Cotidiano

Cotidiano
(Ilustração: @fsaraiva)

Ele estava deitado no sofá. Bermudão e torso nu. As notícias do jornal lhe entretinham, boa companhia mesmo era o livro deixado displicentemente na mesinha ao lado. Qual o título? Devia ser algum daqueles clássicos que ele tanto gostava de ler e reler. Teria de esperar um pouco a vontade voltar. Espreguiçou-se, lânguido. Os pés descalços aproveitavam a brisa que entrava pela janela aberta.

Ela também entrou, mas pela porta. Deixou as chaves no aparador da entrada. Nego, eu estava pensando… Ele baixou o jornal e olhou para ela. Eu estava… Ele sorri com aquele canto de boca que ela sempre amou. Você está tão linda aí, com essa roupinha de verão. Bobo, eu ia dizer alguma coisa séria. Eu estou falando sério: você está linda. Risos. Dos dois lados, como se fosse um espelho a refletir simultaneamente seus dentes imperfeitos a brincar. Era sempre assim, o sorriso dele encontrava nela seu abrigo. E ela, bem, ela sempre sorria quando ele sorria.

Eu ia dizer que lembrei hoje de quando nos conhecemos, você se lembra? Mas claro, como eu poderia esquecer. Sua aula de alguma coisa que nem me lembro mais. Eu fiz uma florzinha de papel verde pra você. Você me sorriu lá do fundo da sala. Eu lembro, fiquei vermelho quando percebi que você olhava pra mim. Mais alguém notou? Havia mais alguém ali? Risos. Eu só lembro de você, tentando parecer séria, toda empenhada em dar atenção aos seus alunos. Eu me sentia um intruso, estava no seu ambiente, roubando você deles, do lugar, de tudo. Você já era minha, sem eu nem saber disso. Eu já era sua?! Quanta pretensão. Eu lhe disse que sou pretensioso. É, você sempre falou. E você não acreditava. Acreditava sim, mas é que… É que você era muito gentil e não se encaixava no perfil de homem pretensioso. Eu sei. Tive de redefini-lo. Eu? Não, o conceito. Risos. Você é tão diferente. Eu sei. Como você sabia que eu seria sua? Seria não, você já era minha. Mas como? Pretensiosamente, me disse que você já era minha. Risos. Você não existe. Existo sim, olha eu aqui. Risos.

Ela se senta no sofá, lhe afaga o cabelo. Ele se ergue e a beija, sem pressa, sem receios… Ela já era sua desde o dia em que a viu pela primeira vez.

por Gil Rugai


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