Privado: Coronelismo intelectual

Privado: Coronelismo intelectual
(Imagem: reprodução)

por Marcia Tiburi

Podemos chamar de “coronelismo intelectual” a prática autoritária no campo do conhecimento. Este campo é extenso, começa na pesquisa científica universitária e se estende pela sociedade como um todo, dos meios de comunicação ao básico botequim onde ideias entram em jogo.

Coronelismo intelectual é a postura da repetição à exaustão de ideias alheias. A reflexão só atrapalharia, por isso é evitada.

Encarnação de prepotente eloquência, o paradoxo do coronelismo é alimentar uma ordem coletiva de silêncio em que o debate inexiste, o culto da verdade pronta ou da ignorância é a regra, bem como a apologia ao gesto de falar sem ter nada a dizer, que culmina no discurso tão vazio quando maldoso da fofoca, versão popular do eruditismo.

Não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos parafraseando qualquer filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo exegético.

Enquanto todos falam sem nada dizer, ajudados pelo jornalista que repete o que se entende pela sacrossantificada “informação”, mercadoria da contra-reflexão atual, os coronéis podem comentar que os outros é que não sabem nada e praticar o “discurso verdadeiro” em seus artigos estilo “mais do mesmo”, moedinha cadavérica com que se enche o cofrinho das plataformas de medição de produtividade acadêmica em nossos dias.

O coronelismo intelectual infelizmente segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas, tanto quanto na dos ignorantes que se separam apenas por titulação ou falta dela. Professores e estudantes, sábios e leigos, todos se servem metodologicamente dos frutos dessa árvore apodrecida. A prática do pensamento livre que se autocritica e busca, consciente de sua inconsciência, seu próprio processo de autocriação talvez seja a contraverdade capaz de cortá-la pela raiz.

Intelectual serviçal
Eis a cultura do lacaio intelectual, do bom serviçal sempre pronto à reprodução do mesmo. Nela, a boa ovelha especialista em assinar embaixo as verdades do senhor feudal que um dia as emitiu num ritual de sacralização já não é fácil de distinguir do lobo. A semelhança entre o puxa-saco, o crente e o líder paranoico que o conduz revela a verdade do mimetismo. Os seguidores dos líderes, de rabinho entre as pernas, latem para mostrar que aprenderam bem o refrão.  Abanam as asas ao redor da lâmpada esperando que ela também fique onde está, do contrário não saberiam o que fazer.

As consequências do coronelismo em um país de antipolítica e anti-educação generalizadas como este é algo ainda mais grave do que o medo de pensar. É o fato de que já não se pensa mais. A ausência de debate não é medo de expor ideias, mas a falta delas. Inação é o corolário da impossibilidade de mudar, porque o campo das ideias onde surge a vida já foi minado. O coronel ri sozinho da impossibilidade de mudanças, pois ele ama a monocultura enquanto odeia o cultivo de ideias diferentes ou de ideias alheias. O autoritarismo intelectual não é feito apenas de ódio ao outro, mas da inveja de que haja exuberância criativa em outro território, em outra experiência de linguagem. Conservadorismo é seu nome do meio.

Coronelismo não é simplesmente a zona cinzenta onde não podemos mais distinguir o ignorante do culto, mas a política generalizada introjetada por todos – salvo exceções – pela letal dessubjetivação acadêmica da qual somos vítimas enquanto algozes e que, no campo do senso comum, surge como robotização e plastificação das pessoas entregues como zumbis aos mecanismos do nonsense geral, que, é preciso cuidar, deve ser aparentemente desejável pela liberdade de cada um.

Contra a escravidão intelectual somente um contradesejo pode gerar emancipação. A prática da invenção teórica, a liberdade da interpretação e de expressão nos obrigam a ir contra os ordenamentos da ditadura micrológica do cotidiano, em que a lei magna reza o “proibido pensar”. A direção, como se pode ver, parece que só se encontra, atualmente, no desvio dos caminhos dados.

(18) Comentários

  1. Achei seu texto acima coronelista e conservador. Mais que isso é moralista e melancólico, fatalista, senso comum. Mas respeito seu argumento. rs Ai de mim de ser coronelista-conservador que reproduz e inveja (não é isso?)! rs

  2. Muitas vezes é da universidade que esperamos o debate teórico, mas quando lá estamos o que ouvimos é: sempre utiize os mesmos teóricos os quais já estamos acostumados, é melhor assim, é certo que a margem de erro cai a quase zero, mas o debate e a possibilidade de novas ideias também. Se a universidade não é o lugar para o debate, devemos caminhar para a sociedade, mas lá tão pouco há interesse nisso tudo. Resta por vezes, falar sozinho, mas mesmo assim, o debate morre logo e as novas ideias ficam restritas.

  3. Será que os coronéis do academicismo e dos bultecos e bistrôs suburbanos delegaram poder de ‘representação’ ao cidadão Marcondes Bondes? Pota que me pario! Essa é uma das ‘coisas’ encantadoras na cultura social brasileira: o psitacismo requintado e requentado daqueles que proferem lorotagens com ar de superioridade intelectual… Tomara que a Márcia desleia o comentário psicopatizado do moço e siga com suas (dela) análises críticas das realidades brasileiuras, como sempre, sem ‘realismos’…

  4. Eu acho difícil meia dúzia da sociedade ter a mesma opinião do texto, portanto, pode ser chamado de qualquer coisa menos de piegas. Existe sim uma ditadura intelectual em que se reproduz opiniões prontas. As pessoas são incapazes de uma reflexão mínina sobre qualquer assunto, não apenas academicos ou de teor filosófico, sociológico que seja, mas qualuqer coisa.E só pontuando, melancolia é característica da colunista.

  5. É comum no Brasil a crítica tornar-se sinônimo de briga. Marcia Tiburi está cheia de razão; a impressão que se tem – no meio intelectual brasileiro – é de um profundo desconhecimento da filosofia e respectivas críticas de kantianas.
    Kant muito bem fundamentou: crítica é reflexão que nos leva a ampliar o conhecimento; jamais confundir com “briga de mesa de bar”!

    abs do
    Sílvio Medeiros

  6. A coluna suscita um importante debate. No entanto, se é verdade que é preciso tratar heterodoxamente a questão das referências, indago se corpo discente universitário brasileiro (desde à graduação até o doutorado) está realmente preparado para tratar o tema no nível que merece ser tratado. É sério e muito difícil o trabalho de revisão bibliográfica. O que se percebe, para além de uma disputa acerca do domínio dos cânons científicos, é realmente uma pura disputa de poder (perfeitamente saudável, se a ciência não for escudo e instrumento da guerra). O passo seguinte à denúncia veiculada no texto é a pergunta: estamos preparados para assumir o controle? É preciso pensar nisso e em como se fará isso…

  7. Eu senti o coronelismo intelectual na pele (e nos nervos) quando fazia meu mestrado.

  8. Os padrões de idéias criados e mantidos pelo grupo social são legítimos como representação do desenvolvimento do caldo cultural (leia-se estágio intelectual), no qual o referido grupo se encontra mergulhado, em um exato momento. Contudo, o processo de formação e reformulação destes padrões deve ser dinâmico e é aí onde o coronelismo intelectual atua, impedindo a ampliação da capacidade pensante do grupo, estagnando-o, deformando-o e, até mesmo, desfigurando-o pelo sufocar de novas mentes pensantes. Concordo, plenamente, que, inconsciente ou conscientemente somos repetidores de idéias alheias e que o conservadorismo nada mais é do que um freio na capacidade de reflexão, amputando, assim, as ferramentas básicas da criação de novas idéias. Mas, com a liberdade de pensar, vem a realidade da responsabilidade pelas prática das próprias reflexões e, neste ponto, mora um dos maiores freios ao desenvolvimento humano, pior até do que o coronelismo intelectual: o medo das consequências de seus próprios atos.

  9. Márcia,não conheço patavinas de filosofia, não sei sequer uma frase de nenhum filósofo,porém, permita-me opinar. Meu background cultural é ou foi,sei lá,aquele que o brasileiro é encaixado no “padrãozinho”:gente boa,gosta de futebol e samba…para ser dominado..Daí,percebo que o q existe é no mais sempre o mesmo,dominação em uma política do mais forte pode mais. Acredito que em qq área seja assim, trabalho com TI, mesma coisa, em nome de Sox, Itil, etc, não deixam fazer nada de novo…fazer o q? preciso do salário pra pagar minhas contas e tomar uma cachaça (da boa,ok?Piracicabana,preferencialmente.rs)..para mudar isso é necessário que a roda deste novo ciclo inicie,creio q até começou e ainda, é do tamanho de uma rolimã, demanda tempo, tenho 40 anos e não vou ver no q vai dar..mas, com esta educação de merda do brasil…hummm…sei não se o meu bisneto verá esta mudança…abs…

  10. Para você Márcia, é que não faz diferença estar numa mesa de bar ou numa mesa-redonda dos acadêmicos,pois em vez de se aprofundar em uma questão, você só distorce o assunto de tal maneira que acredito até estar embriagada quando se expressa. As suas ideias sim é que podem ser tomadas como filosofia de butiquim de esquina.

  11. Li na introdução ao livro do Bakhtin escrita pelo Tchekov que a ausência de pontos de vista pessoais e a citação de outros pensadores ao invés de pensamentos próprios revela a falta de absolutismo no pensamento de quem fala, me soou positivo isso, é diferente do que pensa o autor desse texto, que me pareceu mais dogmático que o antidogmatismo que prega..blá, blá, blá

  12. …quando eu disse Tchecov, leia Todorov…ele me fez entender, também, que o mundo está para ser criado/recriado, que não existe enquanto ideia, sua materialidade depende da fé que possuímos na sua existência, portanto, não me parece possível simplesmente apagar a história constituinte dessa fé e colocar, automaticamente, em seu lugar uma nova ideologia surgida a partir do nada…blá, blá, blá…

  13. O problema da academia me parece muito mais profundo que isso. Qual seria a alternativa ao modelo atual? O texto critica, critica, mas não oferece nenhuma indicação de como o problema pode ser resolvido. O que o autor oferece é simplesmente uma série de acusações exaltadas contra a classe intelectual, que me soa muito como uma atitude típica do tipo “revolucionário de esquerda”. A última vez que se quis derivar da filosofia e das ciências humanas diretrizes para a vida foi na Alemanha no início do século XX. A opinião geral é de que o resultado foi desastroso. Leia entrevista do Heidegger pra revista Der Spiegel publicada na década de 60, veja o pessimismo com que ele percebe a capacidade da filosofia de oferecer respostas para quaisquer problemas concretos do presente. Na segunda metade do séc. XIX a liderança politica e “espiritual” que a classe intelectual havia exercido desde o Renascimento entrou em declínio. O mundo estava mudando, o advento da sociedade de massa mudava completamente as regras do jogo. O prestígio da filosofia e das “humanidades” decaiu até o ponto em que qualquer educação de caráter prático passou a ter valor muito maior, e depois disso continuou decaindo. Se hoje em dia as coisas se encontram no estado que estão, não é por causa de um “coronelismo intelectual”. É mera consequência de um longo declínio. Mas esses esquerdistas afetados precisam de um “bode expiatório”, e qualquer um desses -ismos é sempre uma boa escolha, facismo, nazismo, autoritarismo, coronelismo… No fim das contas o que o autor faz é reproduzir um discurso anti-acadêmico que é tão “robotizado” e “plastificado” quanto os discursos acadêmicos que critica ou mais. Além disso a linguagem que ele utiliza me lembra muito um certo tipo de discurso acadêmico no qual o autor fala, fala e não diz p%$# nenhuma, fica derrapando no mesmo lugar.

  14. Anti Cristo, deixo aqui o que realmente é Filosofia. = “Aqui se fala de tudo, mas não se chega a conclusão alguma. Nós ‘idolatramos a dúvida’.” – Ufonsil.

  15. REalmente isso acontece, esse coronelismo intelectual, capaz de deixar qualquer um doente. Quer coronelizar, coronelize, mas com mais simpatia. Afinal, o que se percebe é um asselvajamento de pessoas praticando a escrita.

  16. Isso acontece muito no meu país, Moçambique. Até chegou-se ao ponto de prender os que reflectem e dizem a verdade. Acho que, não falta muito para voltarmos ao tempo da Inquisição.

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