O primo intelectualizado de Christiane F.

O primo intelectualizado de Christiane F.
Caio F. Abreu: nômade esquivo a quaisquer compartimentos, seu ser era o constante devir (Foto: Divulgação)

 

Não que isso tudo já não se pudesse perceber desde muito cedo pelas quinas das falas das figuras certas. Do lado de fora, Dylan, Phill Ochs, Country Joe Macdonald, Wavy Gravy, Robert Hunter, Neil Young e tudo que há de seguro como referência na contracultura já apontavam para o grande furo – está tudo no livro Reporting the Counterculture, do “novo-jornalista” da Rolling Stone Richard Goldstein. Do lado de dentro sempre Torquato Neto por primeiro – depois também Ana Cristina Cesar e até Júlio Barroso. De Strawberry Fields, nada era para sempre. Nenhuma sugestão de qualquer incenso pelo ar, mas talvez o cheiro do mofo que o tempo se encarregaria de depositar muito rapidamente sobre todos aqueles morangos. Depois dos 1960, a barra pesou porque foi a morte das ilusões. Nenhuma utopia seria mais do que a urgência do imediato, o aqui e agora.

Depois dos paraísos químicos, da quebra da couraça muscular do caráter, da porra-louquice e do desbunde, do pé na estrada e todas as outras contestações e clichês que marcaram a travessia da ponte dos 1960 para os 70 (isso no século passado), os anos 1980 chegavam como um superego de ressaca exigindo altas doses de realidade a todos. Foi o gozo perverso da norma em estado de volúpia, aquilo que Deleuze e Guattari definiriam em seu Anti-Édipo como uma máquina celibatária – não mais o desejo no comando, mas a potência de sua interdição. O refluxo da espuma na praia. Maré baixa. Aquilo tudo que se percebe na angústia que atravessa paisagens como a poesia de Ana Cristina Cesar e, principalmente, a prosa caudalosa de Caio Fernando Abreu. Suicídio versus aids. A sombra que despencou depois que nenhum nirvana foi alcançado.

Eram amigos e interlocutores. Na primeira edição de A teus pés, foi Caio F. quem assinou a orelha do livro de Ana Cristina Cesar. Perpassa a figura dessas sensibilidades alguma pergunta como deserto para a alegria e festa intangíveis, interrogação presente no espaço aéreo brasileiro desde Wally Salomão e Torquato Neto e que encontra uma forma de balanço e panorama no espírito atento de Caio Fernando Abreu – um dos autores que sintetizam a grande pirueta que a cena cultural e literária do Brasil deu ao longo do intervalo entre os anos 1960 e os 1990 (reverb de Hendrix em “… now if the six, turned up to be nine…”).

Qual enunciado descreve melhor o intervalo que nos separa da ausência da vida que se foi: “Há 15 anos morria Caio Fernando Abreu” ou “Uma década e meia sem Caio F.”; 25 de fevereiro de 1996, as coincidências lhe escolheram o mesmo mês e o mesmo dia de partida, tal como o foi com Mário de Andrade e Tennessee Williams.

Um traço comum entre Torquato, Ana Cristina Cesar e Caio Fernando Abreu – a vocação para apagar qualquer fronteira entre vida e obra. Coragem. No caso de Caio F., em especial, sua homossexualidade emerge como um dos principais temas de sua produção. Nos 1970, O Lampião e o Jornal do Brasil já tinham sido tribunas livres da “imprensa nanica” que resistiam à fogueira homofóbica sempre pronta a se incendiar na intolerante classe média brasileira, que quando pode e quer sai às ruas para marchar “com Deus pela família”. A obra de Caio Fernando Abreu soma-se a essa trajetória de luta por reconhecimento e tolerância.

No contexto do poder simbólico sempre presente na cultura de massa brasileira que tradicionalmente sedimenta uma caricatura como identidade homossexual, a voz de Caio Fernando Abreu coloca-se em destaque como um contrapoder ao afirmar a diferença: “Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade”.

Grande parte de sua obra foca esse universo de preconceitos e de resistência, mas engana-se quem tenta aprisioná-la nesses limites. O escritor e jornalista gaúcho era acima de tudo um cidadão do mundo, tanto na geografia como naquilo que escrevia. Nômade esquivo a quaisquer compartimentos, seu ser era o constante devir.

 

Mais corajoso ainda foi Caio
Fernando Abreu ao assumir
publicamente numa de suas
crônicas publicadas em O
Estado de S. Paulo que era
soropositivo. O escritor
descobriu que tinha sido
infectado pelo HIV em 1994.

 

 

Sua estreia na literatura deu-se com Inventário do ir-remediável, em 1970. Depois vieram o romance Limite branco (1971), O ovo apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977). O mais conhecido de seus livros é Morangos mofados, publicado em 1982. Nele, Caio Fernando Abreu dá acabamento à sua forma de romance-móbile, constituído por contos que podem ser lidos como estruturas independentes, ou então como momentos articulados numa unidade maior que os amalgama numa narrativa que se tece em intervalos. Livro poliédrico e incrustado no cotidiano de utopias espatifadas da década de 1980.

Do sucesso de público ao de crítica, Caio F. vai ganhar o Prêmio Jabuti em 1984 com Triângulo das aguas (1983). A seguir, o autor publica uma novela voltada para o público infantojuvenil, As frangas (1988). Com Os Dragões não conhecem o paraíso, de 1988, o autor volta mais uma vez à forma móbile de contos articulados que o consagrou com Morangos mofados e conquista mais uma vez o Prêmio Jabuti. No mesmo ano é publicada a antologia Mel & girassóis.

Em 1988, também Caio F. ganha na França o Prêmio Molière com uma peça de teatro, A maldição do vale negro – além dessa, Caio F. assinou outras como O homem e a mancha e zona contaminada. Outros livros seus são Bem longe de Marienbad (1994), Ovelhas negras (1995), Estranhos estrangeiros (1996) e Pequenas epifanias (2006).

Além do teatro, Caio F. também escreveu para o cinema. Seu romance Onde andará Dulce Veiga? (1980) se transformou num filme dirigido por Guilherme de Almeida Prado e lançado em 2008. É dele também o roteiro de Romance (1988), filme do cineasta Sérgio Bianchi, amigo com quem Caio F. dividiu apartamento quando viveu em São Paulo. O roteiro de Aqueles dois, dirigido por Sérgio Amon em 1983, foi desenvolvido com base em um conto do autor gaúcho. Em 2000, foi rodado o curta Sargento Garcia, de Tutti Gregianin, também baseado em um de seus contos.

Um capítulo à parte fica por conta das cartas que Caio F. escrevia compulsivamente aos amigos. Publicada pela Editora Agir em uma coletânea de 2007 e atualmente esgotada, sua produção epistolar demonstra quão intensa era sua relação com os amigos. Maria Adelaide Amaral e Hilda Hilst são duas constantes destinatárias para quem o escritor inventava apelidos – Caio F. chamava em suas cartas a primeira de “Levíssima” e a segunda de “Unicórnia”. Em sua correspondência está o registro das preocupações, ansiedades e, acima de tudo, do universo subjetivo das paixões que moviam esse escritor. Foi Lygia Fagundes Telles quem o chamou de “o escritor da paixão”.

A trajetória de Caio F. é tema de quatro obras: Caio Fernando Abreu – O Inventário de um Escritor Irremediável (Seoman), de Jeanne Callegari; Para Sempre Teu – Caio F. (Record), da jornalista e amiga Paula Dip; Caio Fernando Abreu – A Metrópole (Annablume), de Bruno de Souza Leal; e também O Jogo do Imaginário em Caio F. (Educs), de Ernani Carraro e Eulália Isabel Coelho. A vida de Caio F. foi breve e intensa como é a forma de seus contos. Indiscutivelmente um autor que contribuiu para uma cara mais urbana e cosmopolita na literatura brasileira contemporânea.

Silvio Demétrio é doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP com uma tese sobre a  contracultura e o new journalism


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

(3) Comentários

  1. Eu ADOREI. Acredita que chorei ao ler? Caio Fernando Abreu escreveu muito. Tenho muito o que ler dele ainda. Fiquei interessando em conhecer o trabalho de Ana Cristina Cesar. Caio Fernando Abreu é a voz de muito que se calam. É quem fala de si de uma forma ímpar e muitos se encontram nos sentimentos deles. Uma velha negra mofada que não conhece o paraíso.

  2. CAIO LIVRE-Caio Fernando Abreu, o amigo de Clarice que queria ser Clarice Lispector, foi de uma geração que teve de aprender à duras penas as mudanças sociais, e se rebelar para aflorar seu interior em contos… As mudanças foram rápidas demais para acompanhar, e isso teve um preço alto. Para o pagamento a busca pela liberdade, mas a doença fatal ceifando sua vida… De uma sensibilidade a flor da pele, com uma visão singular, revirando o interior da alma humana. Ele estava em outra rotação. Outra esfera, mas conectado à nossa, humana (humana?)…Caio está nas estrelas…Observando

Deixe o seu comentário

TV Cult