Poesia e vertigem

Poesia e vertigem

Luiz Ruffato

Quem acompanha os caminhos da poesia brasileira contemporânea sabe do lugar de destaque ocupado por Moacir Amâncio. Autor de oito livros de poemas, reunidos no excelente Ata (Record, 2007), Amâncio é desses raros casos em que o rigor formal está profundamente vinculado à expressão de uma mundivivência. Aliado ao poeta, há um crítico e ensaísta atento, que, generoso e cosmopolita, é capaz de discorrer com a mesma competência sobre autores brasileiros e estrangeiros (canônicos ou contemporâneos) e sobre temas tão díspares quanto o rock ou o Talmude.

Aliás, é esse Moacir Amâncio, o erudito mergulhado nas experiências concretas da vida, que emerge na plenitude intelectual em seu mais recente livro, Yona e o Andrógino – Notas sobre Poesia e Cabala, uma coedição da Nankin com a Edusp. Aqui, seu amplo leque de preocupações converge para reconstruir a vida e a obra da poeta israelense Yona Wollach, nascida em 1944 e morta em 1985, que resume em sua trajetória muitos dos impasses, pessoais e coletivos, que pautam a sociedade deste início de século 21. Curioso este ensaio de Amâncio. Quisesse, ele teria escolhido, em meio à obra de Yona Wollach, um conjunto de poemas que, após traduzidos diretamente do hebraico, enfeixaria numa antologia – e assim já teria prestado um imenso serviço à cultura brasileira, ainda tão acanhada em sua relação com línguas não hegemônicas (mais ainda, se pensarmos em manifestações da poesia contemporânea, seja em que idioma for). Mas Amâncio preferiu um caminho mais árduo, certamente muito mais enriquecedor para nós, leitores, de edificar uma narrativa que, alicerçada em amplas e profundas leituras teóricas, estabelece um diálogo criativo e fertilizador com a obra de Wollach, construindo versões de sua poesia na medida em que as questões biográficas vão surgindo.

E aqui destaco um importante elemento que distingue a obra ensaística de Amâncio. Desde seu Dois Palhaços e uma Alcachofra, tese de doutoramento transformada em livro em 2001, em que assinala as obras do romancista israelense Yoram Kaniuk e do arquiteto canadense-americano Frank O. Gehry como “expressões judaicas no marco da contemporaneidade, inseridas num panorama universal de incertezas”, ele vem aprofundando uma original leitura do mundo.

Assim, por exemplo, em Yona e o Andrógino, recupera a discussão sobre autoria, quando, reconhecendo que a autonomia do escritor é bastante relativa, não aceita que seja decretada sua inexistência: “Será possível omitir a intervenção pessoal na linguagem? Se há uma performance, um corpo em seu momento, algo dele escapa ao real imediato e entra no terreno do significado posto em questão na palavra”. Com essa constatação, Amâncio vai propor a tradução e interpretação de 32 poemas, e suas variantes, à luz das relações de Yona Wollach com o passado, próximo e remoto, da cultura judaica, e seus impasses pessoais, mergulhados num mundo em rápida e vertiginosa mudança – o período que engloba as conturbadas décadas de 1960 e 1970.

Transgressora

Yona Wollach é uma personalidade complexa – o que se reflete claramente em sua expressão poética. Considerada “maluca”, “selvagem”, “imatura”, foi expulsa da escola de segundo grau e nunca conseguiu se fixar em empregos. Certa época, internou-se voluntariamente num hospital psiquiátrico em Jerusalém, onde participou de sessões de aplicação de ácido lisérgico. Mais tarde, em Tel Aviv, seria novamente internada. Morou quase toda a vida num galinheiro adaptado em Kiriat Ono, mantendo uma dificílima relação com a mãe, que, mesmo sofrendo de mal de Parkinson, chegou a ser agredida pela filha. Além disso, para horror de uma sociedade impregnada de religiosidade, recusou-se a prestar o serviço militar – uma rebelião bastante radical num país em que a defesa nacional é vista como questão ideológica –, mergulhou nos excessos das drogas e do álcool e relacionou-se sexualmente com homens e mulheres, de forma indiscriminada.

Começando a publicar antes dos 20 anos, Yona Wollach fez parte da chamada geração dos poetas de Tel Aviv, grupo que, tendo perdido a inocência dos pioneiros (lembrando que, embora houvesse um movimento sionista desde meados do século 21, o Estado de Israel passa a existir apenas em 1948), envolveu-se ativamente nos acontecimentos de seu tempo. A poeta absorveu um mundo em turbulência – a Guerra dos Seis Dias, em 1967, que marca o início de um conflito bélico entre Israel e seus vizinhos árabes, nunca resolvido; a onda revolucionária, comportamental e ideológica que varreu o mundo em 1968; a angústia da ameaça nuclear que pairava sobre tudo.

Tendo em vista esse cenário, Yona Wollach encarna a urgência das transformações. Influenciada pela contracultura (e pela poesia francesa, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, e por Whitman, os beatniks), incorporou seu estilo de vida ao discurso poético e se bateu por intervir efetivamente nos rumos da sociedade.

Questionando valores assentados em bases pretensamente sólidas, a poeta, mesmo incompreendida, construiu uma obra “inchada de emoções, ideias, ironias, perplexidade, humor, pornografia, júbilo, delicadeza, brutalidade, levada pela imaginação metafórica”.

Corajosamente, renovou a língua hebraica, a língua dos profetas, ampliando significados e significantes, transmudando-a em linguagem, em movimento, em arma, para questionar os papéis de homens e mulheres e pregar mudanças efetivas na história. Para isso, recorreu aos mitos judaicos, mas também aos cristãos e a referências gnósticas, estabelecendo uma estranha mas eficaz ligação entre transgressão e transcendência. No final, a “prostituta sagrada” imola-se, para salvação de suas ideias: ela pagou caro por sua ousadia, consumida por um câncer terrível que a devastou, matando-a aos 41 anos de idade.

Profetisa singular

Evidentemente, a biografia não deve ser medida estética e Amâncio sabe disso. Mas, ao alisar as tomadas de posição de Yona Wollach, tentando compreender a extensão de suas atitudes transgressoras, ele nos apresenta uma poeta de enormes recursos discursivos, profetisa singular e poderosíssima, clamando pela libertação não mais de um povo como massa anônima, mas de cada um dos corpos em desalinho, amplificando a ideia messiânica de salvação, num futuro possível em que homens e mulheres, despidos dos signos culturais, abraçam-se simbioticamente como no começo dos tempos.

Para finalizar, eis um de seus poemas (em uma das duas versões que Amâncio nos apresenta): “Deixa que em ti façam as palavras / deixa que eles seja livre / elas penetrar-te-ão bem fundo / fazendo formas sobre formas / formarão em ti aquela vivência / deixa que em ti façam as palavras / elas farão em ti como quiserem / fazendo formas novas na tua cousa / farão na cousa tua / a mesma cousa exatamente / que elas são a cousa que farão / você entenderá que elas far-te-ão reviver / aquela vivência e seu significado como natureza / pois elas natureza são e não invenção / e nem descoberta que sim são natureza / farão a cousa natureza em ti / como dar sexo é vida para a palavra / deixa que em ti façam as palavras”.

Luiz Ruffato é escritor

Yona e o AndróginoNotas sobre Poesia e Cabala
Moacir Amâncio Nankin
Edusp
160 págs. – R$ 30

(1) Comentário

  1. Ótimo texto do Ruffato que nos brinda duplamente: apresenta-nos o trabalho do crítico Moacir Amâncio e a espetacular poeta Yona Wollach.

    PS: há alguns erros de digitação no texto!

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