Luta de classes

Luta de classes
(Arte: @fsaraiva)

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Marcos Rodolpho e Patrícia Suzana formam um belo e rico casal cuja vida está sendo afetada pela violência urbana. Juntos há uma década, jovens (na casa dos trinta anos de idade), eles já experimentaram alguns dos infortúnios proporcionados pela hecatombe social que atinge a sociedade brasileira desde sempre: já foram assaltados na rua incontáveis vezes, já tiveram seus carros furtados em um punhado de ocasiões e já tiveram a casa invadida por mais de um bando de ladrões. Móveis, eletrodomésticos, roupas, joias, obras de arte, dinheiro vivo e barras de ouro foram levados e jamais recuperados.

Marcos e Suzana costumam brincar, com seu bom humor tão peculiar, que a única “coisa” que os bandidos nunca roubaram é a Selma, a governanta do casal, uma senhora de 60 anos de idade que Suzana herdou dos pais, que a adotaram aos 8 anos. Desde então, Selma cuida da família em tempo integral em troca de casa e comida. “Se tivesse vinte anos a menos, eles a levariam, mas agora ela está velhinha, coitada”, diz Suzana, se divertindo a valer.

Como a criminalidade no Brasil parece não dar trégua, Marcos e Suzana decidiram se mudar para um país do Primeiro Mundo, no qual pudessem levar uma vida normal, sem serem molestados pelos inconvenientes da pobreza e da desigualdade social. Depois de meses de impasse, finalmente escolheram seu éden: Genebra, na Suíça. Tomada a decisão, em pouco tempo aterrissaram na terra do chocolate e da lavagem de dinheiro legalizada. De mala e cuia, Selma foi junto, porque sem ela o casal simplesmente não conseguiria viver.

Nos primeiros dias tudo era bom, as pessoas majoritariamente brancas, bonitas e bem-vestidas. Mas logo as interações entre o casal e a população local começou a gerar estranhamento mútuo. Marcos e Suzana acharam os hábitos dos cidadãos daquela cidade muito estranhos, como jogar o lixo em recipientes instalados em locais públicos destinados justamente para esse fim; não dirigir acima do limite de velocidade nas ruas, avenidas e rodovias; não agraciar agentes públicos com contribuições financeiras a fim de eles burlarem a lei; não poder ouvir música a todo volume, mesmo que você esteja em sua própria casa. Tudo isso levou Marcos e Suzana a questionarem se a decisão de morar em um país civilizado tinha sido mesmo acertada.

A gota d’água ocorreu quando a polícia bateu na porta do casal para averiguar a denúncia de trabalho escravo. Surpresos, indignados, aterrorizados, eles pediram a Selma que distraísse os policiais enquanto fugiam do país só com a roupa do corpo, vejam só. Já no avião com destino ao Brasil, Marcos refletiu, magnânimo: “Fico triste por termos deixado a Selma para trás, mas pelo menos ela foi abandonada no Primeiro Mundo”.

Algum tempo após ter deixado o aeroporto brasileiro onde o casal desembarcou, o táxi em que estavam foi interceptado por um outro veículo, conduzido por uma dupla de bandidos que anunciou o sequestrou-relâmpago. A noite seria longa, e o saldo bancário de ambos logo estaria zerado. Marcos e Suzana choraram emocionados de alívio. Pelo menos, aquele era um mal que lhes era bastante conhecido. E íntimo.

por Felipe Keppler


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