A escrita do limítrofe

A escrita do limítrofe

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“Eu, a Argentina.” É assim que Sylvia Molloy, escritora e crítica nascida em Buenos Aires, define a si mesma no primeiro ensaio da coletânea Figurações. Molloy deixou o país sul-americano duas vezes. Na década de 1950, ainda jovem, a autora vai a Paris para obter o título de doutora em Literatura Comparada na Sorbonne. Anos mais tarde, ela se mudaria para os Estados Unidos, onde permaneceu até a sua morte, em julho de 2022. Dois livros de Molly chegam às estantes brasileiras. Além de Figurações: ensaios críticos, a Editora 34 publica também Desarticulações (seguido de Vária imaginação), oferecendo aos leitores uma amostra da ficção de uma das mais originais pensadoras da literatura sul-americana.

Nascida na Geórgia, a estadunidense Carson McCullers (1917-1967) escreve que o Sul é uma experiência emocional dentro de sua literatura. Essa afirmação orienta também a obra de Molloy. A Argentina está profundamente enraizada, de maneira afetiva, nos escritos de Sylvia. Um dos eventos mais traumáticos do século 21, o 11 de setembro, irrompe o insólito na vida de Molloy. Já radicada em Nova York há muitos anos, ela recorre ao familiar: as cenas da infância provinciana em Buenos Aires.

O regresso emocional, descrito por Molloy no ensaio de abertura de Figurações, está presente nos escritos da autora em Vária imaginação. Na ficção, Sylvia Molloy expande o projeto. Ela reconstitui, em pequenos fragmentos, lapsos da vida em Buenos Aires. O gesto de escrita é um modo de regresso. Ou, como coloca: “De regressar, esclareço, para possivelmente voltar a ir embora”.

A literatura de Sylvia Molloy é uma experiência do limítrofe. Vários pares permeiam a obra da autora, um dos grandes nomes das letras argentinas: o aqui e o lá, o nativo e o estrangeiro, o familiar e o insólito. Entretanto, uma aparente antinomia se destaca – a ficção e a realidade. Molloy assume as raízes autobiográficas de sua escrita. Esse aspecto é evidenciado em Desarticulações e Vária imaginação.

A memória, elemento caro à literatura de Sylvia, é a matéria artística de Desarticulações. Na ficção, resta ao leitor colher os rastros deixados pela narradora. Ela assiste ao apagar das lembranças de M.L., personagem e força-motriz da narrativa, acometida pela perda degenerativa da memória. Em tom elegíaco, a escritora acompanha o desintegrar das vivências compartilhadas pelas duas. M.L. é, como percebemos, no decorrer da narrativa, um antigo amor de S., a própria Sylvia Molloy. Vale notar que a argentina foi uma das primeiras escritoras a abordar desejos e relacionamentos lésbicos em suas obras.

Desarticulações surge a partir de uma inquietação. Molloy é impelida a entender o “estar/não estar de uma pessoa que se desarticula”. Em meio às ruínas da relação com M.L., a narradora procura pelos vestígios de quem a outra foi um dia. Essas marcas se escondem, por exemplo, no exercício de transpor o espanhol para o inglês: “Por um instante, nessa tradução, M.L. é”. Em outro momento, quando a mulher esquece o próprio nome e responde que se chama Petra, a ironia de nomear-se como algo sólido e insensível não passa impune por S.

Embora M.L. seja fixada como o elemento central da narrativa, o ímpeto da narradora merece atenção especial. Ela também escreve, pois, com o apagar da memória da antiga amante, todo o inventário de lembranças que as une – uma parte de sua história a que apenas M.L. tem acesso – está ausente. Isso coloca um importante elemento para a escrita autobiográfica de Molloy: não há a necessidade de um compromisso com a verdade, ou seja, a realidade concreta dos fatos.

Desarticulações é, como a Argentina de Sylvia, uma experiência emocional. Aqui, a autora não visita um país, mas a ilha de uma relação humana. Em paralelo à rotina de visitas a M.L., em que cada passo é marcado pela doença, a narradora se confronta com as próprias memórias, o catálogo de uma relação terminada por ela no passado.

A ficção de Molloy, essencialmente fragmentária, traduz esteticamente os lapsos da memória, elemento no tour de force de Desarticulações. Assim como as transições de Sylvia, a escritora e crítica argentina que viveu nos Estados Unidos, as barreiras entre formas literárias são esfumaçadas. Desarticulações e Vária imaginação, frutos da costura de retalhos, podem ser lidos tanto como contos, quanto como novelas ou breves romances.

Vária imaginação é um mosaico. Molloy sabe escutar a voz da memória. A partir dela, a autora reúne relatos autobiográficos, que escreveu de modo contínuo. Sylvia nos apresenta as suas experiências emocionais, calcadas no passado argentino. Dois tempos falam, simultaneamente, na ficção: o momento de vivência e o momento de escrita. Ganha o leitor, que tem um vislumbre dos anos de formação de Sylvia Molloy.

Em seus ensaios e em suas obras ficcionais, a escritora argentina conquista a mesma realização da vencedora do prêmio Nobel de literatura em 2022, a francesa Annie Ernaux. No caso das duas autoras, as escritas de si, por meio do material autobiográfico, alcançam um espaço de alteridade, capaz de despertar o fascínio do leitor sem recair em um interesse puramente sociológico. Para Molloy, o que está em jogo são as articulações e a transformação, poder máximo da literatura. A realidade da ficção e a realidade da vida são escorregadias, acredita Sylvia Molloy.

Sylvia desvia da cisão entre a romancista e a crítica, espectro que ronda aqueles que se arriscam nas duas atividades. Para ela, não há uma separação fundamental; são duas modulações de sua escrita. A produção crítica de Molloy é incontornável. Professora de um panteão universitário como Yale, Princeton e NYU, as suas contribuições ultrapassam a esfera acadêmica. Ela escreve com desenvoltura sobre nomes que vão de Sarmiento a Victoria Ocampo e Alejandra Pizarnik, de quem foi amiga pessoal. Jorge Luis Borges é o destaque de Figurações. Os ensaios sobre o mestre argentino mostram o valor inestimável da crítica de Molloy.

A publicação de ficções e ensaios selecionados de Sylvia Molloy mostra a versatilidade de uma autora que ousou pensar a literatura por outras vias, distantes daquelas consagradas por uma crítica conservadora. Ela não teme se colocar no texto, além de apresentar a preocupação com a forma, essencial a todo fazer literário. A tradução, conceito-chave para a Molloy teórica, é evidenciada em sua obra ficcional por meio da tradução estética do conteúdo. Como se não bastasse, ela foi uma vanguardista no retrato do desejo lésbico e de sexualidades não dissidentes. A trajetória literária de Sylvia Molloy, parcialmente disponível aos leitores brasileiros, acentua a transgressão de uma das grandes vozes da literatura argentina.

Giovana Proença é pesquisadora na área de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).


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