A universidade punida por crime de não adesão à ideologia dominante

A universidade punida por crime de não adesão à ideologia dominante
Manifestação de alunos da UFBA, em 6 de maio de 2018, contra cortes nos orçamentos (Foto: Reprodução/Mídia Ninja)

 

Quem me acompanha por aqui sabe que não costumo falar de mim nem de pautas que me afetam pessoalmente. Por outro lado, acho que não seria correto deixar de falar de um evento ou circunstância política importante para o país apenas porque o acompanho mais de perto e sou afetado por ele. Digo isso porque hoje quero falar sobre o reflexo dos cortes e contingenciamentos de recursos do ensino superior público brasileiro, realizados pela administração Bolsonaro, a partir do caso da UFBA, onde trabalho há trinta anos. Bolsonaro, Weintraub e Paulo Guedes, os responsáveis pelas providências, falam em medidas de austeridade motivadas pela ausência de caixa do governo, mas haverá razão quem falar de medidas punitivas de matriz puramente ideológica, se considerarmos a retórica adotada, desde as primeiras medidas implementadas, pelo presidente e por seus dois ministros da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez e Abraham Weintraub. 

Aliás, a fábrica de punições e retaliações à universidade pública federal, por alegados crimes de divergir das e desafiar as crenças ideológicas dos vencedores da última eleição presidencial, funciona em moto contínuo desde o segundo mês do mandato do atual ocupante da presidência da República. Nas fantasias bolsonaristas, a universidade é um antro de comunistas interessados basicamente em inocular o socialismo no sistema linfático dos estudantes; é um espaço reservado exclusivamente a hippies, feministas, homossexuais, cotistas e praticantes de orgias e de ateísmo, em que os alunos passam o dia inteiro gastando o dinheiro do contribuinte não estudando, como deveriam, mas lendo Gramsci, fumando maconha, tirando a roupa e fazendo sexo; é a toca onde moram e se escondem os professores esquerdistas, doutrinadores ideológicos, que fingem ensinar e fazer ciência, mas apenas produzem doutrinas erradas e dados falsos para defender coisas inaceitáveis como a Terra é redonda, vacinas não causam autismo, as identidades sexuais decorrem de construção social e não apenas de determinação biológica, a Bíblia não é um livro de ciência que descreva rigorosamente o mundo, mulheres têm a mesma capacidade e os mesmos direitos que homens, há aquecimento global ou aumentaram as queimadas na Amazônia

O propósito dessas fantasias mal-intencionadas é promover a difamação da ciência brasileira e da universidade pública e estimular o ódio social de onde resultará o apoio às medidas punitivas da administração Bolsonaro e às suas intenções de reformar completamente o financiamento e o controle das universidades federais, por meio desse projeto lamentável que é o Future-se.  

Vejamos o caso da principal universidade federal da Bahia. A UFBA é uma universidade de porte considerável, com quase 46 mil estudantes de graduação (39.795) e mestrado/doutorado (6.172). Só para comparação, a instituição de onde saem os pauloguedes, a Universidade de Chicago, tem 14 mil alunos, enquanto a universidade que lustra (mal) os sérgio moros da vida, Harvard, tem 23 mil. 140 mil brasileiros tentaram entrar na UFBA em 2018, mas só houve 9 mil vagas disponíveis. 3.400 novos profissionais foram titulados e entregues à sociedade no ano passado. 

Em um mundo normal, os 140 mil brasileiros que precisam de vagas no ensino superior no estado da Bahia todo ano deveriam ser acolhidos nas universidades federais, pelo menos em sua maior parte, mas nós consideramos normal que apenas 6% possam ser assimilados. Mas o pior é que o governo acha que é certo e justo piorar tudo para aqueles que conseguem passar pelas rigorosíssimas peneiras que levam às pouquíssimas vagas das universidades pública. 

Só como exemplo, na semana passada, todos os controles remotos de ar condicionados das salas de aula, gabinetes de professores, salas de reuniões e lugares de trabalho dos funcionários foram recolhidos e guardados a chave para que não pudessem ser ligados. Em alguns casos, disjuntores foram desligados. Com as temperaturas fresquíssimas de Salvador, o trabalho e o ensino na universidade se tornaram uma tortura. Cursos de extensão universitária foram proibidos à noite e aos fins de semana. As luzes devem ser desligadas em sua maioria às 18 horas. Como a vigilância noturna foi reduzida ao mínimo, a vida dos estudantes dos turnos da noite agora é na penumbra, no calor e no perigo. Os funcionários terceirizados da limpeza também foram reduzidos e a universidade se encaminha para voltar ao estado de precarização dos governos Sarney, Collor e FHC. A razão de tudo isso, são os cortes e contingenciamentos que Weintraub está dizendo nos jornais que não existem nem afetam coisa alguma. Se continuar assim, em breve teremos que fazer o que já fiz em pleno governo FHC: comprar assentos sanitários para os banheiros da faculdade com dinheiro coletado dos estudantes. 

Agora pegue esse cenário e o multiplique por todos os estados da Federação. O contraste entre a imprescindibilidade das universidades federais e o estado de precarização e caos produzido em apenas alguns meses da gestão Bolsonaro/Weintraub é um grito de desespero. Pode a Bahia sobreviver sem a UFBA? E sem a UFRB? Sobrevive o Pará sem a UFPa, ficará de boa o Paraná sem a UFPR, o Rio Grande do Sul sem a UFRGS, o Piauí sem a UFPI, o Rio sem a UFRJ e a UFF? Pela passividade de tantos e a cumplicidade de alguns com as artimanhas e a retórica dos dois ministros que decidiram acabar com a universidade pública federal, Weintraub e Guedes, parece que sim. 

Nem vou aqui mencionar os cortes do financiamento da pesquisa e do fomento à formação e estudantes de mestrado e doutorado, que não teve precedentes nem no governo militar. Antes, como os militares da ditadura tinham um projeto nacionalista autêntico, deram todo o apoio possível à pesquisa brasileira e foi uma época de ouro do financiamento e do fomento, embora a repressão política fosse um fato. Mas Bolsonaro não é militar. Sua carreira militar foi um fracasso. O militarismo de Bolsonaro se restringe a gostar de armas, autoritarismo, tiro, porrada e bomba. Fosse militar das Forças Armadas, entenderia a importância estratégica da ciência e do ensino superior brasileiros para a autonomia e o desenvolvimento do país, e não se entregaria a esse projeto absurdo que inclui ofender cientistas, desqualificar a pesquisa brasileira e destruir a universidade com base puramente em premissas ideológicas delirantes da seita que lidera.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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