Com Ruth Escobar em campo, não tem placar em branco

Com Ruth Escobar em campo, não tem placar em branco
(Foto: Acervo Gazeta Esportiva)

 

Durante muitos anos, em plena segunda metade do século 20, futebol era coisa para homem.

Exatamente assim como você leu: o futebol jogado por mulheres era prática proibida no país.

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, dizia o decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941, sob a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Pasme, mas a proibição veio a ser revogada apenas em 1983, o que explica, e muito, a defasagem existente entre o futebol masculino e o feminino brasileiros, diferentemente do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde as mulheres são muito mais bem-sucedidas que os homens, tetracampeãs mundiais e olímpicas.

Em 1982, como parte do Festival de Mulheres nas Artes, Ruth Escobar organizou a transgressora partida de futebol feminina, disputada no estádio do Morumbi.

Segundo o relato de Rose do Rio, uma das jogadoras – e também organizadora –, o tempo quase esquentou: “Foram 68 mil pessoas para ver o futebol feminino. Não foram para ver o São Paulo em campo. São Paulo e Corinthians. E o Sócrates, o pessoal do São Paulo, do Corinthians, deram pra gente todo o apoio. Aí estávamos lá embaixo no vestiário. Todo mundo de uniforme, e chegou um telegrama [dizendo] que não poderiam entrar as seleções de futebol feminino do Rio e de São Paulo. Que era proibido por isso, isso e aquilo. Aí a Ruth foi lá saber o que estava acontecendo. Sócrates e Oscar, o capitão do São Paulo, também. E Sócrates falou assim: o público está aqui para ver o futebol feminino; não está para ver Corinthians e São Paulo, não; então se elas não entrarem, nós também não vamos entrar. A Ruth também falou: se elas não entrarem, vão entrar as 5 mil mulheres que estão aí fora, vão ficar dentro de campo e ninguém vai jogar”. Jogaram.

Acharam uma solução intermediária para diminuir o tempo regulamentar de 90 minutos de jogo, estabeleceram que seriam dois tempos de 20 minutos, escolheram um trio de arbitragem não oficial e a bola rolou desafiadoramente diante dos que tentaram impedir a peleja, a chamada vanguarda do atraso.

O jogo virou marco para a legalização do futebol feminino, tamanha a mobilização causada e a adesão da sociedade que, até então, ignorava, ou não dava a devida atenção, ao absurdo da proibição.

Verdade que a primeira autorização CND ainda era repleta de cuidados desnecessários, reveladores da desconfiança sobre a capacidade feminina de se ombrear à prática masculina.

O tempo dos jogos foi diminuído de 90 para 70 minutos, com permissão para que o intervalo fosse de 20 minutos, e não de 15 como entre os homens.

A bola precisava ter diâmetro entre 62 e 66 centímetros, quando a do futebol masculino ficava entre 68 e 70 centímetros.

O peso também era diferente, no máximo de 390 gramas, diferentemente da bola usada pelos homens, de 410 a 450 gramas.

As jogadoras deveriam usar chuteiras com travas metálicas ou pontiagudas – note que os termos estão todos no passado, porque não vigoram mais.

Finalmente, a mais ridícula das imposições: as jogadoras não podiam trocar de camisas com as adversárias após uma partida, obviamente porque Ruth Escobar havia trocado de camisa com uma das jogadoras da seleção paulista no Morumbi.

Todas as barreiras foram devidamente derrubadas e, hoje em dia, o futebol feminino nacional cresce a olhos vistos com jogos de excelente qualidade técnica.

Só falta acabar de conquistar as torcidas, uma questão de tempo, porque tanto na Europa quanto na América do Norte são comuns os jogos para quase 100 mil pessoas.

 

Juca Kfouri é jornalista, autor de Confesso que perdi. É formado em Ciências Sociais pela USP.


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