A órbita dos homens-planeta

A órbita dos homens-planeta
A menção de Lacan a Hitler em 'O Seminário, livro 2' merece exame dos mais exaustivos (Foto: Domínio Público)

 

Does the sun ask itself, “am I good?
Am I worthwhile?
Is there enough of me?”
No, it burns and shines.
Does the sun ask itself,
“What does the moon think of me?
How does Mars feel about me today?”
No, it burns, it shines.
Does the sun ask itself,
“Am I as big as other galaxies?”
No, it burns, it shines.
Andrea Dworkin

“Por que será que os planetas não falam?” A esdrúxula pergunta abre uma das mais interessantes lições de O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise – a de número 19.

Era 1955. O interesse de Lacan pela questão ligava-se à crítica de modelos psicanalíticos articulados em torno do campo imaginário e da estrutura egóica. Dentro desse escopo, o alvo da vez era o psicanalista irlandês William Ronald Fairbairn, cuja teoria sustentava-se sobre as relações de objeto. No contexto de tal crítica, hoje ganha vulto a breve alusão feita a Mein Kampf de Adolf Hitler. Sobre a obra do nazista, diz Jacques Lacan:

Nós não somos nem um pouco iguais a planetas, isto é, a todo instante, palpável, o que não nos impede de esquecê-lo. No que diz respeito aos homens, temos sempre tendência a raciocinar como se se tratassem de luas, calculando-lhes as massas, a gravitação. Não se trata de ilusão que nos seja particular a nós sábios – é em especial altamente tentadora para os políticos. Estou pensando numa obra esquecida que não era assim tão ilegível, porque provavelmente não era de autoria de quem a havia assinado – chamava-se Mein Kampf. Pois bem, nesta obra do denominado Hitler, que perdeu muito de sua atualidade, falava-se das relações entre os homens como de relações entre luas. E temos sempre tendência a fazer uma psicologia e uma psicanálise de luas, quando, no entanto, basta reportar-se imediatamente à experiência para ver a diferença.

Um leitor apressado bem pode ler a menção a Hitler como uma inconsequente banalidade, solta de improviso pela boca loquaz de Lacan. Ledo engano. Trata-se de uma observação prenhe de consequências e que mereceria exame dos mais exaustivos.

Antes de introduzir a lição 19, a questão Por que será que os planetas não falam?, formulada por Lacan, havia sido dirigida a um ilustre filósofo da época. A resposta emitida, porém, o decepcionara: “O que isso quer dizer? Porque não têm boca.”

Decantado, o desapontamento inicial transmuta-se e passa a abrir caminhos fecundos para as reflexões do psicanalista francês. Talvez não seja exagero supor que as lições 19 e 20 articulam-se a partir dessa conversa com o tal filósofo anônimo.

Com essas duas sessões de O Seminário, livro 2, estamos diante de dois pontos decisivos: 1) temos em mãos condições de desenhar com maior precisão a organização psíquica de sujeitos nazifascistas; 2) existem modelos de psicanálise que conduzem o tratamento na direção de tal configuração subjetiva, tendo-a como parâmetro de saúde mental. O segundo ponto é especialmente assustador. Partamos dele.

Os objetos-tampa de Fairbairn

Ronald D. Fairbairn (1889-1964), psicanalista próximo de Melanie Klein e D. W. Winnicott, pertencia ao que ficou informalmente conhecido como Middle Group na Sociedade Britânica de Psicanálise. Em suas investigações teórico-clínicas, reunidas em Estudos psicanalíticos da personalidade, Fairbairn dedicou-se à explicitação de uma conformação básica do psiquismo, considerando essencial a qualidade das relações de objeto e sua dependência para a constituição subjetiva.

O cenário era o pós-guerra. Traumas e crianças órfãs mobilizaram psicanalistas como Fairbairn e Winnicott, que circunscreveram diagnósticos no espectro borderline, isto é, na fronteira entre a neurose e a psicose. Nesse limiar, a sexualidade passa a um plano secundário e as necessidades ganham destaque. No lugar dos impulsos libidinais, Fairbairn foca na qualidade das relações objetais nos primeiros momentos de vida da criança.

Destituídos do teor erótico, os movimentos psíquicos são de natureza egóica. A persistência da base esquizóide na personalidade seria o retrato da cisão egóica devido às relações objetais insatisfatórias. É clara a patologização daquilo que a psicanálise freudiana concebe como parte constitutiva do aparelho psíquico: a divisão do sujeito do inconsciente que aloca o estrangeiro em nossa própria casa.

Aos olhos de W. R. Fairbairn, o ego precisaria integrar-se e tal estado unificado ficaria impedido quando a relação objetal fosse insatisfatória. A viscosidade erótica e desejante da libido dá agora lugar à insossa relação objetal que deve se adequar quase perfeitamente às necessidades do sujeito. Para o psicanalista irlandês, as limitações da teoria libidinal estariam na ênfase dada por Freud às zonas erógenas. Em vez delas, Fairbairn destaca uma suposta dependência total em relação ao objeto, cuja qualidade deveria estar de algum modo garantida para que a integração egóica se cumprisse da forma ideal. Diante disso, faz a seguinte colocação:

Por que um lactante chupa o polegar? Nessa simples pergunta jaz todo o destino do conceito de zonas erógenas e a forma da teoria da libido baseada nele. A resposta de que o lactante chupa o polegar porque lhe proporciona prazer erótico é convincente, porém na realidade nos afasta do tema. Por que o polegar? E a resposta será: porque não tem um seio para chupar.

O caráter erógeno da boca e o sexual da libido seriam sinais de insuficiência nas relações de objeto. Ou seja, pelo prisma de Fairbairn pode-se dizer que se passa algo como: “sexualidade desejante, melhor não tê-la!”. Sim, pois o autor supõe que a criança dependente de uma relação que não pode estar atenta a todas as suas necessidades (all the needs of the child) passa a recorrer a estratégias de reparação de seu vínculo insatisfatório com o objeto, como seria aquela de chupar o dedo. Mais claramente: a ausência do seio determinaria a atitude libidinal oral, não o prazer inerente a essa zona erógena.

Aqui, inacreditavelmente, vacila a obviedade da resposta dada pelo filósofo anônimo à pergunta feita por Lacan “Por que os planetas não falam?”. A simples conclusão “Porque eles não têm boca” deveria indicar um acordo tácito de que todos os seres humanos, ao contrário dos planetas, teriam uma.

Para Fairbairn, entretanto, isso não parece tão simples, nem tão óbvio. O orifício bucal emerge diante de seus olhos quase como uma ferida. Parece que, em sua perspectiva, melhor seria a condição de um planeta no qual os buracos e orifícios erógenos inexistam. Uma vez que eles se alastram pelo corpo humano, Fairbairn empenha-se em assegurar seu tamponamento por relações de objetos inteiramente satisfatórias e que não dariam espaço a deslocamentos e anseios de natureza erótica libidinal.

Não será preciso um número muito grande de elucubrações para adivinhar quem efetivamente seria o objeto primordial perfeito ou imperfeito na obturação dos orifícios: a mãe, claro. A qualidade não-responsiva do objeto (mãe) é aquilo que caracterizaria sua maldade, acionando uma série de mecanismos defensivos. Embora os meandros dessa discussão também sejam interessantes, não caberá tratá-los aqui.

Em algumas passagens de Estudos psicanalíticos da personalidade, Fairbairn evoca as descobertas feitas pelo físico alemão Werner Heisenberg. A ideia de Heisenberg de que haveria uma inseparabilidade entre energia e partícula servia ao psicanalista irlandês, que retirava a mobilidade inesgotável da libido e do desejo e acoplava ao ego objetos que se adequassem a todas as suas lacunas. Agora, o prazer erógeno figura como válvula de escape de um ego que enfrenta graves dificuldades de adaptação – felizmente, há muitos desadaptados neste mundo…

Vale destacar, ainda mais especificamente, o paralelo traçado por Fairbairn entre sua teoria psicanalítica e a física de Heisenberg. Para o físico contemporâneo, as partículas elementares são dotadas de energia. Na leitura do psicanalista irlandês, Freud estaria imbuído da lógica tradicional da física, na qual os elementos aparecem destituídos de energia, precisando de um empurrãozinho externo para movê-los. Ou seja, no léxico psicanalítico situamo-nos, mais uma vez, em torno do embate entre relações objetais e teoria da libido. Seja como for, se estamos em uma composição imaginária – e aqui supõe-se toda a constituição ideológica política e socialmente compartilhada –, cuja promessa é de que os objetos devam satisfazer o ego num registro de quase complementariedade e total integração, o ricochete, quando tal expectativa não ocorre, não será desprezível.

É justamente nessa atmosfera de anseios de satisfação completa que surgem as bombas atômicas, desenvolvidas a partir das teorias e experimentos de Heisenberg. Little Boy, a primeira bomba nuclear utilizada numa guerra mundial, atingiu Hiroshima em 1945. Pouco depois, o impacto de Fat Man devastou Nagasaki. Os nomes das bombas são um tanto quanto sugestivos…

Para explicar o efeito de uma bomba atômica, basta pensar que no núcleo do átomo existem duas partículas, uma positiva, o nêutron e outra neutra, o próton. Os elétrons, que são negativos, orbitam em torno do núcleo e emitem energia ao átomo. Uma fissão nuclear é capaz de causar a explosão que destrói tudo que está à sua volta e ainda irradia raio-x, raio gama e nêutrons em ondas que se alastram a vários quilômetros de distância do epicentro nuclear. Isso quando não se faz uma bomba a partir de uma fusão nuclear, cujos efeitos são ainda mais nefastos.

No plano psíquico, não é difícil desdobrar o ingênuo paralelo traçado por Fairbairn: se uma mamãe não inteiramente responsiva é capaz de fazer explodir seu little boy, inconformado com seus pequenos orifícios e buracos, estamos em uma atmosfera na qual os homens-planeta ganham espaço e orbitam de maneira desinibida por aí. Para Lacan, como vimos, Adolf Hitler é exemplo de homem-planeta.

Mein Kampf e o modelo dos homens-planeta

Logo nas primeiras páginas de sua biografia, Hitler deixa transparecer aquilo que orienta a organização psíquica de um homem-planeta. Diz ele: “A Áustria alemã deve voltar a fazer parte da grande Pátria germânica […]. Mesmo que essa união fosse, sob o ponto de vista econômico, inócua ou até prejudicial, ela deveria realizar-se. Povos em cujas veias corre o mesmo sangue devem pertencer ao mesmo Estado”.

 

 

Homens-planeta fecham-se
numa órbita intransponível
– ao menos é o que almejam.
Qualquer “intruso” é atacado,
pois desestabiliza a harmonia
e a unidade rítmica do
movimento esférico.

 

 

A substância da energia que os une em relações objetais ideais é a mesma. Nada pode interromper a controlada variação que se forma entre eles. “Na Alemanha”, diz Hitler, “tratava-se apenas de vencer as tradições políticas, pois sempre houve uma base comum cultural. Antes de tudo, possuía o Reich, à exceção de pequenos fragmentos estranhos, um povo único”. Todavia, se os fragmentos estranhos crescem demasiadamente, a harmonia entre little boys e fat men converte-se em atroz destruição.

É curioso, porém, que as feridas possam também originar-se no interior das unidades planetárias integradas. Com isso, seria admissível processos de colonização e misturas que pudessem momentaneamente aplacar faltas e furos no ideal unitário. É daí que se pode pensar no caráter obeso e acumulador dos espíritos de fat men. Hitler é claro na explicitação deste ponto, quando diz:

Ao povo alemão não assistem razões morais para uma política ativa de colonização enquanto não conseguir reunir os seus próprios filhos em uma pátria única. Somente quando as fronteiras do Estado tiverem abarcado todos os alemães sem que se lhes possa oferecer a segurança da alimentação, só então surgirá, da necessidade do próprio povo, o direito, justificado pela moral, da conquista de terra estrangeira.

Em suma, o Outro, estrangeiro, reduz-se a ser uma rolha para os buracos que inadvertidamente se anunciam nos corpos de homens-planeta. O primeiro buraco do planeta-Hitler apareceu bem cedo: ele era austríaco e não alemão, como aspirava.

Revolvendo a biblioteca paterna, deparei com diversos livros sobre assuntos militares, entre eles uma edição popular da guerra franco-alemã de 1870-1871. Eram dois volumes de uma revista ilustrada daquele tempo. Tornaram-se a minha leitura favorita. Não tardou muito para que a grande luta de heróis se transformasse para mim em um acontecimento da mais alta significação. Daí em diante, eu me entusiasmava cada vez mais por tudo que, de qualquer modo, se relacionasse com guerra ou com a vida militar. Sob outro aspecto, isso também deveria vir a ser de importância para mim. Pela primeira vez, embora ainda de maneira confusa, surgiu no meu espírito a pergunta sobre se havia alguma diferença entre estes alemães que lutavam e os outros e, em caso afirmativo, qual era essa diferença. Por que a Áustria não combateu com a Alemanha nesta guerra? Por que meu pai e todos os outros não se bateram também? Não somos iguais a todos os outros alemães? Não formamos todos um corpo único? Esse problema começou, pela primeira vez, a agitar o meu espírito infantil. Com uma inveja íntima, deveria às minhas cautelosas perguntas aceitar a resposta de que nem todo alemão possuía a felicidade de pertencer ao império de Bismarck. Isso era inconcebível para mim.

Tornar uma ferida algo inconcebível e inaceitável tem consequências que já sabemos bem quais são. Em sua paranoia antissemita, o judeu torna-se uma “sinistra figura”, infiltrada em todas as esferas e capaz de estragar toda a pura harmonia alemã. Diz Hitler, em uma das inúmeras passagens de mesmo teor: “Os líderes do partido socialdemocrata […] eram quase todos pertencentes a uma raça estrangeira, pois para minha satisfação íntima, convenci-me de que o judeu não era alemão. Só então compreendi quais eram os corruptores do povo”.

Um culpado pelas mazelas do povo: o judeu. Uma culpada pelas mazelas subjetivas dos homens-planeta: a mulher-mãe. Daí seguimos facilmente com toda sorte de chauvinismo e misoginia justificável aos olhos de alguns.

Planetas não se aproximam dos animais que, como seres libidinosos, têm linguagem e orifícios. Não concentram o espírito do trabalho humano, como cada coisa que ronda nossas vidas e carrega o tempo do suor e de nossas fissuras. Os planetas são redondos e regulares – funcionam em uma temporalidade que almeja o ciclo a-histórico. São sem lacunas. Os homens-planeta morrem de medo das cicatrizes e feridas porque são fracos como um little boy. Como balões inflados, fat men e little boys estouram apenas com algumas alfinetadas. Basta chegar perto de suas superfícies com essa pontinha afiada.

Eles explodem, mas não precisamos temê-los: não têm a composição de bombas atômicas.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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