Arcas de Babel: Camila de Moura traduz Olga Orozco

Arcas de Babel: Camila de Moura traduz Olga Orozco
Camila de Moura: produção literária de Orozco apresenta uma rara consistência formal (Fotos: Arquivo pessoal/Divulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.

Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro…

Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta edição, a poeta, pesquisadora e tradutora Camila de Moura comemora o centenário da grande escritora argentina Olga Orozco com a tradução de alguns de seus poemas.

Moura nasceu em Brasília, em 1989. É graduada em Letras Português/Grego, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (USP) com uma pesquisa sobre as antigas biografias de poetas gregos. Integra a equipe editorial do periódico acadêmico Codex – Revista de estudos clássicos.

Publicou poemas, fotografias e traduções em diversas revistas e suplementos impressos e virtuais. Assina as traduções de Dark Deleuze, de Andrew Culp (GLAC Edições, 2020), e Contra a hidra capitalista, do Subcomandante Insurgente Galeano (n-1 Edições, no prelo). Leia abaixo a sua apresentação da obra de Olga Orozco.

 

***

 

Dois mil e vinte, o ano que não terminou, marcou o centenário de Olga Orozco (1920-1999), jornalista, astróloga, crítica de teatro e sobretudo poeta de voz inconfundível. “Com sol em peixes e ascendente em aquário, e um horóscopo de especialista em derrota e apaixonada trágica”, como ela própria se apresenta, nasceu na pequena cidade de Toay, na Argentina, em meio às pradarias infinitas que dão nome à província de La Pampa (pampa, do quéchua, “planície”, “espaço ilimitado”), paisagem tantas vezes evocada como imagem do eterno.

A poeta revisita a cidade da infância em “Anotações para uma autobiografia”, do livro Páginas de Olga Orozco, de 1984, dando a ver em que medida essas memórias atravessam sua vida e sua poesia: “Toay é um lugar de dunas andarilhas, de cardos errantes, de mendigas com colares de contas, de profetas peregrinos e casas que desatam suas amarras e se deixam levar, à deriva, pelo vento alucinado. No entardecer, qualquer pedra, qualquer pequeno osso assume nas planícies um relevo insensato. (…) Qualquer uma de minhas radiografias testemunha ainda hoje esses depósitos irremediáveis e profundos”.

Em 1928, sua família se muda para a cidade de Bahía Blanca, e em 1935, para Buenos Aires. Na capital, Orozco, inicia seus estudos universitários na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e entra em contato com poetas e escritores, entre os quais Enrique Molina, Juan Rodolfo Wilcock, Alberto Girri e Oliverio Girondo, figura que teria um papel central em sua vida. Era a chamada “geração de 40”, rótulo a que Orozco se refere com desconfiança numa entrevista de 1998 ao canal Encuentro:

“Eu pertencia à chamada ‘geração de 40’, com a qual não me sinto muito identificada nem sinto que tivesse características muito especiais. Éramos um grupo grande de jovens, dos quais eu era a única mulher. Vínhamos todos de influências muito diferentes, de literaturas muito distintas. Uns da literatura espanhola, outros da inglesa, outros da alemã, outros faziam uma poesia muito coloquial, outros inclusive tinham resquícios do ultraísmo, e alguns viemos do surrealismo”. Participou da fundação da revista Canto e publicou seu primeiro livro, De longe, em 1946, aos 26 anos de idade. Marcantes foram também nos anos seguintes as amizades com Julio Cortázar e Alejandra Pizarnik.

Trabalhou como crítica de teatro para a Rádio Municipal e como atriz de radioteatro na Rádio Splendid, mas logo enveredou para o jornalismo. Adotou diversos pseudônimos nos periódicos em que trabalhou, como Valeria Guzmán, para responder às cartas do correio sentimental da revista Claudia, Sergio Medina, para os artigos teatrais, Richard Reiner, para os artigos esotéricos, e, mais notadamente, Canopus, nome com que assinava o horóscopo do jornal Clarín, pelo qual foi responsável junto com María Julia Onetti entre 1968 e 1974.

Sua produção literária, que atravessa quase cinquenta anos e compreende dez livros de poemas e dois livros de prosa, apresenta uma rara consistência formal. Além da geografia acidentada, marcada por versos longuíssimos, distingue-se o teor metafísico e autorreferencial, a presença da astrologia e do misticismo (Olga aprendera a ler as cartas do tarô aos 14 anos, com a chapeleira de sua mãe), as experimentações com o eu poético, o encadeamento de perguntas e a fixação em certos elementos: os talismãs, as tapeçarias, o ruído dos talheres retinindo contra a louça, cortinas entreabertas, ossos e fósseis esquecidos.

Em entrevista a Soledad Constantini, a poeta disse certa vez: “Minha poesia se move por um afã de conhecimento, por vias que não são as da razão; escrevo por afã de saber, para poder olhar um pouco para o outro lado deste mundo.” Recusou diversas vezes um assento na Academia Argentina de Letras e recebeu, entre outros, o Prêmio Nacional de Poesia (1988), o Prêmio Gabriela Mistral (1988) e o Prêmio Juan Rulfo (1998).

Meu contato com a sua poesia teve início em 2010, ano em que deixei o Rio de Janeiro e me larguei com uma amiga rumo a Buenos Aires, cidade que não conhecíamos; uma viagem só de ida, a que nos lançamos como quem busca a terra prometida ou a vida verdadeira. Não demorei a dar com seus versos, entre a feira de livros usados do Parque Centenário e as prateleiras da Librería Losada, onde comecei a trabalhar como vendedora – curiosamente, o primeiro volume de poemas de Orozco havia sido publicado por essa mesma editora, 65 anos antes.

O encontro com sua obra teve, para mim, as cores de uma revelação. Li com avidez e fascínio seus versos pesados, fantasmagóricos, sanguíneos, prolixos (mas não menos precisos), que contrastavam em muito com a poesia que me chegava às mãos por essa época. Desde então, tenho traduzido esporadicamente poemas seus ao português, esforço de que apresento aqui uma amostra como homenagem ao seu centenário.

As traduções que selecionei percorrem um longo arco temporal. “Com esta boca, neste mundo” é também o título do último livro que publicou em vida, em 1994; “Entre cão e lobo” e “Para fazer um talismã” estão em Jogos perigosos, de 1962; e “Em tua imensa pupila”, em A noite à deriva, de 1984. – Camila de Moura

 

 

Com esta boca, neste mundo

 

 

Não te pronunciarei jamais, verbo sagrado,
ainda que pinte as gengivas da cor azul,
ainda que ponha debaixo da língua uma pepita de ouro,
ainda que derrame sobre meu coração um caldeirão de estrelas
e passe diante de meu rosto a corrente secreta dos grandes rios.

Talvez tenhas fugido para esse lado da noite da alma
a que não é possível chegar com nenhuma lâmpada,
e não há sombra que guie meu voo pelo umbral,
nem memória que venha de outro céu para encarnar nesta dura neve
onde apenas se inscreve o roçar do ramo e o queixume do vento.

E nem um só tremor que faça sobressaltar as mudas pedras.
Falamos demais do silêncio,
e o condecoramos como a um vigia no arco final,
como se nele habitasse o esplendor depois da queda,
o triunfo do vocábulo, com a língua cortada.

Ah, não se trata da canção, tampouco do soluço!
Já declamei o amado e o perdido,
travei com cada sílaba os bens e os males que mais temi perder.
Ao longo do corredor soa, ressoa a tenaz melodia,
retumbam, propagam-se como o trovão
umas poucas moedas caídas de visões ou arrebatadas à escuridão.
Nosso longo combate foi também um combate de morte com a morte, poesia.

Ganhamos, perdemos,
pois como nomear com esta boca,
como nomear neste mundo só com esta boca neste mundo só com esta boca?

 

Entre cão e lobo

 

 

Me enclausuram em mim.
Me dividem em dois.
Me engendram a cada dia na paciência
e num negro organismo que ruge como o mar.
Me recortam depois com as tesouras do pesadelo
e caio neste mundo com metade do sangue para cada lado:
uma cara lavrada desde o fundo pelos caninos da fúria a sós,
e outra que se dissolve em meio à névoa das grandes manadas.

Não consigo saber quem é o amo aqui.
Sob a pele me transformo de cão em lobo.
Eu decreto a peste e atravesso com meus flancos em chamas
as planícies do porvir e do passado;
eu me estiro roendo os ossinhos de tantos sonhos
mortos sobre celestes prados.
Meu reino está em minha sombra e vai comigo aonde quer que eu vá,
ou desmorona em ruínas com as portas abertas à invasão do inimigo.

Cada noite arranco a dentadas todo laço atado ao coração,
E cada amanhecer me encontra com minha jaula de obediência no lombo.
Se devoro meu deus, uso seu rosto debaixo de minha máscara,
e no entanto só bebo na cisterna dos homens
um aveludado veneno de piedade que rasga nas entranhas.
Lavrei o torneio nas duas tramas da tapeçaria:
ganhei o meu cetro de besta na intempérie,
e outorguei também nacos de mansidão como troféu.
Porém, quem vence em mim?
Quem defende meu bastião solitário no deserto, o sudário do sonho?
E quem rói meus lábios, devagar e no escuro, com os meus próprios dentes?

 

Para fazer um talismã

 

 

É preciso só teu coração
feito à viva imagem de teu demônio ou de teu deus.
Um coração apenas, como um crisol de brasas para a idolatria.
Nada além de um indefeso coração apaixonado.
Abandona-o à intempérie,
onde a relva ulule suas endechas de nutriz louca
e não possa dormir,
onde o vento e a chuva façam descer seu flagelo num golpe de azul calafrio
sem convertê-lo em mármore e sem parti-lo em dois,
onde a escuridão abra seus esconderijos a todas as matilhas
e não consiga esquecer.
Atira-o depois do alto de seu amor ao fervedouro da bruma.
Deita-o então para secar no surdo regaço da pedra,
e escava, escava nele com uma agulha fria até arrancar o último grão de esperança.
Deixa que o sufoquem as febres e a urtiga,
que o sacuda o trote ritual da besta,
que o envolva a injúria feita das migalhas de suas antigas glórias.
E quando um dia um ano o aprisione com a garra de um século,
antes que seja tarde,
antes que se transforme em múmia deslumbrante,
abra de par em par e uma por uma todas as suas feridas:
que as exiba ao sol da piedade, como o mendigo,
que pranteie seu delírio no deserto,
até que apenas o eco de um nome cresça nele com a fúria da fome:
um incessante bater de colher contra o prato vazio.

Se ainda sobrevive,
se chegou até aqui feito à viva imagem de teu demônio ou de teu deus;
eis aí um talismã mais inflexível que a lei,
mais forte que as armas e o mal do inimigo.
Guarda-o na vigília de teu peito como a um sentinela.
Mas vela com ele.
Pode crescer em ti como a mordedura da lepra;
pode ser o teu verdugo.
O inocente monstro, o insaciável comensal de tua morte!

 

Em tua imensa pupila

 

Me reconheces, noite,
me apalpas, me recontas,
não como avara e sim como uma falsa cega,
ou como alguém que não sabe jamais quem é a náufraga e quem a carpideira.
Tateando me escolheste como estátua de tuas alegorias,
somente pelo costume de submergir até onde acaba o mundo
e perder a cabeça em cada nuvem e a cada passo o chão debaixo dos pés.
Por acaso não fui sempre tua enteada preferida,
essa que avança sem hesitações para o dolo urdido pela tua mão,
a que morde o veneno na maçã ou copia tua beleza do espelho traidor?
Esqueceram de me atar ao mastro da casa quando tu passavas
para que eu não fosse sempre atrás da tua flauta encantada de ladra de crianças,
e foi às custas do dia que confundi em tua bolsa a brancura da neve, os lobos e as sombras.
Agora é tarde para voltar atrás e corrigir as horas de acordo com o sol.
Agora me marcaste com teu alfabeto negro.
Pertenço à tribo dos que se hospedam em trevas radiantes,
dos que veem melhor com os olhos fechados e se deitam ao lado do abismo e alçam voo e não voltam
quando Tomás abre de par em par as portas do evidente meio-dia.
Tu fundas a tua Tebaida no invisível. Tu não forneces provas. Tu aconteces, secreta, inumerável, sem
……… formular,
como uma contemplação voltada para dentro,
onde cada sinal é o tremor de um pássaro perdido num recinto imenso
e cada subida um salto no vazio contra degraus e ausências.
Tu me vigias por todos os lados,
correndo cortinas, perfurando as paredes, espiando entre fardos de penumbra;
me encontras e me olhas com o olhar do caçador e da testemunha,
enquanto descubro no meio do teu alto matagal o esplendor de uma cidade perdida,
ou busco em vão o rastro do porvir em tuas encruzilhadas.
Tu vais quem sabe aonde seguindo as variações da tentação inalcançável,
provando os rostos extremos do horror, da extrema beleza,
a impossível distância dos outros, o toque do inferno,
visões que se amontoam até onde te alcança a escuridão que tenho,
até onde começas a rodar morte abaixo com carruagens, com pedras e com cães.
Mas eu não te peço lâmpadas exumadas nem véus entreabertos.
Não exijo de ti uma lição de luz,
como não exijo da água a chama nem da vigília o sono.
Ou deveria confiar menos em ti que nas duras e receosas estrelas?
Vimos tantos mistérios insolúveis com seus brancos reflexos, até mesmo em pleno sol!
Basta que me leves pela mão como através de um bosque,
noite acolchoada, noite sigilosa,
que eu aprenda o que queres dizer, o que sussurra o vento,
e possa afinal ler até o fundo de minha pequena noite na tua pupila imensa.

 

***

 

Con esta boca, en este mundo

 

 

No te pronunciaré jamás, verbo sagrado,
aunque me tiña las encías de color azul,
aunque ponga debajo de mi lengua una pepita de oro,
aunque derrame sobre mi corazón un caldero de estrellas
y pase por mi frente la corriente secreta de los grandes ríos.

Tal vez hayas huido hacia el costado de la noche del alma,
ese al que no es posible llegar desde ninguna lámpara,
y no hay sombra que guíe mi vuelo en el umbral,
ni memoria que venga de otro cielo para encarnar en esta dura nieve
donde solo se inscribe el roce de la rama y el quejido del viento.

Y ni un solo temblor que haga sobresaltar las mudas piedras.
Hemos hablado demasiado del silencio,
lo hemos condecorado lo mismo que a un vigía en el arco final,
como si en él yaciera el esplendor después de la caída,
el triunfo del vocablo con la lengua cortada.

¡Ah, no se trata de la canción, tampoco del sollozo!
He dicho ya lo amado y lo perdido,
trabé con cada sílaba los bienes que más temí perder.
A lo largo del corredor suena, resuena la tenaz melodía,
retumban, se propagan como el trueno
unas pocas monedas caídas de visiones o arrebatadas a la oscuridad.
Nuestro largo combate fue también un combate a muerte con la muerte, poesía.
Hemos ganado. Hemos perdido, porque ¿cómo nombrar con esa boca,
cómo nombrar en este mundo con esta sola boca en este mundo con esta sola boca?

 

Entre perro y lobo

 

 

Me clausuran en mí.
Me dividen en dos.
Me engendran cada día en la paciencia
y en un negro organismo que ruge como el mar.
Me recortan después con las tijeras de la pesadilla
y caigo en este mundo con media sangre vuelta a cada lado:
una cara labrada desde el fondo por los colmillos de la furia a solas,
y otra que se disuelve entre la niebla de las grandes manadas.

No consigo saber quién es el amo aquí.
Cambio bajo mi piel de perro a lobo.
Yo decreto la peste y atravieso con mis flancos en llamas
las planicies del porvenir y del pasado;
yo me tiendo a roer los huesecitos de tantos sueños
muertos entre celestes pastizales.
Mi reino está en mi sombra y va conmigo dondequiera que vaya,
o se desploma en ruinas con las puertas abiertas a la invasión del enemigo.

Cada noche desgarro a dentelladas todo lazo ceñido al corazón,
y cada amanecer me encuentra con mi jaula de obediencia en el lomo.
Si devoro a mi dios uso su rostro debajo de mi máscara,
y sin embargo sólo bebo en el abrevadero de los hombres
un aterciopelado veneno de piedad que raspa en las entrañas.
He labrado el torneo en las dos tramas de la tapicería:
he ganado mi cetro de bestia en la intemperie,
y he otorgado también jirones de mansedumbre por trofeo.
Pero ¿quién vence en mí?
¿Quién defiende de mi bastión solitario en el desierto, la sábana del sueño?
¿Y quién roe mis labios, despacito y a oscuras, desde mis propios dientes?

 

Para hacer un talismán

 

 

Se necesita sólo tu corazón
hecho a la viva imagen de tu demonio o de tu dios.
Un corazón apenas, como un crisol de brasas para la idolatría.
Nada más que un indefenso corazón enamorado.
Déjalo a la intemperie,
donde la hierba aúlle sus endechas de nodriza loca
y no pueda dormir,
donde el viento y la lluvia dejen caer su látigo en un golpe de azul escalofrío
sin convertirlo en mármol y sin partirlo en dos,
donde la oscuridad abra sus madrigueras a todas las jaurías
y no logre olvidar.
Arrójalo después desde lo alto de su amor al hervidero de la bruma.
Ponlo luego a secar en el sordo regazo de la piedra,
y escarba, escarba en él con una aguja fría hasta arrancar el último grano de esperanza.
Deja que lo sofoquen las fiebres y la ortiga,
que lo sacuda el trote ritual de la alimaña,
que lo envuelva la injuria hecha con los jirones de sus antiguas glorias.
Y cuando un día un año lo aprisione con la garra de un siglo,
antes que sea tarde,
antes que se convierta en momia deslumbrante,
abre de par en par y una por una todas sus heridas:
que las exhiba al sol de la piedad, lo mismo que el mendigo,
que plaña su delirio en el desierto,
hasta que sólo el eco de un nombre crezca en él con la furia del hambre:
un incesante golpe de cuchara contra el plato vacío.

Si sobrevive aún,
si ha llegado hasta aquí hecho a la viva imagen de tu demonio o de tu dios;
he ahí un talismán más inflexible que la ley,
más fuerte que las armas y el mal del enemigo.
Guárdalo en la vigilia de tu pecho igual que un centinela.
Pero vela con él.
Puede crecer en ti como la mordedura de la lepra;
puede ser tu verdugo.
¡El inocente monstruo, el insaciable comensal de tu muerte!

 

En tu inmensa pupila

 

 

Me reconoces, noche,
me palpas, me recuentas,
no como avara sino como una falsa ciega,
o como alguien que no sabe jamás quién es la náufraga y quién la endechadora.
Me has escogido a tientas para estatua de tus alegorías,
sólo por la costumbre de sumergirme hasta donde se acaba el mundo
y perder la cabeza en cada nube y a cada paso el suelo debajo de los pies.
¿Y acaso no fui siempre tu hijastra preferida,
esa que se adelanta sin vacilaciones hacia la trampa urdida por tu mano,
la que muerde el veneno en la manzana o copia tu belleza del espejo traidor?
Olvidaron atarme al mástil de la casa cuando tú pasabas
para que no me fuera cada vez tras tu flauta encantada de ladrona de niños,
y fue a expensas del día que confundí en tu bolsa la blancura y la nieve, los lobos y las sombras.
Ahora es tarde para volver atrás y corregir las horas de acuerdo con el sol.
Ahora me has marcado con tu alfabeto negro.
Pertenezco a la tribu de los que se hospedan en radiantes tinieblas,
de los que ven mejor con los ojos cerrados y se acuestan del lado del abismo y alzan vuelo y no vuelven
cuando Tomás abre de par en par las puertas del evidente mediodía.
Tú fundas tu Tebaida en lo invisible. Tú no concedes pruebas. Tú aconteces, secreta, innumerable, sin
…….formular,
como una contemplación vuelta hacia adentro,
donde cada señal es el temblor de un pájaro perdido en un recinto inmenso
y cada subida un salto en el vacío contra gradas y ausencias.
Tú me vigilas desde todas partes,
descorriendo telones, horadando los muros, atisbando entre fardos de penumbra;
me encuentras y me miras con la mirada del cazador y del testigo,
mientras descubro en medio de tus altas malezas el esplendor de una ciudad perdida,
o busco en vano el rastro del porvenir en tus encrucijadas.
Tú vas quién sabe adónde siguiendo las variaciones de la tentación inalcanzable,
probándote los rostros extremos del horror, de la extrema belleza,
la imposible distancia de los otros, el tacto del infierno,
visiones que se agolpan hasta donde te alcanza la oscuridad que tengo,
hasta donde comienzas a rodar muerte abajo con carruajes, con piedras y con perros.
Pero yo no te pido lámparas exhumadas ni velos entreabiertos.
No te reclamo una lección de luz,
como no le reclamo al agua por la llama ni a la vigilia por el sueño.
¿O habría de confiar menos en ti que en las duras, recelosas estrellas?
¡Hemos visto tantos misterios insolubles con sus blancos reflejos, aun a pleno sol!
Basta con que me lleves de la mano como a través de un bosque,
noche alfombrada, noche sigilosa,
que aprenda yo lo que quieres decir, lo que susurra el viento,
y pueda al fin leer hasta el fondo de mi pequeña noche en tu pupila inmensa.


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