbólica das violências entre as classes no Brasil, das posições de uma dança perversa e calculada, entre o moralismo da classe média, seu ritmo lento de existência e sua subserviência decorosa aos poderes e à velocidade, o desprezo e o cinismo explicitamente antidemocrático dos verdadeiramente ricos no país.

Meio como aconteceu em Balzac, as estruturas de alegorização moderna do cenário melodramático se dissolviam gradualmente, historicamente, na leitura realista das tramas concretas dos interesses de uma sociedade de classes real, e sua própria subjetivação, como também Marx observou no escritor da Comédia humana. Interessantemente, como se deu em Machado de Assis, reapareciam as figuras sociais dos ricos superelegantes e cosmopolitas, que eram ao mesmo tempo violentos reprodutores de privilégios máximos, contra a democracia geral, e da classe média, melancólica ou burra, manipulável, dependente e decorosa com o poder e, por fim, de uma vida popular distante, feliz se inserida em um mero sistema de viração, sobrevivência cultural diferencial em tal ordem.

As Odetes Roitmans, Yolandas e Marias de Fátimas – esta última imensa personagem de Vale tudo rompendo o pacto melodramático familiar por dinheiro – eram os novos Brás Cubas modernizados do Brasil, no registro avançado do dramaturgo, sinalizando processo histórico de poder e mentalidade de longa duração, evitativo de democracia que se aspirava ao redor, enquanto os personagens de classe média, bons e morais, que gravitavam devagar ao seu redor, tinham traços fortes do autoritarismo antigo do tipo Bentinho, sendo ultrapassado pela própria modernização tempo, ou de servis e de consciência rebaixada Quincas Borbas, objetos disponíveis do jogo e da manipulação cínica e calculada do poder. Tudo isso sempre dizendo da última moda, da última dança e do último gadget da mercadoria, atravessando a tudo e a todos.

Em 2003 publiquei na Folha de S.Paulo um ensaio sobre o momento mais forte da arte social e política de Gilberto Braga, que você pode ler aqui. Ainda então, passados muitos anos dos passos gigantes do autor em Dancin’ days (1978), Vale tudo (1988) e O dono do mundo (1991), o dramaturgo da TV, e seu critico, eram tratados com a condescendência de meros amantes dos discursos sem nenhum caráter, sem nenhuma consciência ou exigência social, pura manipulação direta, que seriam próprios da televisão, e da Globo, no Brasil. A esquerda crítica ainda insistia em não saber de sua própria realidade.

Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


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