Queremos liberdade de expressão sem qualquer tipo de limites

Queremos liberdade de expressão sem qualquer tipo de limites

 

Como alguns de vocês, eu tenho amigos que se converteram ao bolsonarismo entre 2016 e 2018, e que ainda se dedicam com fervorosa devoção aos cultos e à pregação para fazer novos prosélitos para a Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias ou as Testemunhas de Jair. Pois bem, numa conversa entre nós, há poucos dias, alguém postou uma delirante entrevista de Paulo Guedes em que ele declarava que o Brasil está “condenado a crescer por dez anos seguidos”. Dessas coisas que o sujeito passa adiante não para convencer, mas para se convencer, como bom religioso que é. Houve riso e escárnio, por inevitável, mas o contra-argumento veio na forma do autoelogio: isso, sim, é democracia em estado puro, quando um aplaude e o outro discorda do mesmo conteúdo.

Afinal, reza o argumento, considerando-se que não mais existem parâmetros para dizer o que é verdadeiro e o que é uma grosseira manipulação para fins de propaganda, o importante é a liberdade de opinião. Se tudo é crença e não há mais objetividade ou verdade, é justo aplicar uma regra de tolerância absoluta que me permite duvidar de tudo o que você diz, não importa o fundamento em que se apoie, enquanto me autoriza a dizer qualquer coisa, mesmo os maiores disparates e invencionices. E se você acha besteira sem sentido o que eu digo, saiba que desconfio da verdade e da honestidade de tudo o que você afirma, pois cada um julga o mundo segundo a lente dos interesses e crenças da sua própria tribo. E se você não é da minha tribo, há de ser porque é parte de alguma das tribos inimigas.

Em outras palavras, se a epistemologia é exclusivamente tribal, se cada um crê nas verdades que quiser desde que sancionadas pelo seu grupo de referência, é melhor para todo mundo que cada uma possa dizer em público o que lhe passar pela cabeça, sem compromissos com a realidade (a realidade de quem?) ou cobranças lógicas (que lógica?). A regra de tolerância é, para o relativismo epistêmico do bolsonarismo, liberdade de expressão.

Isso me fez pensar.

Principalmente à luz de um evento dessa semana, aliás, um contraevento. O acontecimento mesmo foi a Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito! que reuniu mais de um milhão de assinaturas de pessoas de todos os segmentos sociais, políticos e ideológicos em desafio às ameaças bolsonaristas de desrespeito ao resultado das urnas. E que pautou a semana e proporcionou o primeiro grande evento simbólico suprapartidário e transversal de afirmação de que a soberania popular não será chutada como cachorro magro por Bolsonaro, suas milícias e seu Exército na hipótese de que ele perca a eleição.

A resposta bolsonarista veio na forma de um outro abaixo-assinado, promovido por um grupo que se chama movimento Advogados de Direita Brasil, e denominado Manifesto à nação brasileira. É, obviamente, o contramanifesto bolsonarista. A função do Manifesto é mostrar que:

  1. Se os antibolsonaristas movem a massa, eles também conseguem mobilizá-la e numa proporção ainda maior;
  2. O tal manifesto pelo Estado de Direito é só um manifesto pelo Estado de Esquerda, como aprendi no meu grupo esta semana;
  3. A democracia se resume à liberdade de expressão, o resto é irrelevante.

Na Carta promovida pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo defende-se a democracia em sua multiplicidade de aspectos – direitos e garantias fundamentais, divisão dos Poderes, liberdades políticas, soberania popular – e faz-se uma crítica reconhecível aos ataques antidemocráticos contra as urnas e o STF. No Manifesto bolsonarista, que recebeu mais de 800 mil assinaturas até o dia de hoje, faz-se apologia de apenas uma coisa, a liberdade de expressão, e o resto é basicamente um furioso lamento contra as ações do Judiciário que impedem o absolutismo do exercício dessa liberdade por parte da extrema-direita.

A liberdade de expressão se tornou a pedra fundamental da defesa do bolsonarismo contra as acusações de que não respeitam as regras do jogo da democracia constitucional, mas também a sua linha de ataque para continuar promovendo o desprezo pelo STF e pelo TSE, além do desrespeito aos juízes dessas cortes que mais os contrariam. O fato é que o bolsonarismo se apossou do tema da liberdade de expressão no debate público brasileiro e tenta encontrar nele o seu último álibi democrático: o derradeiro argumento para dizer que democratas são eles e ditadores são os que pretendem impedi-los de dizer o que quiserem. Conseguiu com isso convencer os seus crentes de que não são eles os violadores de direitos e liberdades – apesar da imensa lista de direitos alheios que tenta suprimir. Quem faz isso são os outros, a começar pelos juízes que enfrentam os seus ataques. O STF promove a ditadura de toga, Bolsonaro que é o arauto das liberdades e um mártir do Direito, entoam em suas liturgias. Fazer o quê? O crente vive da sua fé.

O Manifesto declara, em um certo ponto, a convicção básica da seita bolsonarista: “Qualquer pessoa deve ter o seu direito de se expressar livremente, sem qualquer tipo de limites”. Sem qualquer tipo de limites, entendam. Ao redor dessa sentença, apenas a moldura dada pela retórica da vitimização, de que o bolsonarismo é pródigo. Vão desde o clássico “estão tentando implantar a ditadura do pensamento único”, que vem desde 2018, até a acusação explícita de que o STF estaria tentando “criminalizar a opinião contrária”, passando pelo lamento pela profunda injustiça sofrida pela extrema-direita com a tentativa de imputação, “a nós, um povo livre e pacífico”, da “condição de incentivadores de atos antidemocráticos e de divulgadores de fake news”. Que injustiça!

Prometo voltar ao assunto da liberdade de expressão, comprido demais para tão pouco espaço, mas uma coisa temos que conceder aos bolsonaristas: existe nas democracias, de fato, um direito constitucionalmente protegido à burrice, à estupidez, ao delírio, que podem ser livremente expressos em opiniões sem pé nem cabeça, erradas, irracionais e ridículas. É verdade. Tenho o direito de pensar e dizer as coisas mais sem sentido, ignorantes e obtusas. Assim, tenho o direito a poder divergir, criticar, discordar, que é condição fundamental para uma sociedade democrática.

Claro que a liberdade de expressão não foi pensada para dar voz aos loucos, aos estúpidos e aos maus, mas para permitir a troca de razões em público, o esclarecimento recíproco dos cidadãos e os ganhos epistêmicos provenientes do pluralismo de opiniões livremente manifestadas. A tutela do direito à burrice e à expressão do disparate é uma consequência, não a meta da liberdade de expressão da opinião. Por outro lado, é um preço que se pode pagar para se assegurar a deliberação pública, esta, sim, essencial à democracia.

Entretanto, ao contrário do que os crentes bolsonarista dizem, sejam os tais advogados de direita ou os meus amigos do tênis, ninguém tem, teve ou deve ter, em qualquer regime democrático, da Atenas de Péricles aos Estados Unidos de Trump, “direito de se expressar sem qualquer tipo de limites”. Não há direitos, garantias, prerrogativas, privilégios numa República que se possa exercer sem limites. Uma sociedade em que qualquer um pudesse dizer qualquer coisa, mesmo a mais odiosa, mentirosa e ofensiva, sem peias ou freios, não seria uma sociedade democrática, mas a antessala do inferno.

Primeiro, porque o direito à liberdade de expressão é apenas um entre outros direitos e garantias e não suprime os outros: o direito à honra, por exemplo, se mantém, assim como a dignidade humana que o sustenta. E não há liberdade de expressão que possa passar por cima disso. Nenhum direito é absoluto, nem o direito à vida, por que diabos só o direito à liberdade de expressão da opinião o seria? Não é. Precisa ser ponderado num sistema de direitos em que estes eventualmente colidem e frequentemente precisam ser acomodados, autocontidos, mediados, em suma, limitados.

Segundo, a liberdade para expressar opiniões é um direito à opinião, não a modificar fatos com intenções maliciosas e manipuladoras, como no inferno das fake news e das teorias da conspiração. Fatos não são opiniões nem juízos de valores. Cloroquina não cura covid-19 e isso pode ser demonstrado, independentemente das crenças bolsonaristas sobre o fato.

Liberdade de expressão não representa, além disso, um direito a promover uma sedição contra a própria República, a incentivar um crime contra o Judiciário e o desrespeito às eleições e à soberania popular que por elas se manifesta. Não existe direito a inventar a realidade, não há direito ao crime nem é concebível um direito de violar direitos. Os líderes tribais bolsonaristas sabem disso, mas, malandramente, fazem o que podem para escamotear o fato. O crente bolsonarista, contudo, crê fervorosamente que só há democracia se os seus pregadores e missionários puderem dizer qualquer coisa, e se disso não forem impedidos pelos ditadores de toga, nem forem contestados ou constrangidos pelos cientistas, pelos intelectuais e pela mídia, instâncias sabidamente invadidas e controladas pelo mal. Mas aí é questão de fé e o contrato social moderno, como se sabe, é construído sobre a razão.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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