Vigilantismo e linchamentos digitais

Vigilantismo e linchamentos digitais

 

Quem tem o mínimo de vivência em plataformas digitais certamente já se familiarizou com práticas de assédio coletivo digital, como cancelamentos, importunação e exposição de pessoas. Por outro lado, quem estuda comportamentos sociais online já há algum tempo conhece e explora o conceito de vigilantismo digital (ou digilantismo) e o linchamento digital como uma das ações que dele decorrem.

“Vigilante” é um termo que, apesar de sua origem espanhola, foi incorporado à língua inglesa para significar alguma coisa bem diferente do nosso vigilante ou vigia que lhe dá origem. “Vigilantes” são pessoas que formam um grupo para reprimir e punir sumariamente, com as próprias mãos, quem cometeu algum crime, particularmente quando consideram que as vias legais e as organizações oficiais não querem ou não são capazes de fazê-lo.

Já o linchamento, que é o exercício da violência coletiva contra indivíduos que cometeram algo considerado criminoso ou imoral pelo grupo, foi a prática de vigilantismo mais usada no século 20, segundo a Wikipédia.

Sim, nós linchamos online

 

O vigilantismo digital é, portanto, o correspondente do vigilantismo na vida online. O linchamento digital é a prática de punição coletiva e, eventualmente, coordenada, que envolve tecnologias digitais e plataformas de mídias sociais. São em geral práticas de  motivação normativa (quer dizer, motivadas política ou moralmente) com o objetivo de punir alguém, principalmente, por alguma falha moral ou ação socialmente condenável.

O gênero de práticas de vigilantismo tem vários nomes e variados níveis de impacto sobre a vida dos punidos: desde a atribuição pública de culpa (blaming), passando pelos ataques mais duros de desmascaramento (debunking), pelo envergonhamento público (public shaming), o cancelamento e o linchamento digital, que consiste em destruir da forma mais completa possível a reputação de alguém, inclusive com consequências sobre a sua vida não digital. Isso sem excluir o desejo e a ameaça de morte, a exposição da vida privada e de documentos (doxxing) do acusado e de sua família, as pressões para demissão, o boicote e todas as formas possíveis de assédio.

Nota-se, além disso, os vetores do impacto sobre a vida da vítima. A coisa pode se restringir à vida online. O que já não é pouco contando o quanto da nossa imagem, reputação e networking dependem dos ambientes digitais, e considerando o enorme percentual da nossa vida que foi digitalizado. Noutros casos, entretanto, transbordam para a vida offline, afetando a família do acusado, causando demissões e entradas em listas negras, depressão, suicídio, para ficarmos em exemplos documentados. Além disso, porém, há frequentemente vetores em que as mídias digitais são os meios para se espalhar a denúncia, organizar as multidões e mobilizar o ódio que será descarregado fisicamente sobre uma vítima para um linchamento real. Conhecem-se inúmeros casos de linchamentos físicos praticados deste modo em toda parte do mundo.

Mas são duas coisas diferentes, de fato, a punição digital e o ataque físico mediado por mídias sociais.

Por fim, temos o cruzamento entre o digilantismo e a política identitária, quando a retaliação digital coletiva contra o presumido infrator moral ou legal se dá por razões identitárias. E ultimamente lincha-se muito por motivações morais identitárias, quando a alguém se atribui um crime ou pecado, em ato ou discurso, contra os valores do grupo. Identitários de esquerda não perdoam racismo, homofobia, machismo, misoginia, gordofobia etc., enquanto identitários da extrema-direita são particularmente sensíveis à pedofilia, à erotização precoce de crianças, ao apoio ao aborto, ao secularismo, à profanação, à ideologia de gênero, à doutrinação ideológica. Ou, melhor, ao que cada um dos lados decide que deve ser caracterizado nestes termos.

O fato é que, no meu turno de guarda e segundo a minha inteira discricionariedade, uma vez identificada a violação, passa-se a soprar apitos, a tocar cornetas e a dar o alarme, convocando a massa às armas e à retaliação digital.

Nem sempre há justiça nisso. Frequentemente há injustiça. Há cada vez mais injustiça.

Reuni em doze teses o que penso desse comportamento:

12 teses sobre linchamentos digitais

 

1. O linchamento digital (cancelamento, assédio coletivo) é um peculiar processo em que só duas coisas são necessárias: a acusação e a punição. Acusações não precisam ser verdadeiras, apenas verossímeis. O acusador, o juiz e o carrasco são a mesma pessoa ou coletivo.

2. Não é necessário ter havido um fato ou que ele tenha acontecido conforme diz o acusador, não há disputa aceitável sobre a interpretação do fato, não há defesa, todo crime é hediondo e merece a punição máxima. Nada que o acusado diga fará qualquer diferença.

3. Em um processo de linchamento, uma vez que se acuse alguém de X (racista, pedófilo, misógino, homofóbico, cristofóbico etc.), não importa mais se alguém é ou não X. O pressuposto kafkiano do processo do linchamento é que todo X negará veemente ser X e que isso só prova que ele é realmente X, portanto, culpado.

4. Para o linchador não há violência, brutalidade e desumanidade no seu ato; há desumanidade, brutalidade e violência na opressão que sofre a minoria Y que o linchador acredita estar protegendo. Só o opressor é violento, o vingador não.

5. Se o alvo da turba reclama, é só o mimimi de quem não está acostumado a estar deste lado do chicote. Violência é a que eu sofro, a que eu inflijo é Justiça. E se não foi você quem historicamente me oprimiu, não importa, deve ter sido algum parente ou antepassado seu.

6. O linchador sempre tem a consciência tranquila e se sente um guerreiro da Justiça. Não importam os efeitos do ataque na reputação, na vida e no futuro do justiçado, o linchador sempre se sente moralmente superior ao atacado.

7. Todo linchador faz parte de uma “comunidade moral”, a turba que convoca ou a que se integra nas expedições punitivas. O linchamento não é atividade solitária, o linchador sozinho é covarde, mas vira um monstro de coragem e infâmia nas matilhas digitais.

8. O linchador sente-se sempre protegendo o coletivo dos seus inimigos jurados, não importa se machismo, pedofilia, misoginia, promiscuidade, homofobia, racismo, ideologia de gênero, colonialismo, doutrinação ideológica. O linchador, de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, é sempre do bem.

9. Educação e informação política não tornam ninguém menos propenso a linchar. Já o nível de envolvimento com uma causa (ativismo) ou com uma celebridade (fanbase) indicam maior propensão ao linchamento e ao vigilantismo punitivo. O linchamento se alimenta de amor.

10. O linchado de hoje pode muito bem ser o linchador de amanhã, pois eu não ponho em questão a imoralidade do ato coletivo de linchar, apenas a injustiça do linchamento de que fui vítima. Você defende esta semana uma pessoa acusada injustamente de racismo, e na próxima Blitzkrieg identitária você possivelmente a encontra linchando alguém acusado (quiçá injustamente) de misoginia. O linchamento dos outros é sempre justo.

11. Séculos de ressentimentos, indignação moral e opressão precisam ser descontados em dois dias sobre uma pessoa que terá que responder por tudo isso. Dane-se se isso não muda o mundo e estraçalha uma pessoa, o importante é que representou uma tomada pública de posição, um statement.

12. Depois de iniciado um linchamento, não se meta entre a turba e o “ser horrendo” cujo sangue ela deseja, por mais injustificado que seja o ataque ou mais desproporcional que seja a pena atribuída. Caso contrário será desmoralizado publicamente como um “passador de pano” ou isentão, e, em seguida, lhe atribuirão todos os predicados pelos quais aquela pessoa está sendo sentenciada. Um defensor de um gayzista, de uma abortista, de um gordofóbico ou de um racista certamente não está fazendo isso por considerar a acusação e a punição injusta, mas por ser ele próprio um gayzista, abortista, gordofóbico ou racista.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

TV Cult