Estante Cult | Estranha mundanidade

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O escritor Santiago Nazarian (Foto: Divulgação)

 

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Um adolescente de 16 anos assassina o presidente de extrema direita brasileiro com um tiro na cabeça. A partir desse mote, o escritor paulista Santiago Nazarian desenvolve seu novo livro, Veado assassino, que também tange, pela ironia, questões sobre o identitarismo contemporâneo e as continuações da retórica fascista em todo brasileiro que viveu os anos Bolsonaro. Como afirma o autor em entrevista à Cult, trata-se, mesmo após a derrota eleitoral do bolsonarismo, de rever nossas próprias verdades, como “aquela retórica fascista, armamentista e violenta ficou em nós mesmos”. “O presidente está morto, passou, mas o que ficou disso? O que da figura dele, da retórica dele permanece em toda a nação, até em quem o condena e o executa?”, questiona.

Marcado pela prosa coloquial, o romance é constituído inteiramente por um diálogo entre Renato, o gamer não binário que comete o assassínio por despeito aos conservadores e aos colegas que o molestam na escola, e seu interlocutor misterioso – que o questiona acerca de seu ato e sua história –, cuja identidade (médico psiquiatra? policial? carcereiro? investigador?) é revelada nas últimas páginas do livro. Como pondera Nazarian, a personagem é inspirada em sua própria trajetória, em um processo literário que se vale da autoironia para abrir a literatura aos paradoxos e às desagregações do sujeito no capitalismo tardio.

Veado assassino é o 13º livro do autor, que, pelo terror e pelo suspense, enforma um “existencialismo bizarro”, como ele classifica sua obra. Com figuras estereotipadas que não deixam escapar a imediata realidade brasileira, a obra é o registro de uma época que, a partir do “desejo incubado em muita gente” de assassinar Bolsonaro, lança o debate a questões candentes em qualquer leitor atento às contrações e contradições do contemporâneo. Leia a entrevista na íntegra abaixo:

Como se deu sua pesquisa e aproximação com o universo adolescente, presente em Veado assassino desde o léxico de seus personagens até os debates que percorre?
Alguns debates são atemporais, né? Questionamentos dessa fase da vida… Essa parte tem muito da minha própria juventude, as coisas que eu pensava como adolescente me descobrindo gay, os inconformismos… O olhar mais atualizado se deu de forma bem orgânica, na verdade (se é que se pode chamar as conversas em aplicativos gays de “orgânicas”). Mas quando eu escrevi o livro, estava num relacionamento já de mais de um ano com um menino não binário de 23 anos, que foi se descobrindo uma mulher trans. Então o personagem tem muito dele e muito dela. Ainda assim, o léxico foi muito trabalhado: começou com o que eu sabia, com meu lado gamer, principalmente, mas passou por pesquisas de jargões gamers (ou gaymers) e uma revisão do “sotaque” catarinense do protagonista por um amigo local, porque eu também já morei em Florianópolis, mas precisava de uma revisão de alguém de lá. 

Como você vê o tratamento de assuntos polêmicos e urgentes, como as ondas políticas conservadoras, movimentos incel, school shooting etc., na literatura e nas artes?
A literatura não tem que tratar de assuntos urgentes. Já ouvi o [escritor gaúcho] Samir Machado de Machado falar isso e concordo. O tempo que leva para um livro ser escrito, ser publicado, não favorece o tratamento de temas do momento. Ainda assim, esse era meu décimo terceiro livro, meu anterior tratava do Genocídio armênio, eu queria tentar algo mais… imediato, talvez. Por isso essa urgência na prosa oral, na escrita breve. Foi uma experiência e eu insisti na editora para que o livro saísse o mais rápido possível. Vendo agora, publicado, acho uma possibilidade de literatura. Arriscada, talvez. Mas era a hora de eu correr esse risco. Uma editora chegou a falar comigo que temia que o livro pudesse ficar datado, mas acho que é essa a intenção, um registro de época. Espero que faça sentido daqui a vários anos, mas, se não fizer, foi uma experiência dentro da minha obra. 

Ainda nesse sentido, por que escolheu o mote do assassinato do presidente para debater as tensões das identidades contemporâneas?
O assassinato do presidente de extrema direita era um desejo incubado em muita gente, né? E o livro nasceu disso. Mas, ao desenvolver o livro, outras questões foram aparecendo. O presidente está morto, passou, mas o que ficou disso? O que da figura dele, da retórica dele permanece em toda a nação, até em quem o condena e o executa?

Ao mesmo tempo em que o livro aborda as tensões de um país cindido politicamente, há conflitos e paradoxos na própria constituição identitária de seu personagem principal, Renato. Como você percebe esse duplo movimento, do coletivo ao individual?
Num país tão cindido, ninguém consegue estar inteiramente só de um lado, né? E acho que o livro é um espaço em que espaço para contemplar esses paradoxos. O livro não deve ser panfletário, pelo menos não neste momento, em que a batalha está ganha. Este livro foi escrito no ano passado, mas já pensado para este momento, de outro governo, de autoexame, autoanálise, de revermos nossas próprias verdades e do que aquela retórica fascista, armamentista e violenta ficou em nós mesmos.

Há, de alguma maneira, um tom provocativo em relação às “derivas identitárias” contemporâneas?
Há total. Primeiro porque eu fui muito isso, esse jovem andrógino, em busca de minha própria identidade. Então me sinto confortável em ironizar e provocar, quase como uma autoironia. Depois, porque o livro vai ser lido por esse público, né? Um romance com o tema e o título de Veado assassino vai ser lido por quem se interessa por esses temas, as questões identitárias, sexuais e de gênero; então eu queria acrescentar algo, uma provocação, mais do que ficar celebrando e pregando aos convertidos. É uma discussão que só interessa a nós, quem condena essas questões nem vai chegar ao livro. É uma discussão entre amigos… espero. 

Ao final do livro, há uma espécie de peripécia quando o interlocutor começa a falar sobre sua origem e a condição médica de Renato. Além dessa reviravolta, também parece haver uma mudança de tom, da sátira política para um registro beirando ao fantástico. Como você percebe isso?
Sem incorrer em muitos spoilers, isso é o puro suco do existencialismo bizarro, como eu etiqueto a minha obra. Flerta com o fantástico, mas é para ir além da questão política concreta, para entrar num terreno existencialista maior. 

Os filmes de terror são mencionados com frequência no livro, sendo um gênero narrativo que caracteriza outras de suas obras. Como você vê o panorama do terror/suspense na literatura brasileira contemporânea?
Acho uma merda. Alguns anos atrás ainda surgiu uma nova onda, o pós-terror, gente bacana como a Ana Paula Maia, o Xerxenesky (que hoje é meu editor), o Oscar Nestarez e o Cristhiano Aguiar. Mas acabaram sendo livros isolados, a produção como um todo continua sendo muito ruim, ou os bons que estão produzindo não conseguem destaque, não chegam ao grande público… E nem a mim, que trabalho com isso. Eu já escrevi uma matéria sobre isso na Folha, discorrendo por que o fantástico de modo geral não emplaca no Brasil. O pessoal do gênero me xingou horrores, como se eu estivesse torcendo contra. Mas era só uma constatação. Que infelizmente se mostra mais verdadeira do que nunca. Desculpe, como entusiasta de terror as pessoas esperam que eu fale que o terror no Brasil é uma maravilha. Mas isso não é verdade.


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