Yara Frateschi: repensar as utopias

Yara Frateschi: repensar as utopias
A filósofa Yara Frateschi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (Foto: Nádia Ferreira Junqueira)

 

A filósofa Yara Frateschi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vê na pandemia do coronavírus um momento de exposição sem disfarces das desigualdades econômicas e sociais brasileiras. Ao mesmo tempo, a própria experiência cotidiana dos efeitos do vírus e do isolamento social trouxe para perto das pessoas as contradições do atual estágio do capitalismo, o que pode ser um momento de “repensar nossas utopias”, isto é, rever prioridades, desejos e necessidades reais de toda a população.

Frateschi participou recentemente de uma polêmica suscitada pelo texto “Reflexões sobre a peste”, do filósofo italiano Giorgio Agamben, no qual ele definiu como “frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas” as medidas de distanciamento social. A filósofa escreveu um artigo – “Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia” – que refutou essa análise. Um grupo de estudiosos da obra do pensador italiano respondeu cordialmente com o artigo “Agamben sendo Agamben: por que não?”, e Frateschi publicou uma tréplica igualmente cordial. Os detalhes e as implicações dessa discussão são abordados na entrevista a seguir.

Na polêmica, Frateschi recorreu às ideias de pensadoras contemporâneas que advogam um cânone renovado, distanciado do desequilíbrio de gênero e raça que marcou a história oficial da filosofia. A professora da Unicamp faz parte do grupo criador e mantenedor do blog Mulheres na Filosofia, no portal da universidade. A iniciativa se dá simultaneamente a várias outras que pretendem trazer à luz a atividade, os projetos e o pensamento femininos no Brasil e no mundo.

Que reflexões a pandemia desperta em você como filósofa?

São reflexões muito distintas, que apontam para muitos lugares. Mas aquilo que mais me interessa é o fato de que, muito embora todos nós, de todos os grupos sociais, estejamos suscetíveis ao vírus, a pandemia vem tornar ainda mais evidentes as desigualdades. O vírus é mais cruel quando incide nos mais vulneráveis. Sua ação parece democrática, mas quem mais morre ou mais sofre os efeitos da pandemia são os pobres, os negros, os indígenas.

E a situação de isolamento, que pensamentos desperta?

Penso em algo muito elementar, a condição dos humanos como seres relacionais. Filosoficamente, o que mais pulsa na minha vida cotidiana é algo muito antigo, que eu busco em Aristóteles: a definição dos seres humanos como animais políticos, isto é, sociais. É uma ideia que a história da filosofia sempre soube elaborar e atualizar, chegando ao pensamento de Hannah Arendt, Seyla Benhabib e Judith Butler, para quem somos seres corporificados que precisam uns dos outros não só para sobreviver e satisfazer necessidades, mas também para ter uma vida qualificada nos âmbitos político, moral, afetivo, emocional. Na quarentena, percebemos de forma muito violenta a falta que as pessoas fazem. Muitos de nós estão em situação solitária ou restrita a um grupo privado e reduzido. Isso empobrece nossas potencialidades criativas e afetivas.

Mas não haveria algo de desafiador ou estimulante neste momento de crise?

Respondo como uma mulher de classe média que tem condições de guardar o isolamento, o que me permite refletir e usar meu repertório filosófico acumulado. O fato de eu poder viver essa situação já traz um ganho. Mas nesse mesmo espaço da casa as mulheres estão precisando também dar conta do trabalho que garante o sustento e de dois outros que historicamente são atribuídos às mulheres: o cuidado da casa e dos filhos (e muitas vezes dos idosos). A ausência de escolas e a impossibilidade de contar com a rede de pessoas que poderiam auxiliar essas crianças nos levam a uma situação de esgotamento absoluto. Nunca vimos com tanta clareza essa condição que as mulheres pobres enfrentam há muito tempo.

 

Como vem apontando Nancy Fraser, a crise do
cuidado se acentua como contradição no atual
estágio do capitalismo neoliberal, porque quanto
menos há Estado, mais esses encargos estão sob
responsabilidade das mulheres e das famílias.

 

 

O aprofundamento dessa situação poderia levar a mudanças sociais?

Eu venho de uma tradição de pensamento que aposta na possibilidade de que as crises e as contradições, ao se intensificarem, podem vir a gerar cenários de transformação social. Foi interessante ver, logo no início da pandemia, filósofos como o Slavoj Žižek e Angela Davis dizerem que o mundo pode estar diante de uma chance de repensar a continuidade de uma configuração social capitalista, que é racista, sexista, patriarcal. As contradições talvez se tornem evidentes a ponto de abrir-se um interstício que possibilite mudanças. É um momento fértil, já que o capitalismo tenta esconder as contradições, e vem a pandemia para torná-las visíveis. É inegável que ela obriga a rever nossas utopias e a repensar a distribuição de recursos, da terra ao atendimento à saúde.

Recentemente você escreveu um artigo em reação a um texto do filósofo Giorgio Agamben sobre a pandemia, iniciando uma polêmica. Como isso se deu?

O prognóstico de Agamben é que a pandemia reforçaria a passividade social, dominada pelo pânico. O medo de morrer sustentaria a prioridade da sobrevivência, o que aniquilaria a possibilidade de agência e resistência. Mas não foi isso que aconteceu. Basta lembrar as revoltas nos Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd ou, no Brasil, a mobilização dos entregadores de comida via aplicativos e a organização das comunidades periféricas para conseguir aquilo que o Estado não supre. São focos importantes de ação e resistência apontando para nossas deficiências estruturais mais profundas, as mesmas que tornam a pandemia tão violenta para certas camadas da população.

Para os estudiosos do filósofo, provavelmente o que mais incomodou foi sua afirmação de que o artigo de Agamben é coerente com o arcabouço teórico que ele criou.

A análise de Agamben é o resultado da aplicação de um esquema teórico que está sendo apresentado desde os anos 1990 para explicar uma crise que ele identifica como própria da modernidade. Esse estado de coisas – numa exposição bastante breve – implicou o estabelecimento do valor da “vida nua” como principal sustentação da sociedade moderna. O resultado é um declínio – que Agamben chama de eclipse – do humano e de sua dimensão política: uma sociedade inerte, passiva, controlada pelo medo de perder a própria vida. A epidemia seria para ele uma invenção que sustenta o estado de exceção e torna os cidadãos submissos em troca de satisfazer o desejo de segurança, e o medo é a afecção mais importante desse desejo. Essa foi a visão que Agamben manteve por vários artigos, mesmo depois que os fatos provaram que o vírus não era uma invenção, nem o isolamento social uma medida excessiva. O artigo dele provocou em muitas pessoas uma reação de desconcerto, porque o discurso se parece com o de Jair Bolsonaro e da extrema direita no mundo todo, inclusive na condenação da atitude da mídia, que seria parte de um conluio para disseminar o medo. Para ele, a pandemia estaria agora exercendo o papel anteriormente desempenhado pela guerra ao terrorismo. Portanto, o esquema teórico estava pronto. Não me parece a melhor forma de fazer filosofia. Como ensinou Hannah Arendt, para compreender o tempo presente é preciso pensar a partir dos fenômenos, não antes deles.

Sujeitar fatos a esquemas prontos seria um risco que todo cientista corre?

Quando faz uma análise, todo cientista ou filósofo procura uma construção teórica pronta, claro que sim. O que não pode haver é um congelamento desse quadro categorial, sem abertura para as peculiaridades do fenômeno em questão.

 

É importante dizer que a filosofia costuma tender à
abrangência e tem uma natureza especulativa, o
que a diferencia da sociologia, por exemplo. Isso
não implica fazer o que o Agamben faz, ou seja,
essencializar o que está analisando.

 

 

Nesse sentido, é uma filosofia muito tradicional, que o fez perder a chance de enxergar as contradições da atividade do Estado. Se por um lado o Estado é uma máquina de controle, por outro não se pode imaginar o trato da pandemia sem ele.

A crítica à ciência sempre foi uma tarefa da filosofia. Entretanto, essa crítica pode às vezes ser inoportuna?

A filosofia tem sempre o papel “inoportuno” de ir na contramão do estabelecido, e sempre precisa estar atenta às relações de poder, das quais a ciência não está a salvo. Nós vimos o que aconteceu no nazismo – motivo suficiente para ficarmos permanentemente em estado de alerta. Mas os artigos de Agamben ignoram o extraordinário crescimento do negacionismo científico, corresponsável pela morte de milhares de pessoas. No Brasil o negacionismo conta até com o fomento da administração central. É uma marca assustadora dos nossos tempos.

Mesmo reconhecendo a necessidade das medidas de controle para conter o coronavírus, elas poderiam também, de alguma forma, ser um laboratório para o aperfeiçoamento das táticas autoritárias?

Não nego que seja importante olhar para as técnicas de controle, inclusive notar quanto somos uma sociedade vigiada. De fato é perturbador que os governos meçam a adesão ao isolamento por meio do acesso das pessoas aos telefones celulares. Mas não se pode perder de vista a necessidade de monitorar a situação para diminuir os riscos de doença e morte. O desenvolvimento dessas estratégias pode ser usado contra nós? Sim. Essa é uma das contradições mais agudas da sociedade contemporânea.

Em seus dois artigos motivados pelos escritos de Agamben você recorre a pensadoras contemporâneas. Que contribuições elas trouxeram?

O pensamento de Angela Davis não é só importante pela análise dos fatos inerentes à pandemia, mas também porque está sempre atenta ao Brasil, disposta a estabelecer um diálogo com os aspectos que nos aproximam dos Estados Unidos, como a atitude genocida dos presidentes dos dois países. Ela destaca o fato de o vírus intensificar problemas como a pobreza, a misoginia e o feminicídio. O isolamento social deixa mulheres numa vulnerabilidade extrema. Em algumas cidades houve aumento de 100% na taxa de feminicídios. Davis e Naomi Klein previram desde o início que isso aconteceria, uma vez que muitas mulheres passariam 24 horas por dia trancadas com seus abusadores e possíveis assassinos.

Klein me ajuda a pensar nos efeitos da pandemia neste mundo em que os ricos se tornam mais ricos – basta ver as últimas estatísticas – enquanto o vírus provoca seus efeitos mais cruéis e letais nos mais pobres. É o que ela chama de capitalismo do desastre, um sistema social que só faz sentido para 1% da população, enquanto promove a destruição da natureza, dos sistemas democráticos, da assistência social, da saúde e da educação.

 

No Brasil, a não gestão da crise do coronavírus pelo
governo federal deixa bem evidente que o desastre
é um projeto.

 

 

Judith Butler também examina a pandemia à luz das desigualdades. A crise expõe uma vulnerabilidade global, uma vez que todos os seres humanos estão sujeitos ao vírus e também porque o cotidiano é feito de compartilhamentos entre seres corporificados que podem contaminar uns aos outros. Ela fala em modos de compartilhamento recíprocos que mostram a interdependência entre todas pessoas e, por outro lado, sublinha a desigualdade entre os grupos. A abordagem que eu chamo de metafísica tende a perder de vista que os marcadores sociais tornam certas populações mais vulneráveis que outras. A filosofia precisa ser sensível a essas diferenças ou não terá muito o que dizer ao tempo presente.

Essa visão de interdependência seria o oposto do que você chamou, no caso da teoria agambeniana, de solilóquio?

O que eu vejo como solilóquio é a construção de um discurso filosófico que prescinde da contribuição dos colegas de outras áreas, como cientistas, médicos e sociólogos. As análises das três pensadoras que eu mencionei – Davis, Klein e Butler – têm maior possibilidade de capturar o tamanho das trevas do presente, parafraseando Agamben, porque estão atentas aos dados da realidade. Filósofos não produzem análise social sozinhos e precisam se municiar dessas informações se quiserem falar do tempo em que vivem. Para Davis elaborar sua tese de que o encarceramento é uma versão moderna da escravização, foi necessário conhecer análises sobre o sistema carcerário, a composição da população presa, as estatísticas de reincidência – estudos feitos por outras pessoas.

Nos últimos meses, você participou da criação do blog Mulheres na Filosofia, num momento em que se multiplicam iniciativas em torno do assunto. A que você atribui essa simultaneidade?

É um movimento muito interessante e animador que está acontecendo na filosofia, particularmente no Brasil. Há poucos anos houve uma tomada de consciência de que a filosofia é um campo marcado por um desequilíbrio de gênero violento: os homens são 73% dos que atuam na área, entre docência e pesquisa. Percebemos que isso é um problema, e não apenas de natureza social. Nenhuma área do conhecimento pode ser plenamente fecunda e criativa se guardar tamanha desigualdade. Nós nos reunimos na Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Mesmo em minoria, somos muitas e estamos em vários lugares do país. A rede permitiu que a gente se conhecesse e compartilhasse nossos projetos. Eu participei, com Carolina Araújo, Nastassja Pugliese e Gisele Secco, da criação do blog Mulheres na Filosofia, que está sediado na rede de blogs da Unicamp, voltada para a divulgação científica. O blog está estruturado em verbetes sobre filósofas que ficaram à margem do cânone e em posts sobre temas feministas. A intenção é que seja acessado dentro e fora das universidades, e está dando certo.

Que tipo de descoberta está acontecendo?

Nosso trabalho arqueológico comprova que, desde a Grécia Antiga, sempre houve mulheres fazendo e escrevendo filosofia, embora elas não sejam reconhecidas. Uma personagem tão extraordinária quanto inusitada é Cristina de Pisano, que nasceu em 1364 em Veneza e morreu em 1430. Ela deixou uma produção teórica e literária, uma reflexão filosófica que talvez nos permita dizer que foi a primeira a exercer a atividade profissionalmente. O que estamos descobrindo é que, seja pensando a metafísica ou os costumes, todas se dão conta, cedo ou tarde, de que têm diante de si um grande obstáculo social que bloqueia ou dificulta o exercício da função de filósofas. São obstáculos que se manifestam no preconceito de que a mulher não foi feita para pensar.


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(1) Comentário

  1. Excelente entrevista. As mulheres sempre pensaram e estiveram atentas ao que estava acontecendo ao seu redor. Ainda bem que hoje em dia, esse autorreconhecimento está mais vivo e presente, pois elas estão quebrando o muro do patriarcado a cada memento.

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