Vontade de nadar 

Vontade de nadar 
(Foto: Reprodução Banksy/ Arte Revista Cult

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.


“O que você entende por amor?”, perguntei à minha irmã caçula, Maxine. Ela respira fundo enquanto rodopia lentamente pelo quintal de nossos avós, debaixo do chuvisco tímido que tem sido frequente nesses dias de primavera. Em vez de responder, ela pergunta de volta: “Qual palavra vem na sua mente quando você pensa no mar?”.

Precisei de um tempo para pensar a respeito. Faz tanto tempo que não vejo o mar se estendendo a minha frente, tanto tempo desde que senti seus efeitos, que de repente me vi em certo esforço para encontrar a palavra ideal. Por fim, respondi: “Impressionante”. Maxine de maneira muito segura em si mesma, afirma: “Então é isso que você entende por amor”.

Confesso que, por um instante, me senti particularmente simplista na minha escolha de palavra, especialmente quando colocada no espectro do amor – mas não havia outra que me ocorresse. Curioso com a abordagem da minha irmã adolescente e sem contestar o fato de que eu havia feito a pergunta primeiro, questionei, então, qual seria a palavra que vem à mente quando ela pensa sobre o oceano. “Liberdade”, ela responde, “Quando vejo ou penso no mar, sinto liberdade plena, e acredito que o amor seja sobre isso. Liberdade para se mover na direção do que se difere de quem nós somos, liberdade no encontro com o outro que não sou eu, mas que também vive e compartilha do mesmo mar, do mesmo oceano”.

“Você não tem medo do mar?”, pergunto. “Sim e não”, responde Max, e continua: “Sim, há o risco de me afogar, e isso me dá um pouco de medo. Vivo tendo pesadelos em que me afogo. E não, porque, bem… É o mar. Vale a pena o risco”.

A busca pela definição, entendimento e compreensão do amor e do modo em que ele opera e age, no verbo, me acompanha já há algum tempo. Penso que se consigo assimilar o significado desse afeto a partir do olhar do outro, terei uma compreensão mais clara do paradoxo que ele representa e, esperançosamente, uma intenção mais sintonizada quando sair da minha boca um “eu te amo”.

Faz sentido que Max associe o amor com o mar, que por sua vez diz respeito à liberdade em sua percepção. Um filósofo como Nietzche diria que é besteira romantizar os elementos da natureza (o sol, o mar, a terra, etc) como se eles existissem para nós, ou melhor, como se devessem algo a nós – mesmo como figura de linguagem. No entanto, minha irmã não fala de um jeito como se o mar tivesse a obrigação de significar alguma coisa: ele apenas significa a partir de seu olhar mais contemplativo e ingenuamente sincero.

Amor, nos tempos que correm, se faz importante olhar. Mesmo a versão publicitária desse amor que gira em torno do “eu” e dos ressentimentos aflorados que, em muitos casos, chamamos de self love, merece atenção. É isso que amor precisa ser? Um espelho de quem nós somos, que concorda com todas as nossas inclinações, que diz o tempo todo o que queremos ouvir? O que a gente entende por amor é esse vazio que vem da escuta performática nas redes? Alguém que nos enche de coraçãozinhos até a tampa e nos enaltece exacerbadamente?

São tempos de negação, de distorção, é verdade. Se já estivemos melhor? Creio que não. Mas creio que hoje estamos experimentando algo de muito angustiante a partir de um turbilhão de crenças imperativas que tentam nos engajar numa visão de mundo limitada e, mesmo que eu nem precise dizer, narcísica. Se amor nos moldes românticos que se reproduziram na indústria cultural do último século não nos convence mais, tudo bem. Existe uma lógica para isso. Existem outras configurações nas relações que vieram a partir de leis que vingaram, movimentos sociais e políticos –  e por mais que alguns de nós tentemos nos defender do fato de que elas existem, enfim, elas existem.

Ouvir da minha irmã que liberdade é a palavra que designa o seu entendimento sobre amor, me traz uma espécie de alívio. Torço para que ela possa mergulhar profundamente no oceano, consciente de todos os riscos, mas com alguma suspensão do errado, do certo, do que não deve ser ou do que deveria ser. Suspendendo a si mesma, suas certezas, seu próprio senso. Tudo isso em nome de nadar. Que saudade.

Foram tantos meses imerso em mim, nas distrações e alienações, vagando pela estrutura e pelas áreas comuns dessa casa que, agora, aqui do quintal, as gotas modestas de chuva me trazem algum sentimento. Sentimento de calma. Mais ou menos um lembrete de que o mar estará lá quando eu voltar: não por mim, mas certamente como ponto de encontro entre eu e o meu beloved.

Danço no chuvisco com minha querida irmã – duas bobas que sabem o que querem dizer quando falam de amor.

Somos livres. E a vista é impressionante.

Lulu Mendes, 23, mora em São Paulo  é jornalista.

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