Estante Cult | Estar aberto ao que nos rodeia

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Além da psicologia: concepções mesoamericanas da subjetividade, de David Pavón-Cuéllar, é um livro de leitura fascinante para o leitor brasileiro por inúmeros motivos.

Primeiramente, por tratar de um assunto que irá se tornar incontornável daqui por diante: o que temos nós, indivíduos de um Ocidente pretensamente branco e racional, que tem dado sucessivas provas de que seu modelo de civilização está entrando em colapso, a aprender com outros povos cuja existência não esteja pautada pela ideologia trifuncional que sustenta o mundo indo-europeu à qual se dedicaram os estudos de Georges Dumézil, expressa pelos conceitos interdependentes de religião, guerra e trabalho?

Em segundo lugar, pelo fato de muitos desses povos estarem sediados na mesma América em que estamos, sem, entretanto, reproduzir o movimento a que nos submetemos tão servilmente dia a dia: o de virarmos a cabeça em direção à Europa e voltarmos as costas para a extensa faixa litorânea do Pacífico.

Um terceiro motivo reside no fato de o livro do psicólogo e filósofo mexicano, professor da Universidade Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, na cidade de Morelia, no México, constituir um compilado de conceitos que, embora sejam um tanto quanto complexos, apresentam-se de forma sistematizada e são editados com notável clareza pelo autor, que não lhes subtrai em momento algum o rigor e a formalização teórica necessários a sua devida compreensão.

As fontes do trabalho são múltiplas e variadas e compreendem desde os antigos textos mesoamericanos como o Popol Vuh, o Ritual de los Bacabes e o Rabinal-Achí até os materiais recolhidos por pesquisadores contemporâneos que trabalham em área indígenas (muitos deles pertencentes aos próprios povos originários), passando pelos cantos dos poetas nahuas como Nezahualcóyotl e Ayocuan Cuetzpaltzin e os testemunhos de Bernardino de Sahagún e André de Olmos, dentre os de outros espanhóis do século 16.

O objetivo, segundo o autor, é mostrar como os modos de subjetivação mesoamericanos (por Mesoamérica compreende-se a grande área cultural que abrange a metade meridional do México, Belize, Guatemala e El Salvador e a porção ocidental de Honduras, Nicarágua e Costa Rica) podem servir para criticar a psicologia que se estuda, há mais de um século, de maneira unívoca nos ambientes científicos e acadêmicos mundo afora, cujos elementos constituintes esculpem as representações da humanidade e medeiam as relações entre os seres humanos.

Afirma Pavón-Cuéllar na introdução da obra:

Esse processo provocou a expansão global de uma psicologia de origem europeia e estadunidense intimamente ligada à modernidade capitalista, na qual se promove a representação de um sujeito radicalmente dessubjetivado e objetificado, simplificado e generalizado, assim como essencializado, individualizado e desvinculado, masculinizado e aburguesado, possessivo e competitivo, dividido em corpo e alma, mas ao mesmo tempo abstraído arbitrariamente do resto do mundo.

Dentre as várias reflexões promovidas, encontram-se aquelas voltadas à feminilidade e ao equilíbrio nas relações de gênero e outras dedicadas às relações de poder. Evocando o trabalho do antropólogo austríaco Eric Wolf, para quem “os indígenas não tentam realizar conquistas para sublinhar sua virilidade, já que esse gênero de conquista não acrescenta nenhum brilho à reputação de um indivíduo”, o autor demonstra que nas culturas mesoamericanas a masculinidade não prevalece sobre a feminilidade, conforme ocorre no androcentrismo extremo da tradição cultural judaico-cristã europeia.

Forças como masculinidade e feminilidade operam em todos os seres objetivos e subjetivos de modo dialético: “Nada é exclusivamente o que é, porque também é o contrário”. Quanto às relações de poder, no capítulo “Diálogo e horizontalidade”, Pavón-Cuéllar demonstra o agudo contraste com a política das democracias representativas ocidentais:

Os indígenas mesoamericanos traçam uma clara distinção no seio do poder entre a comunidade que o possui e o indivíduo que o exerce. […] A comunidade é que é servida, ao passo que a autoridade é que serve.

Aferrados religiosamente (na concepção de Walter Benjamin) à ideologia do capital, que usurpa nossa subjetividade e reduz nossa universalidade ao mundo da mercadoria, talvez possamos aprender com os povos mesoamericanos que a subjetividade é múltipla, variável e mutável, não devendo nunca ser idêntica a si mesma, sendo constituída também pelo exterior, pela comunidade e pela natureza.

Talvez somente assim consigamos trilhar o caminho para a tão propalada originalidade. Ser original para nós, espremidos dentro das velhas roupas racistas e colonialistas que não nos servem mais – como provoca a tradutora do livro, Anna Turriani, na apresentação da obra –, é ser originário.


ESTANTE CULT | NOTAS
Paulo Henrique Pompermaier

No século 20, a ideia de incerteza tornou-se uma obsessão para diferentes áreas do pensamento, como a matemática, a economia e a política. A partir de um breve panorama da evolução das indagações científicas dessas disciplinas e sua apropriação pela teoria matemática da comunicação, Eugênio Bucci reflete sobre um mundo comandado pelos algoritmos, suas implicações políticas e seus reflexos em um capitalismo que se torna cada vez mais autoritário à medida que mais se digitaliza e monopoliza a informação. A obra é composta por 19 textos curtos e, naquele intitulado “A boa radicalização”, lemos uma ótima síntese da relação entre capitalismo, autoritarismo e vida digital: “No totalitarismo, o núcleo do Estado é perfeitamente opaco e blindado, enquanto a privacidade pessoal é transparente e vulnerável (ao poder). Ora, troque a palavra ‘Estado’ pela palavra híbrida ‘capital-técnica’ e você terá o retrato fidedigno dos nossos dias. Nós não somos apenas seres olhados no espetáculo do mundo. Agora, somos olhados, vigiados, vasculhados, inspecionados e capitalizados no espetáculo do mundo”.

Considerado um dos poucos textos em prosa de sucesso do dramaturgo irlandês, As aventuras de uma garota negra em busca de Deus é uma espécie de fábula que retrata a procura pela divindade cristã empreendida por uma jovem da África do Sul, após ser catequizada por uma missionária inglesa. Escrita em 1932, durante a visita de Shaw ao país, a narrativa é marcada pela sátira religiosa que caracterizou outros escritos do autor: durante sua jornada, a “garota negra” encontra diferentes versões de deuses, mas nenhum se sustenta diante de sua mente arguta e inquisidora, o que a leva a uma conclusão secular justificada pelo próprio movimento da busca, independente do que se encontra ao final da jornada. Como escreve Shaw no posfácio, não se trata de satirizar a ideia do divino, mas a forma estruturada e ordenada que ela assume nas instituições religiosas: “todas as verdades, antigas ou modernas, têm inspiração divina; mas sei por observação e introspecção que o instrumento sobre o qual a força inspiradora age pode ser bastante defeituoso, e pode até acabar […] transformando sua mensagem no mais ridículo absurdo”. Nota-se, ainda, o caráter feminista da protagonista, que avança sozinha pelo seu país natal e, diante de figuras brancas e masculinas, brande seu tacape para se fazer ouvir e prosseguir em sua busca espiritual.

Em seu romance de estreia, o paulista Gabriel Carneiro compõe uma interessante mistura de relato de viagem com  ficção científica para retratar uma Terra devastada em um universo de alienígenas e explorações espaciais. Para isso, o autor utiliza um recurso paratextual firmado desde o estabelecimento da forma romance — com, por exemplo, o Robson Crusoé, que incorpora um “prefácio do editor” a afirmar a veracidade do relato como parte integrante da narrativa ficcional — e assina o livro como tradutor de dois cadernos misteriosos, escritos em língua incógnita, encontrados em um mercado aberto no “quinto quadrante desta galáxia”. Os diários registram as impressões de um alienígena a desbravar a Terra após seu colapso, e ao longo das 134 entradas dos cadernos acompanhamos sua tentativa de reconstituir o que seria a vida naquele planeta a partir de edifícios em ruínas, objetos, registros artísticos, culturais e fotografias. Assim, subjaz ao plano narrativo uma reflexão sobre a memória, sua materialização nos documentos e monumentos de uma sociedade e o papel da alteridade diante de um universo que comporta mais formas de vida do que podemos supor.

Cada vez mais aparecem traduções e edições de autoras latino-americanas contemporâneas no Brasil, muitas integrando o que se tem chamado de “novo gótico da América Latina”. Nessa linha, poderíamos ler os doze contos de Pra te comer melhor, que explora diferentes modelos narrativos — a distopia, o fantástico, o científico, o terror — para falar de nossa região e suas contradições históricas. Com indígenas cyberpunks em terras arrasadas, mendigos visionários à la Flautista de Hamelin, civilizações secretas encravadas na floresta, os contos nos levam por diferentes imaginários, mas lhes subjaz a constante “paupéria” de uma Bolívia, e América Latina, eivada pela desigualdade social e pela exploração do “primeiro mundo”, a ponto do protagonista de uma das histórias, diante de uma futurista autocracia latina, afirmar que “os quinhentos anos valeram a pena”. Aliada à clara crítica sociopolítica, temos também protagonistas que se debatem, em meio ao caos social, para firmar sua subjetividade e alguma possibilidade de vida: “quanto custa recolher todas essas lascas e colá-las com saliva, compor um esqueleto amoroso para sustentar isso que chamamos de vida”, lemos no conto “Os dois nomes de Saulo”.


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