Estante Cult | Junho de 2013 à luz do materialismo cultural

Estante Cult | Junho de 2013 à luz do materialismo cultural
São Paulo (SP), 29.06.2023 - Ato contra tarifa de transporte público lembra atos de 2013. Manifestação no centro da cidade pela Tarifa Zero para o transporte público (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

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Já se passaram dez anos desde os eventos disruptivos de junho de 2013, que abalaram o país inesperadamente como se fossem raios em dias de céu azul. Sim, o céu parecia estar azul. O ano de 2013 registrou a menor taxa média de desemprego da história do país, cerca de 5,4%, a inflação estava relativamente estabilizada em torno de 5%, os juros estavam na taxa mais baixa da série histórica, o salário-mínimo recebia valorização real acima da inflação e milhões de pessoas saíam da condição de miséria. O Brasil ainda era um país desigual, certamente, mas nada diverso do que sempre foi. A violência daquelas manifestações, portanto, foi surpreendente em sua aparência. Mas se a aparência e a essência das coisas coincidissem imediatamente, toda a ciência seria supérflua, como registrou Marx em O Capital.

Nesta última década, centenas de interpretações buscaram compreender aquele fenômeno, ou seja, tentaram sair da aparência para investigar a essência das coisas. No entanto, não obstante a quantidade de pesquisas nessa direção, dificilmente poderíamos dizer que a ciência já tenha alcançado alguma conclusão consensual sobre o que ocorreu. Ainda assim, há pelo menos um ponto em comum entre todas as interpretações: a percepção de que após 2013 houve uma regressão democrática no Brasil.

Eu mesmo, em Partidos, classes e sociedade civil no Brasil contemporâneo, já tive a oportunidade de registrar alhures que, mutatis mutandis, assim como na França as jornadas operárias de 1848 culminaram na ascensão imperial de Luis Bonaparte em 1851 e o maio de 1968 terminou com a ampliação da força do general Charles De Gaulle na Assembleia e a posterior eleição do conservador Georges Pompidou, ou que no Brasil as amplas mobilizações de 1964 tiveram como trágica consequência o golpe militar de 31 de março, o resultado indireto e mais visível das assim chamadas “jornadas de junho de 2013” foi o golpe parlamentar que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016, à prisão de Lula em 2018 e à posse de Jair Bolsonaro na presidência da República em janeiro de 2019.

É sob esse diapasão que merece atenção o livro Sob o céu de junho: as manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural, de Fábio Palácio, que a Autonomia Literária acaba de publicar. Palácio se apropria do materialismo cultural, abordagem teórica edificada pelo marxista galês Raymond Williams, para compreender junho de 2013, tendo como ênfase analítica a questão da comunicação e da cultura.

Aqui cabem algumas palavras prévias sobre o materialismo cultural. Por muito tempo, os marxistas enxergaram o materialismo histórico pela metáfora do edifício, na conhecida expressão de Althusser em Aparelhos ideológicos de Estado. A estrutura do edifício, ou seja, a sua parte de baixo, seria a sociedade e a economia. Essa base serviria de alicerce para a parte de cima do edifício, para sua superestrutura, que seria representada pela ideologia, pela consciência, pela cultura, pela comunicação, pelas instituições etc. Essa interpretação partia de A Ideologia alemã, obra de juventude de Marx e Engels, que inverteu a leitura idealista proposta por Hegel, para quem as ideias conformariam o ser social. Mas também estava presente na obra de maturidade de Marx, mais precisamente no seu famoso Prefácio de 1859. Na disputa intelectual de sua época, Marx e Engels estavam corretos em inverter o debate proposto pelos idealistas. Em uma não tão conhecida carta para Bloch de 1890, Engels explica que Marx e ele precisaram enfatizar a importância da economia num momento em que seus adversários a negavam. Algo semelhante àquilo que Lênin um dia chamou de a “teoria da curvatura da vara”: quando a vara está muito inclinada para um lado, faz-se necessário forçá-la para o outro, para que, enfim, ela termine numa posição justa, presente também nas Posições de Althusser.

O problema é que, com o tempo, essa inversão gerou insuficiências e interpretações erráticas, que separavam a consciência, a cultura e a comunicação da economia em campos distintos ou mesmo opostos. Bom que se diga, o próprio Marx em sua obra de maturidade, O Capital, já havia demonstrado o papel da consciência na construção do mundo material. Mas o que permaneceu mesmo no materialismo histórico posterior, salvo exceções, foi a leitura dicotômica entre consciência e mundo material. Foi para corrigir a rota do materialismo histórico, para atualizá-lo, que Raymond Williams concebeu a abordagem metodológica do materialismo cultural, articulando dialeticamente essas dimensões. Palácio investe uma boa parte de seu livro – um capítulo de mais de 50 páginas derivado de sua tese de doutorado defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP – para explicar ao leitor as teses do materialismo cultural. E lança mão de dois conceitos desse referencial teórico – hegemonia e estruturas de sentimento – para estruturar sua interpretação sobre o Junho de 2013 no Brasil.

Mas nosso país não é uma ilha. Palácio observa com perspicácia que a ambiência internacional contingencia a dinâmica nacional. Seu segundo capítulo passa em revista uma série de movimentos políticos ocorridos nas duas primeiras décadas do século 21 e que guardam relação com o caso brasileiro. O autor categoriza esses eventos de duas formas: (1) os movimentos ligados às forças hegemônicas, ou seja, articulações ligadas aos interesses de conservação da ordem, como as chamadas revoluções coloridas – incluem-se aqui parte da “Primavera Árabe” e as iniciativas latino-americanas contra Chávez na Venezuela e Dilma Rousseff no Brasil; (2) os movimentos ligados às forças contra-hegemônicas, como os Indignados na Espanha e o Occupy Wall Street em Nova York, entre tantos outros. Aqui reside um ponto forte do trabalho de Palácio: demonstrar que, diferentemente do que dizem certos setores mais conservadores da esquerda brasileira, os grandes protestos internacionais do ciclo de 2011-2013 não foram homogêneos e nem podem ser reduzidos a uma mera orquestração de um centro de comando da Open Society de George Soros, dos irmãos Koch ou da Fundação Ford.

Munido do instrumental do materialismo cultural e de sua boa leitura do contexto internacional, Palácio consegue identificar no terceiro capítulo a razão pela qual o céu brasileiro estava azul apenas em sua aparência. Junho de 2013 trazia consigo um novo etos, uma nova estrutura de sentimento. Os governos progressistas de Lula e Dilma possibilitaram relevantes avanços no campo econômico da redistribuição. Ainda que insuficientes para a necessária redução da abismal desigualdade social brasileira, políticas públicas como a valorização do salário-mínimo, o Bolsa Família, o Mais Médicos e a expansão do acesso ao ensino superior via Prouni e Reuni, entre tantas outras, geravam uma falsa impressão de satisfação social. Todavia, no campo da consciência, na arena da disputa de ideias, quase nada foi feito por esses governos progressistas. Isso abriu o terreno, dirá Palácio, “para que a direita reacionária, investindo com força nos novos meios digitais, oferecesse sua própria interpretação, despolitizando as conquistas, identificando-as como fruto do mérito e da iniciativa individual, e não de um projeto político deliberado”.

O tema da internet e das redes sociais também ocupa espaço relevante em sua pesquisa. Diferentemente de algumas interpretações mais idealistas, Palácio critica a ilusão do determinismo tecnológico, segundo a qual as redes produziriam por si só ondas de participação livre e autônoma. Marxista, Palácio vê na internet uma nova arena da luta de classes. Se há práticas inovadoras como a Mídia Ninja e novas possibilidades deliberativas abertas pela internet, há também a colonização das redes por interesses muitas vezes inconfessáveis, que conformam preferências e hackeiam e vampirizam as lutas democráticas. Na linguagem de Gramsci, aí estão os novos aparelhos privados de hegemonia. O que se vê é que Palácio não corrobora o otimismo pós-marxista de Hardt, Negri e Castells sobre as redes sociais na internet.

Em síntese, Palácio traz em sua obra ao menos quatro relevantes contribuições. Em primeiro lugar, o combate ao reducionismo economicista. Na longa linhagem que vem de Marx e Engels e passa por Lênin, Gramsci, Williams e Eagleton, Palácio se apresenta como um honesto discípulo. Seu livro traz uma aplicação prática de um materialismo renovado e necessário para a compreensão de nosso mundo no século 21. Em segundo lugar, uma forte crítica aos conspiracionistas que enxergam em tudo fatores exógenos, mas que ignoram a estrutura de sentimento que conforma as formações sociais. Em terceiro lugar, o entendimento da internet como nova arena da luta de classes. Por fim, no caso brasileiro, se o livro de Fábio Palácio deixa uma mensagem ao nosso tempo, é a ideia de que o novo governo Lula que se inicia não tem o direito de cometer os mesmos erros já cometidos no passado. Políticas econômicas redistributivas são bem-vindas e desejáveis. Mais do que isso, são imprescindíveis e indispensáveis. Contudo, sem um forte investimento na disputa de ideias, de consciências, de organização e educação política, a esquerda não acumulará a força política e social necessária para o salto qualitativo historicamente exigido, para transitarmos na direção de uma sociedade pós-capitalista.

Theófilo Rodrigues é mestre em ciência política pela UFF, mestre em ciência da sustentabilidade pela PUC-Rio, doutor em ciências sociais pela PUC-Rio e foi pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ.

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