Estante Cult | Rever para confrontar

Estante Cult | Rever para confrontar
(Foto: Acervo pessoal)

 

.
Jacques Leenhardt é um intelectual de inúmeras e admiráveis credenciais. Nascido em 1942 em Genebra, ele estudou filosofia e ciências sociais em Paris, onde atua como diretor de pesquisas na École des hautes études en sciences sociales. Autor de obras de sociologia da literatura, dedicou-se igualmente a investigar a criação literária e plástica no Brasil e na América hispânica, assinando inúmeros ensaios, catálogos e livros sobre o assunto. Membro fundador da associação Archives de la Critique d’Art, é também presidente honorário da Association Internationale des Critiques d’Art.

Estudioso da obra do pintor e desenhista Jean-Baptiste Debret (1768-1848), foi responsável pelas novas edições francesa e brasileira da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (Imprimerie Nationale, 2014; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2016).

De passagem pelo país para o lançamento de Rever Debret. Colônia – Ateliê – Nação, que a Editora 34 está publicando em sua coleção Fábula, o professor Jacques Leenhardt conversou com a Cult a respeito da proposta do livro: revisitar a obra de Debret à luz não somente do tempo histórico que a concebeu, mas também de nossa imediata contemporaneidade, que dialoga ativamente com ela pelos vieses da crítica, da paródia e da carnavalização.

Como surgiu seu interesse pelo Brasil e, especialmente, pela obra de Debret?
A minha conexão com o Brasil tem mais de quarenta anos. Começou com os pesquisadores brasileiros que eu encontrei na França no tempo da ditadura; muitos deles foram meus alunos. Quanto a Debret, não o conhecia na França. Foi visitando o Brasil, convidado por alguns daqueles pesquisadores, que encontrei o nome dele e descobri a Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, um livro que era na época totalmente desconhecido na França. Debret estava havia mais de um século ausente no debate francês.

O senhor acha que seu livro propõe uma nova inflexão nos estudos iconográficos do século 19 no Brasil?
Há duas coisas neste livro. A primeira toca especificamente na leitura, na análise das imagens e no texto de Debret. É a primeira parte. A segunda parte toca em uma questão muito contemporânea, que é a releitura da história, em particular da história colonial, especialmente por jovens artistas que vêm das comunidades ameríndias e da comunidade afro-brasileira. Então, há dois objetos no livro e, no meio, uma parte que nota como, a partir do final dos anos 1920 até os anos 1970 e 1980, houve um primeiro movimento de interrogação sobre o papel das culturas nativas aqui no Brasil e, do ponto de vista dos artistas, uma interrogação sobre o olhar que eles mesmo tinham sobre essas populações.

A primeira parte do livro é dedicada a uma releitura política e iconográfica. Estou tentando fazer uma nova avaliação dessas imagens no sentido de uma análise estético-política, as duas coisas estando profundamente ligadas. Porque vem o fato de que sou francês, então tenho um olhar de fora, como o próprio Debret, que estava assistindo à passagem do Brasil Colônia para o Brasil Império, ao nascimento de uma nação. A questão que ele queria abordar era como fazer uma nação com índios fugidos das florestas, imigrantes da Europa e escravos trazidos da África (vale notar que, em Rever Debret, o autor observa que a substituição de “escravos” por “pessoas escravizadas” soa como uma litotes incapaz de exprimir a violência desumanizante do sistema escravocrata). São os três componentes do livro de Debret, que tem três volumes, cada um dedicado a uma dessas populações. A questão fundamental que estou tentando pôr em evidência é a preocupação de Debret em pensar a situação histórica de um país com populações tão diversas tendo que construir uma nação.

Pela vocação que nós, brasileiros, temos de ficar sempre na superfície das coisas, talvez tenhamos lido Debret como um artista preocupado somente em registrar o pitoresco e não tenhamos dado a devida dimensão histórica à sua obra?
O ponto fundamental é que o título do livro de Debret é Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Com essa palavra, “histórica”, ele está insistindo no fato de que as imagens que está produzindo têm um significado histórico. Para entender as imagens você tem que pôr o significado dentro de uma moldura histórica. Nesse sentido é muito importante sublinhar que cada imagem de Debret é seguida de três ou quatro páginas de comentários. Ele não deixa a imagem sozinha, porque ele sabe que ela é ambígua. Muitas vezes esses comentários não são somente uma descrição do que está na imagem. Tem um pequeno narrar, uma pequena novela que explica as relações sociais entre as personagens, as figuras que estão nas imagens. Então, para ele é fundamental compor a imagem. A imagem de Debret sempre é uma imagem composta porque ela tem sempre um sentido dentro da lógica histórica.

Como ocorreu o trabalho de seleção do material da pesquisa, já que o livro prima por uma concisão que é muito expressiva? Há um notável talento do senhor para se concentrar nas coisas que são essenciais e não fugir delas.
É difícil falar sobre as qualidades do seu próprio texto. Estou trabalhando há mais de dez anos sobre Debret, tendo já publicado muitos artigos sobre ele. No Brasil houve uma publicação com colegas historiadores em 2008 e 2009 e depois a nova edição de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, que saiu também na França. Então, acumulei bastante experiência sobre o trabalho de Debret e as imagens dele – o que facilita a síntese. Agora, isso também é um problema fundamental da exposição histórica. Você pode se perder nos fatos e tentar ao contrário pegar os elementos estruturantes para apontar os movimentos importantes, os momentos importantes. É isso. É meu trabalho de pesquisador, que é de tentar chegar ao que faz sentido dentro de um raciocínio.

Estou propondo uma leitura. Uma leitura tem uma certa coerência e essa coerência, no caso de Debret, é como a compreensão do que ele está vivenciando vem também de sua experiência na revolução, no consulado e no império francês. Há permanentemente para ele um tipo de comparação, porque ele assistiu à queda dos poderes tradicionais na França e presenciou os problemas na reconstrução da nação. Essa experiência dele entre 1789 e 1815, ano da queda de Napoleão, alimenta o olhar que ele tem sobre a situação brasileira. Estou tentando evidenciar esse jogo de espelhos, de uma certa maneira, entre a visão histórica de Debret e a produção estética das suas imagens.

Há um risco de essas releituras de Debret realizadas por artistas contemporâneos ficarem mais no nível da citação, sem devidamente explorar a criticidade que era própria do trabalho dele?
Meu trabalho não é sobre as diferentes obras desses quinze artistas, e, sim, sobre as estratégias de crítica e de carnavalização, para dar a entender realmente o sentido que tem esse quase-movimento. Eles não se conhecem muitas vezes, mas de repente você tem uma geração de jovens artistas de origem ameríndia ou afro-brasileira que, cada um no seu lugar, com as suas intenções, a sua história própria, tenta relacionar a história da sua comunidade à história oficial, porque, nesse sentido, Debret é uma figura oficial do debate.

Agora, no meu livro, mostro que Debret é muito mais que uma figura oficial. Ele mesmo é um espírito crítico e, analisando a primeira imagem do livro, eu insisto sobre o fato de que Debret está muito consciente de produzir imagens dentro de um mundo de imagens. Ele está fazendo, mais ou menos, o que os jovens artistas de hoje também estão fazendo: retomar imagens, compor uma imagem diferente do que está circulando através das gravuras de sua época. Agora, o risco de uma certa superficialidade existe sempre para o artista, mas, o que me parece importante é que eles tentam abrir um caminho para uma reapropriação de sua própria história. Não sempre com sucesso, claro. O trabalho intelectual, tanto como o trabalho artístico, é um trabalho difícil, mas eles tentam. Eles abrem caminhos novos através dessa carnavalização, dessa crítica. O que me chamou muito a atenção é a diversidade dessas estratégias.

Eles estão cientes de que há uma necessidade de recuperar a própria história através de uma confrontação. Tomando como exemplo a primeira imagem analisada, a de Gê Viana. Ela coloca muitas questões. Não é uma resposta exatamente, em particular, à questão do anacronismo. Se você olhar bem a imagem, você tem um menino com um celular. Essa figura vem do período do império, mas está confrontando a contemporaneidade com uma cena familiar, que ainda tem vários traços, em particular nas roupas, da época do Debret. Nessa imagem, você tem essa tensão entre o presente e o passado, também simbolizada nessa cadeira, que está lá em frente à imagem da artista, obviamente dos anos 1950, do nosso século, e que constitui uma tensão temporal, um anacronismo, com respeito à fotografia que está na parede e à cena de Debret.

Esse trabalho sobre a dificuldade, em particular para as comunidades ameríndias que estão saindo de uma tradição muito longa, mas muito diferente e separada da vida e da tecnologia modernas, são aberturas, são aventuras para dar uma compreensão da dificuldade que eles mesmos sentem e vivem em seus corpos. Essas imagens não são soluções, são questões, são tentativas de se aproximar de um problema muito complexo para essas comunidades, em particular, a defasagem entre o tempo de suas tradições e a sociedade brasileira contemporânea, na qual eles têm de viver também. É essa a tensão. Não devemos esperar uma solução. Não devemos esperar senão que a questão mesma seja colocada através da imagem para várias leituras, em um processo que não vai se encerrar com esses trabalhos.

Conhecendo o Brasil como o senhor conhece, essa reescritura de um novo passado para nós pode mesmo abrir a possibilidade de um outro futuro? O país está sempre em um embate entre um passado que foi terrível e um futuro que nunca chega. Seu livro, de certa maneira, nos ajuda a reescrever o passado com vista a um novo futuro. O senhor acredita que esse movimento seja mesmo possível?
Não é minha intenção contribuir de maneira tão definitiva e tão forte para a evolução do país, mas acho que, da mesma maneira como Debret concebeu seu trabalho propondo uma regressão sobre a construção da nação brasileira, a minha contribuição tenta pôr na mesa as questões que regularmente voltam desde os Andradas no começo do século 19, passam pelo Modernismo de 1922 e chegam ao Manifesto antropófago de Oswald de Andrade.

Com Mário de Andrade se vê muito claramente a necessidade de retomar o passado e não de congelá-lo, fazendo com que esse passado seja vivo para ajudar a caminhar para frente. Essa visão é o que tenho desenvolvido neste livro, que considero uma pequena contribuição para que não se esqueça de olhar esses trabalhos e dar importância a esse movimento que vem de uma nova geração de jovens que saem das comunidades ameríndias graças à Constituição de 1988, graças à lei das cotas do começo dos anos 2000. Eles chegaram às escolas de arte e hoje têm a possibilidade de ajudar na reintegração das suas comunidades dentro da nação brasileira. Eles foram, durante séculos, excluídos da nação, mesmo que estivessem trabalhando. Cito muito o fato de Debret estar dedicando tanta atenção ao trabalho dos escravizados, às suas competências e à sua capacidade de fazer. Ele dizia sempre que quem trabalha no Brasil são os escravos, e quem faz a nação é quem trabalha. Existe uma evidência de que quem trabalha está vocacionado a participar plenamente da construção da nação.

Meu trabalho é uma tentativa de apontar o dedo, de tornar óbvio e evidente a todos que essas populações marginalizadas compõem uma parte muito viva – não só pelo trabalho, mas também pelas culturas que trouxeram de sua história, ou de seu continente, no caso dos africanos. Isso tem de entrar cada vez mais na articulação cultural da nação brasileira. Se existe uma intenção é essa, é fazer com que ninguém esqueça essa dimensão.

Ao longo do livro, seu grande companheiro de aventura intelectual é o filósofo Walter Benjamin, que cunhou o conceito de imagem dialética. O senhor poderia comentar algo a respeito?
Sim, o interessante em Walter Benjamin é que ele não confronta simplesmente o presente e o passado. O papel que ele confere à imagem é fundamental. O papel da imagem é o choque que o passado e o presente produzem. O que tentei analisar no livro foi exatamente o que é esse choque: uma maneira de se confrontar com o passado. Não é um trabalho de historiador. O historiador tenta recompor o passado o tanto quanto pode. O artista propõe uma imagem que resulta desse choque das questões do presente com relação à experiência do passado, tal como foi o espírito na época da colônia. Esse choque produz a imagem. Por isso me interessa a noção de imagem dialética, porque ela explicita o encontro de duas preocupações históricas, a do passado, que é a dos historiadores, e a do presente, que é a experiência existencial desses jovens artistas. Por isso é que Benjamin, nesse caso, me parece de grande pertinência.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

TV Cult