Cinesia alada e a asfixia de Eros

Cinesia alada e a asfixia de Eros
Foto de filme / divulgação

 

Seria disparatado aproximar a tradição helênica de Eros à angeologia judaico-cristã? Essa conexão, que preserva um quê de arbitrário, sustenta-se por alguns fios dispersos que se entrelaçam. Basta pensar na imagem do Cupido, popular desde a Antiguidade romana, para observar rapidamente sobreposições e distorções entre a figura grega de Eros e a iconografia mais difundida dos Anjos.

Cabe anunciar, antes de seguir na demonstração de um dos múltiplos elos entre Eros e Anjos – a presença das asas –, a que serviria expô-lo. A hipótese com a qual pretendo avançar é a de que os Anjos seriam uma versão domesticada de Eros. Compartimentados, por um lado, entre Anjos de luz, signos de segurança e proteção, e por outro, em Anjos caídos, expressão do mal e da infidelidade, as mensagens trazidas pelas palavras angelicais desprendem afetos tidos como bons daqueles considerados condenáveis. Com essa forma apartada dos afetos, sufocam-se o fulgor, a perturbação vertiginosa e o enlouquecimento terrível próprios ao Eros grego. Transfigurada em palavra de Deus, a linguagem levada e trazida pelos mensageiros angelicais está impregnada de uma moral que amortece o tremor erótico e o apresenta por meio de ideais normativos. Essa amputação da estranheza inerente ao campo desejante, iniciada pelo léxico judaico-cristão, se estende no curso do tempo, tornando-se especialmente conveniente para a era burguesa moderna.

Nos limites deste espaço, as asas serão o único elo aproximativo na análise das relações entre a iconografia angelológica e a erótica grega. Importante lembrar que, antes da cultura judaico-cristã, o universo grego trazia apenas três figuras aladas: a deusa Niké e os deuses Eros e Thánatos. Os Anjos de enredos judaico-cristãos carregam características dessas personagens gregas.

Niké personificava a vitória, a força e a velocidade, sendo evocada como propulsora de estratégias, especialmente nos Jogos Olímpicos. Nos estudos angelológicos de Lutero Semblano, os Anjos “surgem e desaparecem à vontade, movimentando-se com uma rapidez impressionante”.  O elemento veloz dos Anjos é destacado sobretudo em Ezequiel 1: 13,14: “O aspecto dos seres viventes era como carvão em brasa, à semelhança de tochas; o fogo corria resplandecente por entre os seres, e dele saíam relâmpagos, os seres viventes ziguezagueavam à semelhança de relâmpagos”.

Em relação a Eros e Thánatos, o desdobramento para a dupla formação imagética de Anjos de luz e Anjos caídos fica um pouco mais evidente. Eros é uma força vital que se manifesta pelo vigor amoroso, ao passo que Thánatos representa o lado mortífero e sombrio da existência. Entretanto, não há nenhuma conotação moral nessas duas representações divinas gregas, como passa a ocorrer na moral religiosa ocidental com os nomes amaldiçoados dos Anjos caídos, ligados aos afetos condenáveis: Satanás, Lúcifer, Bezaliel, Chazaciel entre outros.

Atreladas ao Eros grego, as asas revelam os suspiros do desejo. Além de promoverem o voo dos amantes, ao batê-las Eros penetra o interior de certos órgãos. O abrir e fechar das asas no ventre ou no coração, por exemplo, exala uma profusão de ar que se torna sinal inegável da força erótica desejante. Em diversas passagens de Eros, o doce-amargo, Anne Carson salienta a importância das asas nas manifestações de Eros: “Inescapável como o próprio ambiente, com suas asas Eros move o amor para dentro e para fora de todas as criaturas a seu bel-prazer”. As asas indicam “a vulnerabilidade total do indivíduo à influência erótica” e “o poder multissensual que elas têm de permear e assumir, a qualquer momento, o controle de qualquer pessoa apaixonada”. Tanto as asas como a respiração promovem o trânsito de Eros de maneira análoga ao movimento das palavras e marcam o tempo do kairós – um agora impetuoso e simultaneamente inescapável às marcas limitadas das circunstâncias históricas.

Em Fedro, famoso diálogo platônico que discute as características do amor, Sócrates não renuncia à força perturbadora de Eros. Ao contrário do subterfúgio usado pelo orador ateniense Lísias para atenuar os efeitos do erotismo, Sócrates preserva e adensa a potência avassaladora de seus impactos. Sua intenção não é a de congelar um agora hedonista à maneira das cigarras entregues à experiência do Gozo até a morte. Se Sócrates mantém o caráter inebriante do amor é porque este permite ao sujeito avançar em seu desejo e desdobrar a expansão da própria existência no tempo, rompendo limites do que até ali sabia sobre si mesmo.

Enquanto Lísias prefere antecipar desilusões ao projetar o presente no futuro – que supostamente conteria o derrisório apagamento da chama da paixão – e matar precipitadamente o instante arrebatador para evitar dores e problemas, Sócrates escolhe intensificar o poder de Eros em relação ao pensar e à palavra discursiva (logos). Ainda que admita a existência de perigos inerentes a Eros que precisarão ser atravessados, o filósofo ateniense insiste no crescimento espiritual a partir das asas que crescem pela vibração erótica e se abrem para alçar voo. Nas palavras de Anne Carson:

 

[…] existe uma diferença enorme entre as atitudes eróticas de Sócrates, de um lado, e o sentimento tradicional grego e de Lísias, de outro. É uma delícia ver Platão resumir toda essa diferença em uma única imagem. As asas, na poesia tradicional, são o mecanismo que Eros usa para se lançar sobre quem ama, que não suspeita de nada, e lutar pelo controle da sua pessoa e personalidade. As asas são um instrumento de dano e um símbolo do poder irresistível. Quando você se apaixona a mudança chega com asas, te atravessa e você não consegue resistir, perde o controle sobre aquela entidade que você aprecia tanto, o seu eu.

 

No fragmento 31 de seus poemas, Safo de Lesbos descreve a perda do eu a partir do termo eptoaisen, que significa “coloca o coração no meu peito em asas” ou “faz meu coração voar dentro de mim”. No universo helênico, Ícaro é o retrato de que as asas não simbolizam apenas a exaltação entusiasmante, mas também o risco da queda brusca e da destrutividade imprevisível. Talvez este seja um dos principais motivos pelos quais as religiões tenham armado mecanismos defensivos contra os voos de Eros, condenando-os moralmente como sinais de luxúria e convertendo-os em ternura angélica.

Na Bíblia, os Anjos nem sempre aparecem com asas. Esse repertório alado dos Anjos surgiu de maneira mais incisiva a partir de representações pictóricas. O Êxodo, porém, traz uma das imagens de Anjos alados. As asas aparecem claramente acopladas aos querubins que “as estenderão por cima, cobrindo o propiciatório”. Aqui elas sobrevoam o sagrado e não batem a todo vapor no interior de órgãos pulsantes. Como espíritos puros, os Anjos nem sempre são visíveis, ainda que possam eventualmente assumir a aparência humana. Sua aparição sob forma de corpo humano nas Escrituras ocorre apenas diante do olhar de homens, mulheres ou crianças. No Catecismo da Igreja Católica (§ 327), lemos: “Desde o princípio do tempo, Deus criou do nada ao mesmo tempo uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, os Anjos e o mundo terrestre. Depois criou a criatura humana, que participa das duas primeiras, formada, como é, de espírito e corpo”.

Em suas diferentes versões bíblicas, Anjos são mensageiros de Deus e guardiões ou protetores dos humanos. Entidades que se movem na espacialidade linguística entre o divino e o terrestre. Os Anjos estão providos de asas apenas como ferramenta de movimentação e livre acesso a Deus e aos humanos sobre a Terra. Destituídos de carne, essas figuras inocentes não são impactadas pelos limites e marcas intensivas do tempo.

Em Asas de desejo, de Wim Wenders, as asas assumem outra conotação. Após ter optado pela queda à condição humana, o Anjo Damiel declara seu anseio por ver crescerem em seu corpo outras asas. Quer asas que ele possa admirar – aquelas que imprimem e reúnem as escolhas temporalmente circunscritas à força inebriante de Eros. Quem as fará crescer é Marion, sua amada. Por ela, Damiel deixou seu estado imaculado e enclausurado na dimensão espiritual. Vislumbrando a potência vivaz de Eros sobre humanos apaixonados, Damiel deseja sentir a temporalidade erótica à flor da pele e no correr de seu sangue vermelho. Eros marca o tempo, marca cada segundo e concede vibrações rítmicas ao curso da história. É em razão dessa vivacidade do tempo que Damiel renuncia à totalidade espiritual. Quer a condição mortal para sentir o sabor de instante intenso da vida.

Sua amada Marion porta asas postiças sobre o trapézio do circo. Todavia, essas asas que compõem o traje de seu número circense são genuínas se comparadas às dos Anjos. Só elas assumem todo o risco de um voo. Só elas batem em nome do desejo. Seu voo livre e estratégico é capaz de desenhar perigosamente movimentos sobre o vazio. Colocando a vida em jogo, a trapezista rascunha pelos seus gestos no ar alguns traços de beleza. Damiel quer tornar-se cada vez mais suscetível à potência de seu encantamento por tal beleza, mas só no corpo frágil será capaz de alcançar essa posição maravilhada.

Pelas asas, Eros injeta frenesi na carne humana. Nenhum Anjo é capaz de vivê-lo ou de injetá-lo em outrem. Amputar as asas para apaziguar o caráter arrebatador do amor é uma marca da religião judaico-cristã assumida posteriormente nas formas do casamento burguês. Seja como for, a força de Eros nunca pode ser definitivamente sufocada. Segue incontornável enquanto humanos continuarem suas buscas pela experimentação de seus efeitos arrebatadores.

Alessandra Affortunati Martins é Psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de “Sublimação e Unheimliche” (Pearson, 2017), “A abstração e o sensível: três ensaios sobre o Moisés de Freud” (E-galáxia, 2020) e organizadora de “Freud e o patriarcado” (Hedra, 2020).


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