Vida corrida, não é?

Vida corrida, não é?

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setembro de 2021 é “manifestação”


 

Não fui às ruas, somente saí para votar no congresso do partido. Não me senti com segurança para protestar. Covardia? Muita gente não teve escolha e continua enfrentando a pandemia na pele e o pandemônio no pelo. Dou-me o direito de me manifestar pelo alter-ego ou outro ego, uma crônica ficcional. Posso?

Ela resolveu brincar com a escrita falada comigo, meio a esmo que não resulta textos agradáveis, sei, mas é inusitado. A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José? Se foi lembrança da coincidência com meu nome, não sei, isso perguntamos todos, em eterna busca pela resposta máxima da existência, que não é 42, nem a pergunta cristã do que é a verdade, nem a filosófica de saber de nada saber. O ponto de interrogação por si só já é uma afronta que você me faz, disse, ninguém usa mais, copiando e imitando o Saramago; e fica por conta do interpretador de emoções virtuais se é afirmação, indignação ou a pergunta. Ela não gostou, mas não tem bonde há muito tempo, pensei e logo dispensei pra não quebrar o lampejo de convivência.

Podia começar a conversa, você me responde, mas não quero falar, fique quieta então, só eu falo e você escuta e eu vou dando os detalhes de meus desejos, você cumpre, tá louco, é, não sou escrava sexual, tava pensando na discussão filo… que filo o que, nada falo, saio, tchau, espere, volte, vá se danar. Dancei nessa tentativa de despontuação.

Ela sempre me tratou assim e não atende os chamados pelo google meet, nem zoom, achei que tinha mudado o número do zap, me ferrei e afogo as mágoas no álcool gel, o que sobrou. Ela ligou, podia ser de engano, o zap não mudou então, achei que era pra me falar alguma coisa, foi pra pedir o travesseiro de volta de que ela gosta e não dorme sem ele, achei que era por minha causa, não.

Cachaça da área alienígena, vinho Periquita e vodka medicinal bielorrussa. Resolvi comprar tudo de novo, renovei o estoque de álcool gel. Fiquei curado da pandemia, não tenho pra onde sair, pois, como disse a repórter de máscara na TV pra falar dos palavrões com F* do presidente: prejudique-se! Essa poesia perguntando do José e todos nós nos F*, nos prejudicando…

A poesia nunca serviu pra nada e não ajudou a convencê-la a ir morar comigo, foi na base da conveniência, ela achava que eu não tinha interesse sexual e eu morria de tesão. Ela pensou que era porque ficava mais fácil de participar da manifestação antifa na praça central, quando lançavam o gás e botavam os cavalos pra cima de nós era fácil correr pelo beco e entrar pela porta de trás do predinho, o apê era no terceiro andar, a escada era apertada, não dava pra passar com a bicicleta.

Depois que falei que queria transar ela me bateu, jogou a garrafa de Periquita, poupou a cachaça, e falou palavrões dos anos 1970 que eu não escutava fazia tempo. Explicado o bonde.

Hoje ela voltou porque esqueceu alguma coisa, não era o travesseiro, mas disse que não, eu não ia tocar nela e falei que tudo bem, ela não acreditou e me bateu de novo.

No domingo foi outra passeata e chegamos mais cedo, os milicos lá estavam e começamos a apanhar antes de começar os discursos. Tentamos voltar para o apê, mas o beco foi interditado, eles descobriram, será, ela me disse que a ‘inteligência militar’ estava atuando, eu falei que o termo era um paradoxo e uma contradição em si, ela fez que não entendeu, demos a volta, peguei na mão dela para irmos mais rápido, a saída para a outra avenida estava aberta, seguimos por lá, pegamos um ônibus e descemos três pontos pra frente. Esperamos duas horas sentados numa praça sem pombos e ia tentar um pedido de desculpas, ela me beijou e acho que namoramos, por falta de opção.

A passeata foi frustrada, a repórter da TV de máscara assim falou, e conseguimos dormir juntos e sozinhos no escuro, sem cachaça, sem vela, sem sexo. E agora?

 

 

Adilson Roberto Gonçalves, 54, completamente vacinado,
pesquisador científico, membro de academias literárias e
institutos culturais.

 

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