Viver em tempos de pandemia

Viver em tempos de pandemia
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Ficar em casa o tempo todo não é mesmo coisa boa, mas precisamos aprender a fazer isso, ainda mais quando se está de carona na onda do coronavírus: vivemos dias incomuns.

Desde o início eu estava informado sobre a pandemia no mundo, mas o Carnaval chegou e fui para o meio das massas. Aquela multidão nas ruas, suor com suor, pele com pele. Havia momentos em que a gente quase não respirava tamanho o número de pessoas juntas. Nos camarotes muita gente sob ar condicionado. Não sei o que era pior para o clima de uma pandemia: o conforto da climatização ou o mormaço provocado por tanto calor humano.

Depois do Carnaval fui ao barbeiro. O grupo que estava na barbearia não falava de outra coisa: corona para lá, corona para cá. Na hora de cortar o cabelo, o barbeiro me confessou que estava muito assustado. Olhei para aquele homem bem alto e forte e comecei a pensar…

De janeiro até março, a quantidade de pessoas infectadas só fazia aumentar, até que o Estado resolveu fazer a quarentena. A letargia do Estado para lidar com o problema só me deixava mais ansioso.

No início da quarentena foi difícil a gente se conscientizar que somente uma pessoa iria fazer compras. Na primeira vez que voltei das compras, fiquei irritado por ter que tirar o calçado e ir direto para o banheiro fazer a higiene. Mais chato ainda foi limpar óculos, cartão de crédito e carteira de documentos. Que horrível!

Certa vez, na entrada de um supermercado, vi um rapaz solícito, oferecendo um spray de álcool para a gente fazer higiene antes de entrar. Como fiquei perturbado com aquilo. Era preciso?

Dentro do mercado uma senhora olhava para gente com sorriso faceiro. Ela se aproximou da banca de limão e começou a explicar qual era a textura da fruta mais adequada para se saborear. Ela pegava um limão para ela e mais dois, um para mim e outro para um rapaz que estava ao lado. Ele quase não falava nada. Olhei para a senhora e percebi o quanto, para algumas culturas, o afeto precisa passar pelo corpo mesmo nestes tempos de pandemia.

De vez em quando alguém grita do outro lado do condomínio um refrão de música popular brasileira, para ver se alguém responde; outras vezes as pessoas fazem manifestações de ordem política. Tem gente que põe o som de casa bem alto, tem gente que arrisca levar o cachorro para rua…

No condomínio as pessoas iam para a quadra jogar futebol; a academia estava ficando cada vez mais cheia. Dava medo ver as pessoas daquele jeito: umas juntas das outras, querendo ficar mais bonitas antes que o pior acontecesse. Só com um decreto municipal os condôminos pararam de frequentar a quadra e a academia.

Outro dia fui comprar pão e vi umas pessoas na rua tomando cerveja e ouvindo música em um som bem estridente, parecia que não estávamos em tempos de confinamento.

Na padaria um rapaz passou na frente de todo mundo e não respeitou as marcações que estavam no chão e indicavam um metro de distância entre cada pessoa. Do outro lado da rua, o ônibus teve de parar para pegar alguns pedestres. Foi quando os motoristas começaram a buzinar alucinadamente.

Nas redes sociais rolava uma enxurrada de desinformação. A morte não intimidava mais os mentirosos, e as tragédias têm-se transformado em memes para diversão de muita gente.

Já estávamos há mais de 15 dias sem sair de casa. Havia um espumante na geladeira que não fora consumido no ano novo porque era “seco”, mas seca estava a nossa convivência de resistir aos mesmos rituais todos os dias.

Compramos um pedaço de queijo e um pote de azeitonas. Enquanto assistíamos a uma daquelas séries apocalípticas de serviços de assinatura de TV, alguém cortava o queijo e preparava a mesa de maneira simples e silenciosa.

Quando a história terminou havia uma mesa reluzente nos esperando. Sentamos, comemos e agradecemos pelos dias vividos. Falamos do presente e do passado enquanto a música de fundo falava de paz, de harmonia, de mais amor entre as pessoas sob os sussurros de Bob Marley.

Terminamos de comer e fomos ouvir Sara Tavares. A música navegava em nossos ouvidos, sinalizando tempos de esperança.

Depois, aos poucos, cada um foi deixando a mesa e voltando ao aconchego de si mesmo.

E todo esse mosaico se insurge sobre mim. Acho que estou em infinitos fluxos de redemoinho. Tão deletéria quanto a prisão física é esta prisão mental que cerceia minha vida nestes tempos de quarentena.

Cleonilton Souza, 56, nasceu em Salvador, Bahia. É doutorando em educação pela UFBA e mestre em políticas sociais e cidadania pela Universidade Católica do Salvador. Atualmente trabalha com educação corporativa.

 

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