A comunicação presidencial em crise

A comunicação presidencial em crise
(Foto: Marcelo Camargo/AB)

 

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Lula fala bem demais. Nem Dilma, e as suas longas e nebulosas sentenças, nem Temer e as suas empoladas mesóclises adornando vetusto vocabulário, muito menos Bolsonaro, que alternava entre o modo balbuciante e o estilo desbocado, explicavam suas ideias com tanta clareza e as expressavam com tanta capacidade de capturar a boa vontade da audiência.

Mas Lula também fala demais. Nas últimas semanas, então, revelou uma enorme disposição para emitir opiniões a respeito de assuntos sobre os quais não precisaria – nem deveria – falar. Em apenas alguns dias, Lula criou problemas para a área econômica do governo ao anunciar precocemente uma política pública, que se revelou tremendamente impopular, sobre taxação de compras em sites chineses, além de ter-se metido em controvérsias desnecessárias por opiniões enunciadas sobre a guerra na Ucrânia e sobre a relação entre massacres em escolas e responsabilidade parental, games e doenças mentais.

Para cada tema e subtema, Lula conseguiu a proeza de despertar um conjunto novo de incomodados ou ofendidos com o teor de sua opinião, e de suscitar no debate público um monte de críticas ou contestações aos seus argumentos. Saiu-se muito mal.

Sem ser forçado a isso, Lula produz involuntariamente muito barulho, cria confusões e arruma problemas. Tornou-se pródigo em garantir uma provisão abundante de declarações desastradas, ruins para a sua imagem e para a imagem do governo, que confundem e deixam surpresos os que lhes são simpáticos e indignados os que já não têm por ele qualquer complacência.

Por que faz isso?

A minha principal hipótese é que entre 2003, início de seu primeiro mandato, e 2023, início do terceiro, o mundo mudou. Como na canção de Chico, o tempo passou na janela e só Carolina não viu.

Não viu que o mundo em que a política era mediada pela TV se transformou na política mediada pela conversa digital; que o presidente da República não tem mais falas reservadas e offs, garantidos por jornalistas e editores, pois tudo o que faz e diz agora são “declarações”, editáveis por qualquer pessoa em vídeos de 30 segundos, que vão percorrer o mundo em apenas alguns minutos.

Não viu que presidente vive hoje numa situação sem precedentes de exposição pública, um Big Brother absoluto produzido por milhões de dispositivos para a captura e imediata distribuição massiva de vídeos e áudios.

Não viu que mudou a sensibilidade social sobre certos temas, principalmente por parte de alguns grupos com enorme capacidade de pautar a conversa social, e que vigiam a conversação pública incessantemente, à cata do menor deslize, para expor e castigar os infratores, mesmo Lula a quem são simpáticos. Não viu que surgiram novos atores sociais, os influenciadores digitais, com poder de pauta e de mobilização social para as suas agendas que é idêntico ao dos políticos e dos jornalistas, capazes de trucidar ou promover uma política, uma norma, uma declaração, uma reputação, uma imagem com enorme velocidade e eficiência.

Não viu que mudou o tempo de reação social a qualquer política ou iniciativa governamental, que agora é imediata, massiva e intensa, refletindo-se instantaneamente na mudança do apoio e da aprovação de quem governa. E uma pesquisa da semana passada já mostrou o impacto negativo da confusão criada pelo presidente nas suas taxas de aprovação pela opinião pública.

Não viu que não há mais uma diferença entre a audiência nacional e o público internacional que havia no mundo que se informava pelo jornalismo, que a plataformização do debate público significa a globalização de qualquer discussão, que uma declaração dada no lobby de um hotel nos cafundós da China chegará quase instantaneamente no WhatsApp dos moradores da vila de Cafundó na Bahia. E vice-versa.

Essas mudanças estruturais na esfera pública, para usar a expressão de Habermas, só tornam mais urgente para o governo a necessidade de algum controle estratégico da comunicação presidencial. Pois Lula fala bem, mas nem tudo o que Lula fala é bom o suficiente para ser compartilhado na esfera pública.

As suas opiniões sobre a invasão da Ucrânia foram mal recebidas porque são ruins, discutíveis, parciais. A sua inconfidência sobre uma política pública ainda não configurada supôs uma recepção equivocada do público. As suas opiniões sobre a correlação entre games e violência foram um amontoado de clichês insustentáveis. Não tem “bem falar” capaz de salvar uma ideia errada, impopular, desinformada, amadora e imprudente.

Lula é o presidente da República, tudo nele significa, é uma mensagem, todas as suas opiniões discutíveis serão magnificadas e exploradas à exaustão. Uma gestão eficiente da comunicação presidencial, a este ponto, já nem é mais recomendação, mas questão de sobrevivência deste governo.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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