Beef, a treta da vez

Beef, a treta da vez

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Meus textos quase sempre são tentativas de pensar em novas possibilidades de agir e reagir que não sejam limitadas às oferecidas por uma engrenagem pré-estabelecida, que nos usa como massa de manobra, retroalimentando o pior das relações humanas: raiva, ressentimento, exaustão, comparação e cobrança por uma produtividade estéril, entre tanto mais. Por isso, escolhi escrever sobre Beef (2023), ou Treta, nova série da Netflix em parceria com a produtora A24, criada por Lee Sun Jin. Classificada como comédia, algo no caminho de sátira, isso não a impede de flertar com elementos trágicos. Com dez episódios curtos, com uma média de 30 minutos cada, Beef se beneficiaria se fosse um trabalho mais compacto, mas, ainda assim, tem qualidades.

Na série, Amy Wong (Ali Wong), uma das protagonistas, faz de tudo para viver uma vida perfeita em uma região rica de Los Angeles. De fato, ela está conseguindo conquistar o reconhecimento profissional e o status econômico ansiados, depois de montar seu próprio negócio de plantas, ao qual se dedicou exaustivamente nos últimos cinco anos. Ao menos no nosso imaginário, exercer um trabalho manual, um pouco terapêutico, como a jardinagem, poderia ser uma forma de ir contra a velocidade do mundo contemporâneo, mas nunca me esqueço de uma frase que ouvi no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo, o LATESFIP, que era mais ou menos assim: o neoliberalismo está pronto para absorver os seus próprios colapsos e transformá-los em seu benefício.

Então, o que poderia ser uma fresta no sistema, acaba se tornando parte dele. Amy está uma pilha, porque seu próspero negócio despertou interesse de investidores bilionários, e uma oferta de 10 milhões de dólares está em cima da mesa. Bem, não completamente, está no horizonte, como promessa. E os dias que antecedem a assinatura do contrato são longos e tensos. Cada pequena variável pode colocar tudo a perder.

A primeira cena em que a vemos é nesse contexto, quando ela se envolve numa briga agressiva de trânsito com um carro desconhecido, que também está sendo dirigido por alguém à beira de um ataque de nervos. A diferença é que o outro motorista, Daniel Cho (Steven Yeun), vive uma vida de classe média baixa em Los Angeles, fazendo bicos aqui e ali, enfrentando dificuldades financeiras, enquanto sonha em trazer os pais para viver na cidade. Já Amy, embora só consiga pensar na tranquilidade que os dez milhões traria para a sua vida, diz que esse dinheiro importa de verdade porque permitiria que ela estivesse mais próxima da família, usufruindo a casa que ela mesmo se empenhou em reformar, para deixar com aquela que gostaria que fosse a sua cara: serena.

Ambos têm ascendência oriental: ela, vietnamita; ele, coreano. Podemos intuir as dificuldades que viveram na condição de imigrantes em um país como os Estados Unidos, e como estão seduzidos pelas promessas do sonho americano.

Logo entrevemos que a vida familiar de Amy também não é tão harmoniosa assim, que os discursos pacifistas de seu marido George (ele de ascendência japonesa) estão mais para uma espécie de coaching de autoajuda. Ela, que quer pertencer a esse mundo idealizado, vai amputando partes importantes de si para se encaixar na vida que gostaria de ter. Amy está um poço de tensão, mas precisa aparentar uma calma e um certo modo de vida específicos, que vai desde as roupas que veste à decoração da casa em que vive, o que parece oprimi-la ainda mais, pelo contraste entre a organização que reina do mundo externo e o caos que queima no mundo interno.

O casal tem uma filha pequena, que está enfrentando as suas próprias angústias. Logo no começo, Amy confronta, com delicadeza, o marido, um artista plástico que, diferentemente do pai morto, uma referência pelo design das peças de mobiliário que criou, tem um trabalho inexpressivo. Se não fosse pelo contexto em que vive, pela classe social a que pertence, talvez sequer fosse levado a sério. Pois bem, esse marido e pai amoroso também tem algo de passivo-agressivo, e cobra tanto a esposa quanto a filha, como se estivessem diante de uma pequena artista brilhante que ele tem a função de guiar rumo a seu máximo potencial.

Amy argumenta que eles haviam combinado de pegar leve com a menina, que a pintura a estaria ajudando com as crises de automutilação e, nessas poucas, mas importantes palavras, vemos que a família está mesmo bem longe do retrato feliz que tenta projetar. Mais: George está encantado por uma funcionária da esposa, enquanto Amy não poderia estar psiquicamente mais distante do marido e da filha. Quando o negócio de milhões é oficializado — um dos acertos da série é fazê-lo por volta da metade, mostrando que o mal-estar de Amy continua, não importando quanto dinheiro ela passe a ter —, o que vemos é que o modus operandi introjetado pela protagonista continua em curso. Ela já não consegue se libertar.

A libido de Amy parece estar toda ligada à sua agressividade recalcada. Ela usa roupas de cores neutras, tenta transparecer ter controle e equilíbrio e, mais importante, está sempre sorridente. Um sorriso que não convence ninguém. Ao contrário, parece algo ameaçador. A treta, que intitula a série, começa então com uma disputa hostil e perigosa entre Amy e Daniel, a partir de um desentendimento banal. Ela, protegida pela sua SUV branca, ele arriscando a velha caminhonete da qual seu trabalho depende. Esse encontro vai moldar todo o desenrolar da série, e mostra que a raiva pode criar elos — o que lembra um dos episódios retratados no ótimo Relatos Selvagens, filme argentino que também aborda momentos extremos e dias de fúria.

Pois Beef vai escalonando a tensão e caminhando para alianças improváveis, que são elas mesmas frágeis e sujeitas a novas destemperanças. Amy e Daniel são antagonistas mais semelhantes do que gostariam de ser. Há uma cena bonita e simbólica no final, quando de fato se tornam intercambiáveis. Mas, em determinado momento, a vida de ambos parece estar em bons termos — o que é muito mais penoso e improvável para ele. Tudo que ele aparentemente quer é oferecer aos pais uma velhice digna. Esse seria o seu grande propósito de vida.

No entanto, no meio do caminho, está a raiva que os captura, e também a solidão que os atravessam. Amy diz à filha que bens materiais não importam, que o que vale mesmo são os laços que têm, mas age de forma contraditória. É distante, quase autômata, não experimenta nenhuma intimidade sincera. Ela tem tamanho receio de se colocar de forma vulnerável no mundo que constrói suas relações em torno de performances, e talvez por isso não possa constituir elos mais sólidos.

Se Amy não consegue deixar de desempenhar uma personagem genérica, não se trata de um fingimento deliberado, empenhado apenas em enganar outras pessoas. Quantas vezes a vemos às voltas em engenhosas tentativas de enganar a si mesma? Essa mulher com movimentos comedidos — mas que se masturba com uma arma —, diz, numa espécie de palestra motivacional da qual participa, celebrando a sua jornada de heroína neoliberal, que o sucesso que alcançado é apenas fruto de seu esforço. Anos acordando às seis da manhã, trabalhando incansavelmente, enquanto dividia com o marido os cuidados com a filha, mas fazia questão de estar sempre presente para jantar com a família. Ao que completa: dizem que não, mas podemos ter tudo. O sorriso dela só não revela a que custo, nem que esse “tudo” está desabando.

Enquanto isso, seu casamento vai mal; a filha desenvolve uma compulsão por doces; a sogra está sempre à espreita, como uma investigadora criminal; a amiga Naomi (Ashley Park) ora parece magoada, ora furiosa, por ser constantemente escanteada, e Amy ainda se sente ameaçada pelo impasse com Daniel, que vai se complicando. Mas, talvez, acima de tudo, ela se sinta ameaçada por si mesma. Como uma bomba-relógio.

Beef foca em dois núcleos familiares que estão na luta por ascensão social. Amy numa posição bem mais confortável do que Daniel, mas ambos solitários, aflitos, completamente tomados pela ansiedade e pelo anseio de não conseguirem alcançar o sucesso, seja lá o que isso represente.

A série é bem cuidada, mas também pretensiosa. A cada episódio, junto com o título, vemos lindas pinturas de David Choe, artista que também está no elenco, e essas imagens dialogam bem com o conteúdo dos episódios. Talvez seja um exagero afirmar que a arte é, ela mesma, uma personagem de Beef — como fez a Netflix numa matéria —, mas não deixa de ser um elemento importante, que vai costurando o enredo.

O mais interessante, para mim, é a constatação de que conquista alguma pode trazer alguma paz para pessoas atormentadas. Como diz Freud no importantíssimo texto “O mal-estar na civilização”, a agressividade é parte inseparável da nossa condição humana, ou da nossa animalidade recalcada, e precisa encontrar vazões sadias ou vai consumir tudo à sua volta: singularmente, coletivamente.

Beef faz pensar em como a raiva precisa ter seu espaço. O mesmo vale para outros sentimentos negativos, que assombram Amy e Daniel, porque fazem parte da experiência tão complexa de estar no mundo. Mas se não pudermos elaborar minimamente esses sentimentos legítimos, eles podem passar a nos governar.

É interessante encontrar personagens mais humanizadas e lembrar que não basta uma vida disciplinada, orquestrada por cores neutras, e que não basta se encaixar nas expectativas sociais. A agressividade recalcada pelo caminho pode nos acompanhar e aparecer em tretas dispensáveis, que são meros deslocamentos de outras dores. Mas também vale dizer que talvez tenha algo de mais honesto na fúria de Amy do que na vida supostamente perfeita que ela tenta perseguir.

A pergunta que fica é: será que temos apenas essas duas alternativas? A performance social claustrofóbica ou os acessos de raiva e de vingança, estilo relatos selvagens? Beef é uma série mediana, mas interessante para pensar no mundo atual, até mesmo nas dinâmicas das redes sociais, em que vemos que a intolerância e as brigas são mais comuns do que a disposição para boas conversas, que possam expressar divergências e críticas, sem dinamitar tudo ao seu redor.

Talvez precisemos descobrir como voltar a conversar.

Fabiane Secches é psicanalista, crítica literária e pesquisadora de literatura. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, onde atualmente é doutoranda.


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