A nostalgia triste

A nostalgia triste
(Foto: Reprodução/ Portal Memorial da Democracia)

 

Por Victória Salomão

Um amigo beatlemaníaco com quem não converso há tempos sempre dizia que tinha medo de apresentar Beatles para seus filhos hipotéticos ainda na infância, porque tinha o risco de as crianças banalizarem a grandiosidade da banda. Hoje de manhã, cantando muitas letras trocadas de quase toda a discografia da Janis Joplin como herança do fato de tê-la conhecido no carro por escolha da minha mãe, antes mesmo de saber falar português, eu entendi um pouco o que ele quis dizer.

Tem coisa que a gente carrega junto há tanto tempo, que banaliza. Vira parte da paisagem.

Minha avó paterna, em uma primeira análise, era avó na linguagem universal que isso representa. Foi minha vó já depois dos 60 anos de idade. Lembro-me dela já assenhorada, fã de Roberto Carlos, cheia de netos mais velhos que eu, falando devagar, de óculos grossos, batom vermelho e cozinhando bem. À primeira vista, era só isso, mas a “Casa da vó Ieda” sempre teve um quê que tornava impossível banalizá-la com algum estereótipo de casa de vó.

Desde muito pequena, sentia lá um paradoxo, como se a sala de estar cheia de irmãos, tios e primos, as cadeiras de veludo vermelho, os tapetes altos, a vitrola intacta, as taças de prata e o piano exalassem glamour, mas as paredes vertessem um quê de nostalgia triste. Não racionalizava, mas sentia.

Conforme fui crescendo, percebi que minha vó, que como a de todo mundo usava óculos grossos e era fã de Roberto Carlos, falava muito de “um tal de Brizola”, que ninguém fora da minha casa sequer mencionava a existência.

Na pré-adolescência, já com discernimento sobre política, achei estranho meu avô ter sido prefeito de Rio Grande, amigo desse Brizola que conheci como um quase Deus, e tudo isso se reduzir ao nome dele escrito num ginásio caído. Motivada pelas conversas com a vó Ieda (quer dizer, cansada de me sentir uma ignorante sobre tantos fatos da família que se misturavam com a história do país), comecei a ler sobre tudo que envolvessem Brasil e história política dos anos 60 aos 80.

Cedo, a névoa que me fazia não entender a nostalgia triste daquela casa foi se desfazendo. Entendi quem eram os tais dos “Arena”, ilustrei mentalmente “a mão grande dos militares na minha sala levando o pai”, no caso meu avô, sobre a cena que meu pai sempre contava ter visto aos 6 anos de idade. Descobri o que era os “Atos Institucionais”. Fez sentido o medo que minha vó tinha do filho roqueiro músico nos festivais quando era jovem.

Li sobre a trajetória do PTB ao PDT, escutei com mais atenção sobre a visita do meu pai ao Jango- aliás, aprendi a distinguir Jânio de Jango. Quem procura acha e eu passei então a conviver com uma história que não era minha engasgada na garganta.

Achava engraçado quando minha a vó Ieda referia-se a Arena como se ainda existisse, porque via a violência institucionalizada como uma história triste, superada e abafada sobre as demãos de cal e tinta amarela daquelas paredes tristes, mas agora eu entendo. Eles nunca se foram.

Victória Salomão, 25, é jornalista em Pelotas (RS)

 

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