Os pobres, o Auxílio Brasil e o que os analistas não entendem

Os pobres, o Auxílio Brasil e o que os analistas não entendem

 

Uma pergunta recorrente entre jornalistas e comentaristas de política nesse momento é “por que os mais pobres não mudaram o voto para Bolsonaro depois do Auxílio Brasil e de outras medidas francamente eleitoreiras?”.

Há dois problemas nesta pergunta. O primeiro é que pobre não é tudo igual. 50 milhões de pessoas são pobres nesse país. Isso é mais que uma Argentina inteira. Alguém se atreveria a pensar que a Argentina é eleitoralmente homogênea? Como se pode achar, então, que 50 milhões de pessoas votem do mesmo jeito e pelas mesmas razões? São 50 milhões de pessoas distintas, espalhadas por um território continental com enormes diferenças internas e vivendo nas mais diversas condições, e não um grupo de pessoas do mesmo ambiente social, sob as mesmas circunstâncias e desfrutando dos mesmos recursos.

Pobre só é igual na pobreza, e nem as pobrezas são iguais. No resto, só há diferenças. Se isso não entra na cabeça dos experts em análises eleitorais, quer dizer que não são tão espertos assim. Pobres nordestinos votam diferentemente de pobres sulistas, pobres evangélicos conservadores comportam-se de forma diversa dos pobres para os quais a religião não é uma razão de voto, mulheres pobres que são mães usarão critérios distintos dos homens pobres. A pobreza é basicamente uma circunstância econômica, não uma qualidade essencial das pessoas.

O segundo problema é que está embutida na pergunta uma premissa muito comum sobre o voto dos mais pobres. O pressuposto é que os pobres são mais vulneráveis às enganações e trapaças por meio das quais a política os manipula. Os não pobres têm as manhas, detectam os truques, já os pobres, porque ingênuos e ignorantes, se deixariam enganar facilmente por qualquer manipulador preparado. Como todos os vulneráveis, os pobres não teriam defesa.

Por quase duas décadas foi corrente a tese de que o sucesso eleitoral do PT se devia à, como se dizia, “bolsa esmola” que o partido injetava nas periferias e nos grotões do país. Pobre só pensa em comer e beija a mão que o alimenta. Mesmos jornalões da grande imprensa brasileira sustentavam essa tese, apesar de dourá-la com eufemismos. De vez em quando, trocavam “pobres” por “nordestinos” que, como se sabe, é só um nome diferente para a mesma coisa. E dá-lhe teses sobre o voto petista ser um voto comprado com pratos de comida dos ignorantes, estúpidos e desamparados, dos pobres, em suma. Pobre não tem razão de voto, tem é necessidade.

Agora, de novo, volta à sociologia eleitoral vulgar a tese de que por R$ 400 um pobre entrega resignadamente o voto e a alma. E como as pesquisas não constatam o ato reflexo pavloviano entre o osso mostrado e a salivação dos pobres, há surpresas registradas. Como assim, os pobres ainda não beijam a mão que lhes dá o bife?

Não estou dizendo que medidas eleitoreiras como essa, manipulando as carências de pobres e miseráveis, não produzam efeitos. Estou dizendo que não é assim que a banda toca, com efeitos diretos e imediatos.

Existe em teoria eleitoral uma variável chamada, em inglês, de feel good factor. E que vale para todo mundo, não apenas para pobres. Quando as pessoas estão contentes com a própria vida, acham que estão melhores do que estavam antes e/ou estão otimistas quanto ao futuro próximo, tendem a reeleger os governantes. Quando a situação é o contrário, votarão em um desafiante. O que moveu Bolsonaro e Lira a essa manobra do Auxílio Brasil foi uma tentativa desesperada (e despudorada) de reduzir a depressão, a infelicidade social da parcela mais pobre da população, por achar que esta sensação lhes seria eleitoralmente fatal. O que é provável. Afinal, foi por causa do feel bad fator, sensação disseminada amplamente nas classes médias a partir de 2015, que Dilma caiu no ano seguinte e as pessoas saíram fazendo loucuras e apostando alucinadamente em tipos como Michel Miguel Temer ou Paulo Guedes.

Nenhuma classe é imune aos efeitos eleitorais da sensação de que a sua vida está pior e de que não tem futuro. Nem os pobres. Resta a saber se R$ 400 têm o condão de mudar esse sentimento social de que a vida está muito, mas muito ruim, e que, a permanecer assim, esse país não tem futuro. Eu sou cético quanto a isso.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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