Muito barulho por nada: Lula continua falando demais

Muito barulho por nada: Lula continua falando demais
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

 

Um dos mais difíceis empregos na política nacional, hoje, deve ser cuidar da comunicação do presidente da República. Em tese, não deveria ser tão complicado assim, quando se tem na presidência uma pessoa que se expressa com muita clareza e enorme facilidade, diferentemente da fala confusa, cheia de curvas e paradoxos de Dilma Rousseff. Ou que consegue se comunicar bem com todo tipo de público, ao contrário da verve empolada, arcaica e mesoclítica de Temer.

Na verdade, não é bem assim. O problema de Lula nunca está na forma do discurso nem no domínio da eloquência, nunca estará na incapacidade de esculpir frases de efeito que ficam na memória do interlocutor, nem se nota qualquer dificuldade em capturar a boa vontade do seu público. Nessa arte, Lula é muito bom, talvez o melhor orador no cargo de presidente nas últimas décadas.

O problema da comunicação de Lula está na frequência com que fala o que não deve e do que não deveria falar, quando não precisa e para o público errado. Apenas.

Lula não se contenta em falar das coisas de que efetivamente entende – e ele entende de muitas coisas -, ou sobre as quais ele precisa realmente se pronunciar em um determinado contexto. Todos nós temos cá as nossas ideias sobre quase todas as coisas, mas mesmo nós sabemos que não é possível dizer o que quer que ande pela nossa cabeça em qualquer contexto e diante de qualquer interlocutor. Lula, contudo, parece convencido de que não é bem assim. As circunstâncias, o público, a inspiração, sei lá, de repente o arrebatam e lá está ele falando sobre o que não precisaria falar e, pior, falando o que não deveria falar.

Imagino a cara de surpresa de quem cuida da comunicação presidencial ao ver que Lula de repente se aproxima de um microfone numa cerimônia e, sem combinação ou necessidade, começa a falar, por exemplo, que o impeachment de Dilma Rousseff foi golpe, constrangendo metade do seu governo e o seu vice-presidente, além de gerar uma polêmica extemporânea e inútil que vai repercutir por semanas. E ocupar o lugar de outros temas muito mais sérios e urgentes na pauta do debate nacional, inclusive do interesse do próprio governo.

Mesmo que nossas opiniões sejam supostamente compartilhadas com nossos camaradas mais próximos e, quiçá, com mais gente por aí, costumamos observar o público e estimar o nível de sintonia entre o que pensamos e a opinião da maioria dos circunstantes. Afinal, estimar o clima de opinião predominante no ambiente é mais seguro do que descobrir depois que falamos demais, constrangemos interlocutores, cometemos gafes, metemos os pés pelas mãos e causamos uma má impressão

Agora imaginem uma situação em que tudo o que a gente diga ou sussurre será gravado e retransmitido para infinitos contextos, terá repercussão para além dos interlocutores presentes, será amplificado, editado e comentado em qualquer lugar do mundo. Nesse caso, a atenção com o que se diz, como se diz e sobre o que se diz deveria ser centuplicada, claro. Exceto, ao que parece, no caso de Lula, que acha que todo interlocutor vai adorar o que ele fala e está pronto para acolher a sua palavra como uma grande revelação.

Ele tem lá uma ideia sobre o voto de ministros da Suprema Corte. Ruim ou boa, a ideia é sua, ninguém precisa ser apresentado a ela, pois o que diz o Chefe de Estado tem muito peso e o assunto terá grande repercussão no poderes Judiciário e Legislativo. Sem mencionar a bomba que explodirá na opinião pública neste momento em que o STF foi deslocado para o centro da atenção do país. Mas as ideias de Lula não podem ser contidas e de repente todo mundo sabe que o presidente pensa que “A sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte”. Bum! Como depois de pedras que caem no teto de zinco de um galinheiro, segue-se um alarido infernal que abafa tudo o mais.

Era desnecessário dizer isso. E o que foi dito é, no mínimo, discutível; provavelmente insustentável. Mas, sobretudo, será fonte de mil especulações sobre até onde alcança a apologia que Lula faz da intransparência, do segredo, quem sabe da absolutista Razão de Estado. Lula não é jurista nem teórico da democracia, Lula não pretende nem tem força para mudar a Constituição em questão tão complexa, Lula apenas produziu um barulho desnecessário, sobre assunto que não lhe diz respeito e está fora do seu alcance.

Ganhou nada, a não ser narizes torcidos para ideia tão retrógrada. Lucram certamente seus opositores e inimigos, que têm agora uma sonora e uma citação à disposição para trabalhar a ideia de que Lula não gosta de transparência pública e prefere proteger os juízes da pressão da opinião pública, mas não da pressão dos poderosos ou do próprio governo.

Na usina das ideias mais esquisitas de Lula, aquelas sobre ditaduras de esquerda são tão impressionantes quanto repudiadas fora do cercadinho da esquerda mais antiga. Contudo, ele parece ter decidido que é sua responsabilidade e missão evangelizar o “mundo capitalista” de que regimes autoritários de esquerda não são tão ditatoriais assim. De forma que não perde sequer uma oportunidade em suas andanças pelo exterior de dizer alguma coisa legal sobre algum ditador bróder latino-americano.

Ganha algo com isso? Nada. A esquerda socialista vetusta não chega a lotar uma kombi e nunca vai abandoná-lo. A esquerda moderna fica constrangida com essa insistência que enfraquece sua posição ante o anticomunismo vulgar que prospera por aí e se pergunta, uma vez que parece impossível Lula mudar de ideia, se ao menos ele não poderia parar de falar essas coisas. Quem lucra com a ideia de que Lula não é contra ditaduras, que até curte algumas desde que o ditador seja de esquerda, por outro lado, dá pulos de alegria quando Lula desanda a defender Cuba e a Venezuela.

Lula tem ideias muito singulares sobre Putin e a Rússia, que divergem da opinião de democratas liberais pelo mundo afora. Lula poderia se contentar em compartilhá-las apenas com Celso Amorim, nos longos momentos de intimidade dessas viagens todas. Ou em um papo com Leonardo Boff, que delas comunga. Mas não. Não há filtro que lhe impeça de expressar sua indulgência e compreensão com o ditador russo, chegando ao ponto de recentemente garantir, numa bravata incompreensível, que se o companheiro quiser vir ao Brasil no encontro do Brics, o país não cumprirá o mandado de prisão emitido contra ele pelo Tribunal Penal Internacional. Aliás, um mandado emitido nada menos que por “deportação ilegal de crianças ucranianas”.

Novamente, nada disso está sob o alcance de Lula, as suas opiniões sobre os temas não apenas são claramente minoritárias no mundo como são surpreendentes e chocantes no atual clima de opinião. Não há qualquer perspectiva de ganho de imagem ou prestígio na exposição de tais ideias sobre o tema, só as previsíveis perdas. Não obstante, nada o contém, ele tem que falar e não há força que o convença do contrário.

E quando a reação vem rápida, coesa e pesada, inclusive fazendo-lhe notar que o Brasil é signatário do Tribunal Penal Internacional – e a ele já recorreu inclusive para denunciar Bolsonaro -, nada disso tem o condão de fazer com que recue sobre a palavra dita ou reconheça o engano. Lula dobra a aposta, questiona a legitimidade de Tribunal ou a oportunidade de o Brasil ser dele signatário, admite que não sabia da sua existência, sai-se com uma tese improvisada e falsa de que só “bagrinho” aderiu a ele, e até hoje não saiu um “erramos” sequer ou um “ôpa, mandei mal”.

O fato é que, para o desespero dos seus apoiadores mais lúcidos e o contentamento dos seus adversários, Lula continua falando demais, expressando opiniões controversas sobre temas que não são do seu domínio e sobre os quais não precisaria falar. Sem qualquer ganho à vista, mas com perdas evidentes. O resultado é um pesadelo para uma comunicação presidencial eficiente. Mais barulho desnecessário, uma mobilização permanente de pessoas que se dedicam a enfrentar os disparates que o presidente profere e a aceitar o desafio que faz nas polêmicas em que se mete, mais energia coletiva despendida nas refutações dos argumentos de Lula e, finalmente, mais contestações à sua imagem como um democrata ponderado e que quer ser levado à sério pela comunidade internacional. Tudo absolutamente desnecessário.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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