Sob o domínio de Eros

Sob o domínio de Eros

Heroínas ou vilãs enchem hoje as revistas de sexualidade mais ou menos franca. Curvilíneas, com roupas colantes (quando usam), elas capricham na liberalidade e no humor

A história em quadrinhos existe há cerca de cem anos; e, em suas primeiras duas décadas de existência, pouca ou nenhuma importância deu às figuras femininas ou ao erotismo. Isso porque os papéis relevantes eram ocupados por crianças, animais e, em alguns casos, homens.

Só na década de 1910 e, principalmente, após o término da Primeira Guerra Mundial é que se assistiu, nos Estados Unidos, ao nascimento de diversas histórias em quadrinhos protagonizadas por garotas frívolas e maliciosas, como Polly (1912) e Nora, a filha de Pafúncio e Marocas, e por sedutoras candidatas ao estrelato, como Dixie Dugan (aparecida em 1929, seu maior mérito era ter o rosto semelhante ao da atriz mais erótica dos anos 1920: Louise Brooks) e Betty Boop (1934), a primeira personagem dos quadrinhos a ser censurada (em 1937, suas histórias deixaram de ser publicadas por causa da pressão da Liga da Decência, que achava que ela aparecia muito pouco vestida).

Entre 1934 e meados da década de 1950, porém, quando se intensificaram a produção e a publicação de histórias em quadrinhos de aventura, surgiu um novo tipo de personagem feminina nos quadrinhos norte-americanos: a mulher decidida a viver uma vida repleta de aventuras, em todos os sentidos. Foi o período em que apareceram Dale Arden, a princesa Narda, Ellen Dolan, Honey Dorian e outras “noivas eternas” de heróis: heroínas como Sheena, Rulah, Tigrana, Camilla, Amazona dos Cabelos de Fogo, Mysta e Futura, que viviam nos locais mais inóspitos da Terra ou do espaço; super-heroínas como a Mulher-Maravilha (Wonder Woman, no original); combatentes do crime como Miss Masque, Loura Fantasma e Phantom Lady.

Nesse período, surgiram inúmeras imagens de intenso erotismo, como: a bad woman Grace Powers, sentada em um sofá, tentando seduzir com seus olhares lânguidos o agente Phil Corrigan (Agente Secreto X-9, 1934), ou Aleta, a rainha das Ilhas das Névoas, dançando descalça e com um sorriso de satisfação no rosto, sob o olhar de cobiça de um grupo de ferozes tuaregues (Príncipe Valente, 1945); ou ainda Dale Arden, vestida sempre com trajes sedutores, “desfilando” pelo exótico ­planeta Mongo.

E Brigitte mudou os quadrinhos

Em 1956, foi lançado E Deus criou a Mulher, dirigido por Roger Vadim e estrelado por Brigitte Bardot. O mundo nunca mais foi o mesmo. Tudo por causa da personagem interpretada por Brigitte, Juliette, uma jovem dotada de uma sensualidade que inebria e confunde os homens. Barbarella (1962) foi a primeira personagem dos quadrinhos visivelmente inspirada em Brigitte/Juliette.

Criada pelo francês Jean-Claude Forest, Barbarella é uma jovem que viaja pelo espaço em busca de novas experiências; possui longos cabelos dourados, um rosto provocante e uma grande disposição para fazer sexo, não se importando em ter relações com um homem ou co, um robô. Não sente vergonha de ficar nua. Segundo seu criador, “não tem moral, só princípios”.

A partir de Barbarella, foi produzida na França uma série de histórias em quadrinhos eróticas, protagonizadas, em sua maioria, por mulheres: Scarlett Dream (1965), de Claude Moliterni e Robert Gigi; Les Aventures de Jodelle (1966) e Pravda la Survireuse (1968), desenhadas por Guy Peellaert, num estilo fortemente influenciado pela arte pop; Lolly-Strip (1966), de Daniel Dubos e Georges Pichard; Blanche Épiphanie (1967), de Jacques Lob e Georges Pichard; Saga de Xam (1967), um delírio gráfico produzido por Nicolas Devil a partir de um roteiro do cineasta Jean Rollin, um especialista em dirigir filmes que misturam terror e erotismo; Epoxy (1968), escrita por Jean Van Hamme e desenhada por Paul Cuvelier. Ele criou, em parceria com o roteirista Greg, aquela que, na opinião do crítico e escritor Jacques Sadoul, é “uma das heroínas mais eróticas dos quadrinhos de expressão francesa: a nymphette Line); e Paulette (surgida em 1970, com roteiro de Georges Wolinski e desenhos de Georges Pichard), que, a exemplo de Little Annie Fanny (criada em 1962 por Harvey Kurtzman e Will Elder para a revista Playboy), fazia uma crítica ácida à sociedade de consumo, relatando as peripécias de uma exuberante e rica herdeira perdida no mundo infestado de pessoas abjetas.

Um panorama dos quadrinhos eróticos – da década de 1980 aos nossos dias

Os anos 1980 foram bastante prolíficos para os quadrinhos eróticos, sobretudo na Europa: o italiano Guido Crepax, criador de três musas da história em quadrinhos – Valentina (1965), Bianca (1968) e Anita (1971) – e adaptador de três clássicos do erotismo literário (História de O, Emmanuelle e Justine), quadrinizava Drácula (de Bram Stoker) e O médico e o monstro (de Robert Louis Stevenson), enfatizando as cenas eróticas; Milo Manara, um ex-aluno do escultor espanhol Barrocal, era autor de Clic (1983), que abordava a incompreensão entre os sexos e, principalmente, o enigma insondável (pelo menos para os homens) do prazer feminino; o veterano Paulo Gillon escrevia e desenhava, partindo de uma idéia de Claude Maggiori, o primeiro episódio de A sobrevivente (1985), “nascia” a voluptuosa Druuna (1985) cujo visual-padrão foi baseado, de acordo com as palavras de seu criador, Paolo Eleuteri Serpieri, “nas fotos de uma modelo que posou para a Playboy brasileira” (a modelo em questão é Ana Lima); surgia, inspirada em Little Nemo im Slumberland (de Winsor MacCay), Little Ego, que narrava as histórias da sonhadora Ego, uma criação de Vittorio Giardino; Custer (1984) e Sarvan, desenhadas soberbamente por Jordi Bernet, deleitavam os leitores espanhóis; o argentino Horacio Altuna produzia um de seus melhores trabalhos, Fantasmagoria (publicado em 1988 pela editora francesa Dargaud), uma coletânea de seis histórias curtas todas escritas pelo talentoso Carlos Trillo.

Na atualidade, histórias em quadrinhos eróticas que merecem ser destacadas são as produzidas pela italiana Giovanna Casotto. Envolvida com os quadrinhos desde 1994, Giovanna ficou famosa por desenhar histórias eróticas – explícitas – em que ela própria é a estrela principal (para tanto, tira fotos de si mesma que mais tarde servem de base para seus desenhos).

Também devem ser destacadas as histórias em quadrinhos, ou melhor dizendo, os mangás eróticos de Senno Knife, de quem o site sequentialart.com disse o seguinte: “A arte de Senno Knife é maravilhosa! Suas personagens são bonitas demais para palavras. O sexo não é explícito, mas ­revela muito mais do que se fosse”.

Esse artigo não estaria completo se não fossem mencionadas as histórias em quadrinhos publicadas nas revistas das editoras norte-americanas DC, Image, Marvel. Nessas histórias, existe certo erotismo, por causa da presença de um grande número de mulheres exuberantes (a assassina Elektra; as combatentes do crime Batgirl e Canário Negro; a espiã Viúva Negra, a ladra Selina Kyle, mais conhecida como Mulher-Gato; a mágica Zatanna; a modelo Mary Jane Watson, esposa de Peter Parker, o Homem-Aranha; a repórter Lois Lane; as super-heroínas Mulher-Maravilha, Poderosa, SuperGirl, Glory, Mulher-Aranha, Mulher-Hulk, Mulher Invisível e Warbird; e, dentre muitas outras, Bêlit e Sonja, duas personagens das aventuras de Conan, o Bárbaro), que, em sua maioria, usam sensuais trajes colantes.

Enquanto isso, no Brasil…

Quando se fala de quadrinhos eróticos brasileiros, todo mundo lembra imediatamente, e erradamente, de Carlos Zéfiro (pseudônimo de Alcides Caminha). Erradamente porque Carlos Zéfiro nunca produziu quadrinhos eróticos, e sim quadrinhos pornográficos.

Os primeiros quadrinhos genuinamente eróticos realizados por quadrinistas nacionais foram publicados em 1969 em Estórias Adultas – até então, o erotismo nos quadrinhos brasileiros resumia-se às belas e sensuais figuras femininas concebidas por dois desenhistas italianos: Eugênio Colonnese e Nico Rosso, criadores, respectivamente, das vampiresas Mirza (1967) e Naiara (1968).

Publicado pela Editora Edrel, de São Paulo, Estórias Adultas era um gibi moderno, influenciado pelos quadrinhos japoneses e pelos trabalhos de alguns quadrinistas de vanguarda (Eric Sió, Esteban Maroto, Guy Peellaert e Jean-Claude Forest).

Em setembro de 1978, a Grafipar, uma editora sediada em Curitiba, lançou o gibi Eros, que tinha um propósito bem específico: conquistar um público adulto que, desde a época na qual a  Edrel fechara suas portas na primeira metade da década de 1970, não podia ler boas histórias em quadrinhos eróticas brasileiras.

Eros, que em diante do sexto número (lançado em 2 de fevereiro de 1979) passou a chamar-se Quadrinhos Eróticos, foi o gibi de maior sucesso da Grafipar. E seu sucesso motivou a editora a lançar outras revistas de histórias em quadrinhos eróticas.

Durante aproximadamente um ano e meio, a Grafipar dominou sozinha o mercado brasileiro de revistas de quadrinhos eróticos. Então, a Idéia Editorial (uma divisão da Editora Três) lançou um grande número de gibis do gênero. Em pouco tempo, as publicações da Idéia começaram a fazer concorrência aos gibis da Grafipar. E, em meados de 1983, a editora paranaense encerrou suas atividades no setor das HQs. Desde essa época, o erotismo praticamente desapareceu das revistas de histórias em quadrinhos produzidas no Brasil.

Marco Aurélio Lucchetti
é doutor em artes e cinema pela ECA/USP e autor do livro A ficção científica nos quadrinhos (São Paulo: Edições GRD, , 1991), dentre outros

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