O “Triângulo da tristeza”: distopia, heterotopia e o fim do espaço sacralizado

O “Triângulo da tristeza”: distopia, heterotopia e o fim do espaço sacralizado
Yaya (Charlbi Dean) e Carl (Harris Dickinson), no filme “Triangle of Sadness" (Reprodução)

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Localizado entre a sobrancelha e o início do nariz, o triângulo da tristeza é um lugar de valor e referência para seleção de um casting de publicidade masculino e seus respectivos avaliadores no novo filme de Ruben Ostland. Deve-se ficar relaxado, um deles explica. A expressão oferece uma forma geométrica ao afeto, ao mesmo tempo em que o localiza com precisão no corpo. A partir daí já ganhamos, no mínimo, em figurabilidade. Como não enxergar a circunferência da angústia na barriga ou do retângulo da dúvida formado pelas veias saltitantes da testa de obsessivo?

A curiosidade pode ainda se desdobrar em questões mais amplas e aleatórias: a exemplo da relação bastante original entre a tristeza e o espaço, tendo em vista uma tradição da fenomenologia do afeto, em que a tristeza aparece comumente associada a uma psicopatologia da experiência do tempo e não do espaço: tudo demorando em ser tão ruim. E estamos apenas na primeira cena de Triangle of Sadness (2022), vencedor da Palma de Ouro em Cannes e de outros tantos prêmios.

O filme, dividido em três partes, está mais para um triângulo escaleno com as pontas desiguais no tempo. A primeira parte nos apresenta Yaya (Charlbi Dean) e Carl (Harris Dickinson), casal de jovens modelos influencers que discutem sobre quem deveria pagar a conta do jantar em uma relação que não consegue se sustentar fora de um sistema de trocas comerciais. O mesmo casal surge num navio chiquérrimo, a outra ponta do triângulo, no qual não distinguimos mais se a menina trabalha ou se diverte no inferno do paraíso daquela viagem.

As dinâmicas do trabalho de influencer passam a ser dramatizadas como um jogo e levadas a um sistema de recompensas rápidas (likes, amigos e seguidores) que é tão mais motivador quanto produtivo para o trabalho. Esta gamificação (Byung Chul Han) é a exploração do homo ludens, que se submete às relações de dominação enquanto joga, produzindo uma confusão entre a comunicação e a comercialização. A tripulação, treinada pela mais requintada das hostesses de navio para o divertimento dos super ricos, trabalha sob uma disciplina tão rigorosa que, a um dado momento, ficamos sem saber se se trata de um navio, de uma fábrica ou de uma prisão. E chegamos no Foucault, antes mesmo de atracarmos na terceira ponta do filme que parece se estender além do necessário no tempo.

Se considerarmos a onda distópica que tomou conta de filmes e séries nos últimos anos – The Walking dead (2010), Black Mirror (2011), The Handmaid’s tale (2017), Years and Years (2019) etc. –, vemos que os pontos comuns dessas produções são o espaço atravessado por regimes autoritários, estados híbridos de vida e morte, entre catástrofes das quais não se discriminam mais sua gênese política ou natural. No mundo pós-pandêmico, se é possível pensar em pós-pandemia, assistimos curiosos à transposição da produção audiovisual de lugares distópicos para os lugares que poderíamos denominar, para voltar a Foucault, como heterotópicos.

As heterotopias são lugares reais (em contraposição às utopias) que estão paradoxalmente fora de todos os lugares. A exemplo do colégio interno, do hospital, do cemitério e da prisão, as heterotopias têm uma função determinada em cada sociedade. Podem ser destinadas aos indivíduos que passam por uma crise – adolescentes, mulheres menstruadas, grávidas, idosos – ou aos indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à norma: prisões, hospitais psiquiátricos.

Existem as heterotopias que estão ligadas ao tempo, como um espaço privilegiado de acumulação e empilhamento infinito de tempo: museus e bibliotecas. E, por fim, as heterotopias transitórias, como as feiras, os circos, colônias de férias e o navio, que é a heterotopia por excelência, na medida em que é um lugar sem lugar, que existe por si só e é fechado sobre si mesmo.

O mesmo tipo de espaço está presente em White Lotus (2021) e, de forma mais discreta, em Parasita (2019). O resort no primeiro caso, e o quarto da empregada no segundo. Além disso, as duas séries e o filme guardam em comum a crítica ao mundo do super ricos e seus lugares que, de tão vexatórios, parecem irreais, não fosse a porta concreta que delimita o dentro e o fora de cada um.

E o que significa este deslocamento da obsessão distópica dos últimos dez anos para a irreverência desconcertante desses outros espaços que dominaram as telas recentemente? Por que a gente tem se divertido tanto com os lugares reais e a própria realidade sem as distorções mirabolantes que nos afastam um pouco daquilo que a gente vê?

No estudo das heterotopias, vemos como o espaço, a despeito do que aconteceu com o tempo, preservou-se, de certa maneira, ainda como um espaço medieval, no qual cada coisa é colocada em um conjunto hierárquico de lugares: lugares profanos, lugares sagrados, lugares urbanos, lugares rurais, lugares públicos, lugares familiares, lugares culturais, lugares úteis, lugar de trabalho e lugar de lazer.

Em sua teoria, Foucault defende a ideia de que o espaço manteve uma “presença oculta do sagrado” na preservação destas oposições tão bem delimitadas. Ele enuncia sua tese em uma conferência de 1967. Transpondo para os dias de hoje, o que vivemos em um primeiro momento com a chegada da internet e que, posteriormente, intensifica-se durante a pandemia nos anos recentes, foi a verdadeira dessacralização do espaço. A explosão de qualquer fronteira que hierarquize ou separe o espaço profano do espaço sagrado, o espaço de trabalho do espaço de lazer, o espaço de cultura do espaço útil, o espaço da vida do espaço da morte.

O ataque dos piratas ao navio do Triângulo da Tristeza, com a bomba fabricada por uma das famílias milionárias da tripulação, demonstra o esforço e o fracasso em metaforizar a explosão de todos os lugares e o mundo que tenta se reorganizar a partir dos escombros, com seus cadáveres e restos de comida, em uma mímese invertida da luta de classes como o princípio ordenador da civilização.

O fato é que os tripulantes sobreviventes do navio explodido vão parar em outro lugar, em uma ilha perdida onde alguma organização social tenta ser construída por meio da inversão dos papéis entre os trabalhadores e os super ricos. Passam a ser explorados pelo comando da funcionária do navio Abigail (a brilhante Dolly de Leon) os que outrora foram os exploradores, e o resultado dessa falta de imaginação política é catastrófico, mesmo que a gente se divirta um pouco com a vingança maligna dos oprimidos.

O filme termina na porta de um resort que parece conter toda a esperança de uma sociedade despedaçada, a esperança de voltarmos para os mesmos lugares (normotopia nem existe, mas até aqui, existir é o menor de nossos problemas) . Sem acesso ao resort, porque é preciso que em algum momento o filme acabe, ficamos no vazio de representação de espaços possíveis.

Marília Velano é psicanalista, mestre em psicologia pela Université Paris VII, doutora em psicologia pela USP e professora do Departamento de Psicanálise com crianças do Instituto Sedes Sapientiae.


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