As veias abertas da violência no campo

As veias abertas da violência no campo
Em 1996, 19 trabalhadores sem-terra foram mortos no massacre de Eldorado dos Carajás (João Roberto Ripper/Arte Andreia Freire)

 

A injusta distribuição das terras e dos recursos naturais do país são um problema histórico contra o qual os povos tradicionais e camponeses têm lutado ao longo dos séculos.

Nessa luta pela vida, pela democratização das riquezas, contra a desigualdade, a miséria e a fome, desde tempos imemoriais esses povos sofrem agressões do latifúndio, de empresas rurais, da pistolagem e dos agentes de segurança pública.

Apenas a partir do período da redemocratização, entre 1985 e 2015, cerca de 1700 pessoas foram assassinadas no campo em decorrência de conflitos agrários.

O processo de degradação da democracia vivenciado nos últimos anos, com o retorno do poder às mãos das velhas e novas oligarquias e com o avanço do agronegócio para novas fronteiras agrícolas, criaram terreno fértil para a expansão e o agravamento da violência no campo, vitimando, como há muito tempo não se via, os que resistem e batalham por dignidade.

Agravando ainda mais o quadro da questão agrária, no Congresso Nacional a chamada bancada ruralista busca a aprovação de leis que acobertam o trabalho escravo, retardam ou impedem a demarcação das terras das comunidades tradicionais, liberam o uso indiscriminado de veneno na agricultura, atacam os direitos trabalhistas e previdenciários dos camponeses, promovem a destruição ambiental e autorizam a concentração de terras nas mãos do capital estrangeiro.

Ao largo da realidade de crescimento da violência, da desigualdade e da injustiça social, cresce também a velha estratégia de estigmatizar esses trabalhadores e contra eles o discurso de ódio vem sendo veiculado na sociedade como arma de manipulação do imaginário popular e para angariar apoio político.

“Quero que matem esses vagabundos do MST”, teria declarado recentemente o candidato do PSL à presidência.

É, de fato, o que vem acontecendo.

As elites agrárias brasileiras, sob o manto da impunidade, mais uma vez já não demonstram qualquer pudor e sentem-se autorizadas a ceifar a vida dos pobres do campo.

De acordo com dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra, somente em 2016 foram assassinadas 61 pessoas em conflitos agrários.

No ano de 2017, a violência tornou-se ainda mais intensa e assustadora. Em abril, quando o Massacre de Eldorado dos Carajás completou 21 anos, nove camponeses foram torturados e assassinados em Colniza, Mato Grosso. Em Minas Gerais, o trabalhador rural Silvino Nunes Gouveia foi morto com dez tiros na porta de sua casa e em Viana, Maranhão, 13 indígenas foram gravemente feridos pela ação de jagunços contratados por latifundiários.

No total, no ano de 2017, somam-se 71 casos de assassinatos no meio rural, conforme o relatório Conflitos no Campo Brasil 2014, da Comissão Pastoral da Terra.

Nosso passado de lutas, de resgate da dignidade e de memória de indignação contra esses crimes não nos valeu.

O abolicionista Joaquim Nabuco, em célebre discurso publicado em 1884, já vaticinava de que nada adiantaria acabar com a escravidão se permanecesse intacta a estrutura fundiária que a sustentava.

Desde então, milhões de trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro são obrigados a viver em condições precárias de vida, migrar para outras regiões ou reivindicar coletivamente a política pública de reforma agrária, constitucionalmente estabelecida.

Contudo, o Brasil segue sendo um dos países com maior concentração fundiária do mundo e a herança inevitável foi o retorno aos tempos arcaicos, com a perpetuação de nossas raízes escravagistas, antidemocráticas e violentas.

A conclusão a que chegou José Gomes da Silva, há quase três décadas, no livro Buraco negro: a reforma agrária na constituinte de 1987-88, permanece atual: a questão agrária no Brasil é um desperdício de terras e de homens.

Enquanto essa realidade não se altera, porém, não podemos deixar de denunciá-la e combatê-la.


GIANE AMBRÓSIO ALVARES é advogada, membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas e mestre em Processo Penal pela PUC-SP


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