O espaço de Molly Bloom

O espaço de Molly Bloom
O escritor James Joyce, autor de 'Ulisses', 'Finnegans wake', entre outros (Foto: Encyclopedia Britannica/Reprodução)

 

Um resmungo ou grunhido sonolento: “Mn”. Essa é a primeira vez que se ouve Molly Bloom em Ulisses (1922). Ela está na cama de manhã e responde a Leopold Bloom, seu marido, que lhe pergunta se quer algo da rua. Não, ela não quer nada da rua nem do mercadinho nem da banca de jornal etc. Molly começa com uma espécie de “não”, embora tenha ficado conhecida como a personagem do “sim”. Teria com o tempo aceitado tudo?

Um pouco antes, na cozinha, a gata, esfregando-se na perna da mesa, dirige-se a Leopold com um “—Mkgnao!”. De modo que tanto Molly quanto a gata parecem falar a mesma língua.

Cabe ainda destacar que na primeira vez em que a gata resmunga lê-se que ela “mia em resposta”. Nos resmungos seguintes, verbos como “miar” são deixados de lado e passa-se a empregar verbos como gritar, gemer, chorar ou choramingar e dizer. Esses verbos são usados também para seres humanos.

Contudo, quando Molly fala pela primeira vez, apesar de o verbo escolhido ser “responder”, sua voz produz não uma palavra, mas um “resmungo ou grunhido” (A sleepy soft grunt). Vale lembrar que a grunt pode ser um som emitido por uma pessoa ou por um animal, como, por exemplo, o porco.

Talvez para o narrador Molly e a gata estejam na história em pé de igualdade, seriam animais privados de linguagem e, por isso, Leopold falaria por elas.

Em O animal que logo sou, Jacques Derrida lembra que, ao dizer “o animal”, pretende designar “todo ser vivente que não seria o homem (o homem como ‘animal racional’ […]).” Desse modo, “o animal” seria a palavra que “os homens se deram o direito de dar” para designar esses seres. Segundo o filósofo argelino: “O Animal, dizem eles. E eles se deram essa palavra, concedendo-se ao mesmo tempo, a eles mesmos, para reservar-se, a eles os humanos, o direito à palavra, ao nome, ao verbo, ao atributo, à linguagem de palavras, enfim, àquilo de que seriam privados os outros em questão, aqueles que se colocam no grande território do bicho: O Animal”.

Afirma Derrida que “todos os filósofos […] dizem a mesma coisa: o animal é privado da linguagem”. Mais precisamente, o animal é “o único que fica sem palavra para responder”.

Num primeiro momento, Molly, ainda sonolenta, semiconsciente, e a gata se confundem. O grunhido de Molly – “Mn” – parece ser muito mais um som instintivo do que uma resposta propriamente dita. A gata que miou emitiu um som parecido para responder a determinado chamado de Leopold Bloom. Ambas são privadas de palavras.

Quando Leopold volta para casa o que se vê é Leopold servindo chá para Molly, assim como serviu leite à gatinha.

Molly e a gata estariam também num espaço de domesticação, um entre tantos outros espaços onde o homem encarcerou “todos os viventes que […] não reconheceria como seus semelhantes, seus próximos ou seus irmãos”, como diz Derrida. Obviamente, este texto é uma provocação e, nesse sentido, o “espaço de domesticação” de Molly seria a sua cama, o seu quarto, a sua casa, de onde ela não sai ao longo de todo o romance.

Mas Molly é uma mistura de animal com humano, quase um ser mítico, talvez uma sereia sedutora. Se ela inicia grunhindo, aos poucos, porém, vai adquirindo a linguagem e seduz os homens ao seu redor. A primeira palavra que pronuncia é “Poldy”, o apelido carinhoso de Leopold Bloom. Em seguida, vai proferindo frases curtas como “Para quem são as cartas?” e “Ela recebeu as minhas coisas”.

Bloom, um marido carinhoso, além de lhe trazer chá e abrir a veneziana do quarto ao gosto de sua mulher, é também seu “professor”. É ele quem lhe esclarece, por exemplo, vocabulários obscuros dos livros que ela lê, como, por exemplo, a palavra metempsicose: “significa transmigração das almas”, diz Leopold. Molly, ainda sem entender, pede que ele lhe explique “com palavras comuns”.  O marido prossegue: “eles costumavam acreditar que a gente podia ser transformado num animal ou numa árvore, por exemplo. O que eles chamavam de ninfas, por exemplo”. Molly seria uma ninfa?

Leopold parece também não acreditar muito nos dotes intelectuais e artísticos da sua mulher; duvida, por exemplo, que ela saiba pronunciar bem a palavra italiana voglio: “Voglio e non vorrei. Me pergunto se ela pronuncia isso direito: voglio”.  Haveria aqui uma referência à opera Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, isto é, a uma frase dita por Zerlina (Vorrei e non vorrei), em um dueto com Don Giovanni, um nobre sedutor que tenta se interpor entre ela e seu noivo Masetto. Nesse diálogo, Don Giovanni a convida para partir com ele e ela hesita: “quer e não quer”.

Leopold Bloom desconfia que Molly tenha um amante, o jovem Blazes Boylan, seu empresário. Mas parece permitir a ela esse prazer, essa distração. Molly seria uma ninfa e Boylan um sátiro (os sátiros costumavam ter relações sexuais com as ninfas). Ao tolerar esse caso extraconjugal e a “carreira” como cantora, não estaria Leopold manipulando Molly, mantendo-a em casa sem necessidade de ir embora para se realizar como mulher, profissional e emocionalmente?

Leopold Bloom talvez intuísse o que décadas depois Betty Friedan revelaria no livro A mística feminina (1961), ou seja, que as donas de casa e as mulheres com atividades profissionais esporádicas muitas vezes buscavam no sexo uma forma de se sentirem vivas. Molly Bloom viveria, como diria Friedan, “dentro das fronteiras estreitas da mística feminina”, ou seja, ela é “inteligente” (apesar de Leopold duvidar disso), mas extremante incompleta. Molly não tem mais a filha para cuidar: Milly mora fora, já é uma moça de quinze anos (Rudy morreu logo depois de nascer), não tem uma profissão em que possa fazer uma carreira. Segundo Friedan, “o sexo é a única fronteira aberta para mulheres que sempre viveram confinadas pela mística feminina”.

Décadas antes, Nora, mulher do advogado Torvald Helmer, personagem da peça Casa de bonecas (1879), de Henrik Ibsen, grande mestre do escritor irlandês, abandonara o lar. Quando o marido lhe diz que “não há ninguém que sacrifique a sua honra pelo ente que ama”, Nora responde que “milhares e milhares de mulheres têm feito isso”. Estaria Joyce atento a esse fato quando escreveu Ulisses, razão pela qual sacrificou a honra de seu protagonista para que pudesse manter a esposa em casa?

Molly segue em seu “espaço de domesticação”, na sua casa, na sua cama. Nesse sentido, lembra a personagem de A obscena senhora D, de Hilda Hilst, presa no vão da escada de sua casa.

Dirce Waltrick do Amarante traduziu e organizou Finnegans wake (por um fio), autora, entre outros de Para ler Finnegans Wake de James Joyce, ambos publicados pela editora Iluminuras.


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