Necrotério Brasil: um país insepulto

Necrotério Brasil: um país insepulto
(Agência Brasil)

 

O Brasil é hoje um dos epicentros da crise mundial do novo coronavírus, tendo passado o número de casos da China, onde aparentemente tudo começou. Existe a probabilidade sinistra de o país se tornar o campeão da pandemia, o que não se deu em função de alguma exposição particularmente alta ao patógeno. Pelo contrário: o que vivemos é um caso não de falta de recursos, mas de omissão deliberada por parte daqueles que deveriam pensar nos interesses da população.

O momento é, pois, sério, seríssimo, mas não foi o piloto que sumiu. Na verdade, o avião desapareceu em pleno ar, com os passageiros amarrados pelo cinto e sem paraquedas. O governo federal não somente despreza os princípios básicos de saúde pública, mas colabora deliberadamente com o próprio vírus. Nesse turbilhão, o tenente Bolsonaro marcha, tirando selfies com seu sorriso sociopático e cerrando fileiras com as tropas do General Covid-19. Seu ministério é uma força amorfa, incapaz de construir coisa alguma e obcecada pela destruição de tudo, todos e cada um.

O escritor francês François Rabelais foi traído e sua frase famosa, invertida: “conhecemos agora os que puderam o que não deviam, porque quiseram aquilo que não podiam”.

Lembremos, contudo, que apesar de grave, a situação não é inédita. Nossa tragédia, hoje mistificada em farsa, endossada pelo verde-oliva pusilânime e sempre lucrativa para os gigolôs da política brasileira, é apenas o mais recente capítulo da nossa longa história de “futuricismo”. Nunca tivemos república, democracia, justiça e muito menos progresso. Claro que houve gritos de alerta em Canudos, na Cabanagem, no Massacre do Paralelo 11, no Carandiru, em Eldorado dos Carajás, em Caarapó e outros campos de concentração Guarani-Kaiowá. Situações todas onde, invariavelmente, as numerosas vítimas valem muito pouco, quase nada, para as autointituladas elites nacionais. Vítimas que são reiterada, deliberada e violentamente descartadas da existência e mesmo das estatísticas oficiais. Ficarão anônimas em meio à violência institucionalizada, essa sim com nome e sobrenome maísculos: País Real, definição de Machado de Assis, profundo conhecedor das mazelas e profundas vergonhas nacionais.

Esse País Real não cabe nas estatísticas diárias do Ministério da Saúde e  nem na douração da pílula do discurso ufanista da nossa brasilidade cordial. Milhões que nunca tiveram serviço médico decente, agora não terão nada que assim se pareça. Não cabiam antes na economia nacional, não tinham espaço no campo ou na cidade, não acharam vaga no hospital e não terão nem mesmo os mínimos palmos de chão que João Cabral prometeu, já que agora o que lhes espera é a vala coletiva do esquecimento. Nesse pesadelo em expansão, o país se converte cada dia mais em um necrotério disfuncional. Ou pior, dois necrotérios para uma nação que sempre foi desigual: aos ricos e aos seus sócios minoritários, o que ainda funciona na saúde e nos cemitérios; à maioria, o mínimo com que sempre puderam contar, que é enfim quase nada.

Como poderia ser diferente? Tudo começou com o genocídio de 98% daqueles que moravam na terra há mais de 40 mil anos, dizimados em poucas gerações em meio à maior tragédia humana de todos os tempos (calcula-se em mais de 150 milhões de mortos nesse período desde Ushuaia a Prudhoe Bay). Depois, a compra e o desperdício de vidas africanas, o controle especulativo do território, governos dos barões e bacharéis, a economia servindo para alimentar as saúvas do Lago Sul, da avenida Paulista e da Zona Sul.

É truísmo conhecido dizer que o Brasil teve uma trajetória histórica definida por estruturas econômicas excludentes e uma matriz política autoritária. Desde o período colonial, a base agrária latifundista foi legitimada por um arcabouço legal formalista e por elementos culturais hierárquicos e racistas. Nossa modernização pelo alto, acelerada desde a metade do último século, pautou o curso das mudanças mais recentes. Mas se, por um lado, ofereceu algumas parcas oportunidades, sempre insuficientes e controladas, por outro reiterou a exclusão estrutural por por meio de reificações de lógicas e práticas discriminatórias.

Migalhas de inclusão foram ofertadas ora pelo imperador, marechal de ferro, pai dos pobres, general-sargentão ou qualquer outro salvador da pátria de ocasião. Nesse processo, nossas noções de cidadania eram definidas não por concepções igualitárias, mas pelo apadrinhamento ou, na melhor das hipóteses, pela sempre excludente e auto-vitimizante meritocracia neoliberal. Da mesma forma, nossa democracia sempre foi limitada pela pelo força bruta do cabresto e do “prendo e arrebento” ou, na melhor das nossas versões legais, pela reiteração da máxima Maquiavélica que oferece “aos amigos os favores, aos inimigos a lei”.

O Brasil de hoje continua com um controle social garantido ora pelo capitão do mato, ora pelo delegado de plantão, dois lados da mesma moeda de exclusão, racismo e iniquidade. Mas sejamos justos: Bolsonaro e sua camarilha não têm nada de homens das cavernas. Não haveria caverna que os acomodasse. Pelo contrário, são a expressão mais apurada da ultra-modernidade que inova ao se pretender terminal, injeção eutanásica nas veias abertas da cachorrada subalterna. Pretendem levar tudo ao bagaço, sugar o que ainda sobra como se não houvesse amanhã, com a certeza que já inviabilizaram a possibilidade de o país continuar a existir como tal. Brasileiros, ou sua maioria, já somos o pós-do-que-nunca-pudemos-ser.

Ao negar a doença de agora, ao debochar de quem morre afogado e sozinho, o triste tenente de ocasião reafirma o paradoxo fundamental que todos conhecemos, mas que precisamos sempre aprender de novo: o Brasil é a sua gente, mas ela não cabe em um país tão minúsculo de direitos e pobre de discernimento. Temos assim, de uma lado da ratoeira, Jair Bolsonaro, líder de um oportunismo tão neofascista quanto declinante, além de um ainda importante apelo popular. No outro, temos  a celebridade de Sergio Moro, juiz tacanho de província, moralista e reacionário.

O primeiro fez carreira política em cima da exaltação das piores práticas da ditadura civil-militar que controlou o país nos anos 1960 e 1970. Buscando aura de celebridade, chegou mesmo a dizer em entrevista no início dos anos 1990, como carpideira eufórica do regime autoritário, que a ditadura deveria ter matado pelo menos 30 mil e que somente uma guerra civil poderia dar conta de “endireitar” o país. Hoje, no controle do governo federal, após eleição vergonhosa e pautada por ilegalidades, faz jus a sua biografia mentecapta, exaltando os “corajosos” que não aceitam o confinamento social imposto por governos locais, única medida conhecida no mundo para contenção da crise sanitária em ascensão. O segundo, imerso na vaidade construída pelo cultivo do uso autoritário e enviesado das prerrogativas legais, após participar do governo mais fascista dos últimos 70 anos, busca hoje se reinventar como guardião da lei e da ordem, não percebendo, por incapacidade intelectual, que tal esforço é somente o braço legal da construção de regimes de exceção e sociedades autoritárias.

Simpatizantes dos dois atores bufos se digladiam no esforço vil de provar que seu líder é o verdadeiro representante do populista autoritário em curso, enquanto as instituições que supostamente “estariam funcionando” assistem a tudo tão “bestializadas” quanto a população que, sem entender o que se passava, serviu de plateia para o golpe republicano de 1889.

A depender da ação da elite política, disposta sempre a conchavos e conluios desde que garantam sua permanência nas benesses da lógica cartorial de sempre, o prognóstico de que somente com a morte de 30 mil poderíamos presenciar algum mudança efetiva virá não somente a se confirmar, como deveremos ultrapassar tal cifra de maneira exponencial. A questão é saber se tais números terão o efeito de reorientar os padrões históricos de controle e manutenção do poder político, econômico e social, ou se servirão somente para aprofundar o curso de autoritarismo, exclusão e alienação crescentes.

Se as aparências não nos enganam, Bolsonaro e seus generais-tutores parecem estar satisfeitos em sua aliança funesta. Ainda que hoje fora dos esquemas diretos de funcionamento do aparelho governamental, Moro e seus asseclas foram fundamentais para o desmonte de boa parte do Estado de direito. Assim, as mortes amontoadas servirão somente como pano de fundo para a opereta tropical com música fúnebre e um libreto previsível com ainda mais privatismo, apropriação do trabalho alheio e salve-se quem puder!

Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver (EUA)

Antonio A. R. Ioris é professor da Universidade de Cardiff (Reino Unido)


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