Voz psicanalítica, mais de 100 anos Loucos – Além de afeto e identificação – a construção de uma práxis

Voz psicanalítica, mais de 100 anos Loucos – Além de afeto e identificação – a construção de uma práxis

 

.
Em dezembro de 1896, Freud em carta a Wilhelm Fliess, afirma que a memória teria diversas inscrições, separadas em diferentes formas de apresentação. Essa ideia seria o que havia de novo em sua teoria. Pouco mais de 100 anos depois, em Novos-velhos-Années-Folles – Brasil, 2022-23 – o livro de Prado de Oliveira e Colabone nos lembra com quantas-tantas identificações e afetos, se faz uma psicanálise.

A pesquisa entre cartas, comentadores e documentos inéditos, o que poderia se encerrar em um exame dos afetos de Freud, é torcida como em fita de Moebius, com o contexto político e social do final do século 19 e início do século 20. A desorganização e reorganização – cronológica, conforme recomendação do autor – da correspondência da família Freud, propõe um panorama de como o evento particular e o público se entrelaçam, a partir das diversas funções, atuados pelas personagens de uma constituição familiar moderna – germe da teoria psicanalítica – o que não se encerra no círculo de parentesco. Algo como: do narcisismo das pequenas diferenças às Grandes Guerras.

Do ponto de vista de uma leitora psicanalista, propomos pensar que na presente obra, aos três pontos de fuga em perspectiva, é adicionada uma noção temporal, dando contornos topológicos à história da psicanálise, destacando a superfície não-orientável do sujeito inconsciente.

Estórias e história da psicanálise, que nos levam facilmente pelas vias da História do início do século 20 – pela história do mundo, e que se continuarmos a percorrer retorna no círculo interior de um psiquismo qualquer, uma “matraca cultural”, sintoma[s]. Porém não podemos nos deixar levar, pelo encantamento de escutar a estória de um sujeito e a transmutar no movimento de repetição da história, de uma teoria ou do mundo – ou mesmo se autorizar o pensamento inverso – sem antes pontuar as inscrições de memória, discursivas, os afetos e as contingências, que tornam uma vida singular e rara [o Diário]. Propriamente o que na prática clínica, faz da função analítica a práxis de uma ética.

No caso da escrita do livro, concebemos como parte do exercício que Prado de Oliveira e Colabone se propõe, quando desorganiza e [re]organiza a correspondência, dando a ver o entrelaçamento dos laços da família Freud, a construção da teoria e sua inscrição na ordem da Cidade – sempre através dos jogos de presença-ausência de diferentes significantes. O autor se permite interpretação e escrita, e por que não, uma posição – depois de ler-escutar através das cartas e do Diário, o analisando que não teve analista – escutando mais longe, a Mãe.

Estrutura da obra

Prado de Oliveira e Colabone nos apresentam as personagens e suas diversas posições-funções, nesse contexto estranho-familiar, demonstrando o caráter plural das identificações que constituem o psiquismo humano e também a psicanálise. Através de escansões que parecem permitir ao leitor, se perder nos tempos, espaços e personagens, a divisão em Álbuns de família, interlúdios e entreato, dão fôlego necessário para encarar o quão incestuoso podem ser os contextos familiares. As notícias do mundo de fora desse mundo restrito [e a escrita], propiciam o espaço que a simbiose entre as personagens e suas identificações esconderia a eles próprios e aos leitores inadvertidos.

A estrutura da obra de Prado de Oliveira e Colabone tem um começo, uma apresentação e uma introdução aos Années Folles. Passos cuidadosos em direção ao Álbum de família, onde estão as estórias, as personagens, os afetos, algumas teorias, e a Guerra.

Após a primeira incursão nesse Álbum, é necessária uma pausa sensível, Interlúdio Io Diário – com Sophie e seu bebê. E logo após, um Entreato, a cena dentro da cena, o Fort-da. Restará a questão, cena de quem, da criança, de sua mãe ou do avô que os observa? No Interlúdio II, mais uma pausa na cena teórico-familiar, em que o autor traz à tona notas escondidas. Nessas anotações, lemos Freud afirmar que considera a teoria pulsional insuficiente [p. 197]. Insuficiência para abordar o mal-estar na civilização, demasiado humano? Na ocasião, Freud afirma que o que lhe interessava era desenvolver até o fim o conceito de culpa. Reforça aos analistas presentes que o abandono da agressividade cria o sentimento de culpa e que então “cabe-lhes brincar [play] com essa ideia” da pulsão de morte, que para ele, era o maior avanço da análise até então [p.198]. Brincadeira retomada por diversos analistas, inclusive Jacques Lacan em sua ética do desejo.

A estrutura da obra demonstra a complexidade da trama familiar e em paralelo [mas nem tanto], a construção de uma práxis e suas consequências teóricas. Muito além do que se poderia objetar como ideologia, o campo psicanalítico se sustentou permeado por paixões ao mesmo tempo que rigor: empenho discursivo, crítico e teórico. Constituição da prática, e de escrita, sobre algo do que acontece nos trabalhos de transferência e nas transferências inclusive de trabalho daqueles que se aventuram a supor o desejo. Resta sempre questionar, o que constitui a práxis, a função analista, suas possibilidades e seus limites.

As filhas e a criança – Sophie, Anna e Ernst

A reprodução do diário de Sophie, compõe um singelo e sensível caderno de memórias. Notas investigativas de mãe curiosa sobre o nascimento e crescimento de seu filho, a criança, Ernst, que performaria a anedota de um dos pontos cruciais da teoria [e do psiquismo], a brincadeira, o Fort Da. Conforme Prado de Oliveira e Colabone, a brincadeira ou o brinquedo, que Freud afirma deixar para os analistas, ao final do seu empreendimento teórico, parece “residir no núcleo da psicanálise”, a pulsão de morte [p. 200]. Por trás da criança cresceu Ernest, que entre a Inglaterra [Fort] e a Alemanha [da] viveu os efeitos das suas perdas precoces. Duas das quais, a de sua mãe e de seu irmão mais novo, também afetaram o avô Freud, que as elaborou conforme possível, inclusive através de seu constructo teórico e analíticas. Em carta a Pfister, dois dias depois da notícia da morte de Sophie, Freud comenta absorto “A brutalidade sem véu da época” [p. 120]. Variando o tom, em outras comunicações a respeito dessa perda e a do neto Heinele [irmão de Ernst, morto em 1923], o inventor da psicanálise não teria muitas elaborações, para “superar a monstruosidade da morte de crianças antes da dos pais” [p. 122].

Anna Freud, filha, mas também, tia e Annálise, irmã da psicanálise, se ocupou da criança, participando da mistura de papéis e funções na família e também nas análises. As funções familiares, analíticas e a troca de confidências, se confundem, entre Freud, painalista e Anna, filhanalisanda, mas também em seu empenho e cuidados maternos com o filho da irmã falecida, sendo ao mesmo tempo, sua analista. Processo de análise sempre relatado ao pai-avô, que não perde uma cena da novela familiar-analítica. Algum despudor de olhar o buraco da fechadura, dos sonhos da filha. Aos olhos do autor, com o objetivo de sustentar a [re]criação do Nome da família e de escapar ao lugar de pária designado aos judeus da longínqua Galícia, em Viena.

Cartas e Nome

Prado de Oliveira e Colabone escrevem sobre a criação, [re]criação da família Freud e sobre a entronização de Sigmund. A família se cria e recria, através da escrita das cartas: “Freud transforma essas estranhas famílias formada por pobre comerciante mascate de 40 anos, expulso de Leipzig, irmão de falsários, cumprindo pena de prisão, já com filhos da idade da noiva, jovem de 20 anos, de ilustre família de rabinos, embora também com problemas com a justiça com a pura força do punho de escritor e a genialidade do inventor…” [p. 141]. O autor conta como mais tarde os filhos Anna, Ernest e Martin, entre outros levam o legado, “impõem e dão consistência ao nome Freud” [p.136]. A ascensão desses judeus da Galícia em Viena, passa pela suposição dos desejos dos pais de Freud, ou pelo menos pelo auspício do desejo materno sobre o futuro de Grande Homem para o filho Sigmund, Sig de ouro, para ela desde sempre.

Ler – se autorizar escrever

O livro também aborda a escrita de Além do princípio de prazer, de 1920.
O autor conta que o que ficou conhecido como pulsão de morte no texto freudiano é esboçado desde 1910 de diferentes formas em trabalhos de analistas da Sociedade como Wilhelm Stekel, Sabina Spielrein e Sándor Ferenczi. Além disso, lembra ainda, existiram muitas maneiras de abordar a escrita do Além, inclusive como uma espécie de “niilismo terapêutico”, típico das culturas de classe média vienenses, às quais Freud, judeu estrangeiro imigrado, tentara se conformar e ultrapassar em seu caminho de ascensão social. Nas cartas, Freud situa o Além como obra literária, enquanto Ernest Jones, Jacques Derrida, Jean Laplanche, Vladimir Granoff, Gilles Deleuze e Paul Laurent Assoun recomendam leituras paralelas de textos de Freud para abordar o Além. Todos parecem situar o autor do Além como “puro espírito pensante”, se distanciando de encarar o texto como produção de um homem, envolto em suas condições materiais e familiares, sobre o que portanto Freud insiste, sobretudo em carta à Lou Andreas-Salomé. Ora, o Além faz parte de um conjunto de textos escritos durante a análise de Anna Freud, todos implicando portanto a transferência e a contratransferência em jogo nesta análise.

Anna – metonímica: filha do pai – irmã da psicanálise – analisanda do pai – irmã de Sophie – tia de Ernst – analista de criança – analista de sobrinho – teórica – mãe? Annálise

Prado de Oliveira e Colabone questionam quem seriam as filhas para Freud? Quem seria Anna, que pretendia poder assinar Annafreud? Ou ainda, haveria um complexo de Siganna para Freud, um Velhomenina?! [p.154] Desde bebê os sonhos da filha foram tema de análise e assunto de família. O marco de 1918, quando oficialmente começa a análise de Anna com seu pai, e o de 1922 como término, seriam uma mera formalidade. Ainda entre 1929 e 1930, comentava em cartas, sobre novas sessões de análise entre eles.
Lou Andreas-Salomé, amiga da família e figura de destaque na construção do campo analítico, teria sido uma espécie de supervisora do processo, ao mesmo tempo que amiga e confidente de Anna. Seria possível conhecer boa parte do desenrolar desta análise apenas através da leitura da correspondência entre Andreas-Salomé e Freud desse período, assim como através da leitura da produção teórica de ambos. Aparecem sublinhados os enlaces entre vida familiar, social e escrita teórica.

Anna usou seu próprio caso na análise com seu pai como trabalho para fazer parte da Sociedade psicanalítica de Viena: “Fantasmas de surras e devaneios”. Pouco a pouco seus “fantasmas hardcore” foram substituídos por “belas histórias” e estas por produção teórica. Podemos ainda perguntar, qual quinhão de intimidade, Anna teve que expor, para ter espaço nessa Sociedade de pai, homens e Nomes?

A análise e a vida são pagas

Prado de Oliveira e Colabone afirmam que nessa constelação familiar, com aparente dificuldade em se separar, análise e psicanálise “tornam-se o nome de algo mais.” [p.185] De um amor entre pai e filha, sem o Fort? A ausência de Sophie, tão prematura, teria algo a ver com Anna na posição-função de filhanalisante? O enunciado será um grande homem”, fixado em Sig de ouro por sua mãe teria sido carregado pelo resto da família, Sophie, Anna, Ernest e tantos outros? O homem é carregado pelo dizer através do enunciado?

Ferenczi pondera

Ferenczi teria sido revolucionário o suficiente para abordar a pulsão de morte e ampliar seu sentido. Prado de Oliveira e Colabone relembram que o psicanalista propõe, já em 1929, “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte.”, Unwillkommene. Ferenczi assistira de perto o que acontecia na cena psicanalítica-familiar dos Freud e teria proposto clarificar o termo pulsão de morte, ao que Freud cala. Desde 1922, Ferenczi assinala os perigos da simbiose entre analistas e pacientes, versando sobre os riscos da identificação do analisando com o analista. Questão demasiado humana, nada além.

A última – o fim de festa em grande Depressão

Depois dos Années Folles, a Grande Depressão, e mais uma Grande Guerra. Compulsão à repetição? Muita especulação gera um aumento de tensão e o sistema explode. A Bolsa. Passa o estrondo da explosão, mas a crise e as sequelas na vida das pessoas continuam.

O Partido Nazista prepara no começo dos anos 30 sua ascensão ao poder. Freud e os seus conseguem fugir, como tantos judeus, ao mesmo tempo que perdemos seis milhões de pessoas nos campos de concentração. Prado de Oliveira e Colabone afirmam que não se trata então da criança mal acolhida e sua pulsão de morte, mas sim de homens e mulheres atuando mortes reais. “[…] morte pura, nua e crua, sem pulsão, só compulsão, repetição” [p. 211].

Alienação-Separação

Podemos nos perguntar sobre as próximas estórias da psicanálise e as posições que seus atores analisantes-analistas, assumirão nos cenários das novas épocas. Desde a necessidade das questões à lógica moderna até aos desafios diários de uma democracia precária, fica a pergunta: quais imagens e imaginários compartilhamos e que lutos eles impedem?

Prado de Oliveira e Colabone criam, recriam e recontam estórias a partir de leitura, pesquisa, afetos supostos e, estruturas incluindo uma boa pitada de humor. Dizem na criação a repetição, a recordação e a confusão se impõem. Movimentos circulares, bolero de Ravel.

Ana Claudia Ubinha Fattori é Analista em formação. Estação Psicanálise de Campinas, Forum do Campo Lacaniano, Região Metropolitana de Campinas e Instituto de Psicanálise, Clínica e Pesquisa.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

TV Cult