Uma reflexão sobre a corrupção

Uma reflexão sobre a corrupção
O ex-governador de Mato Grosso Silval Barbosa (Arte Revista CULT)

 

No contexto das espetaculosas “delações premiadas” desponta uma cena recentemente veiculada nos meios de comunicação na qual deputados recebem dinheiro vivo no gabinete do ex-governador do Mato Grosso. Alguns dos que assistem a cena olham de boca aberta, perplexos, como se fosse uma obscenidade. Outros tantos, de algum modo acostumados ao pior, percebem o momento como mais uma dessas imagens que se naturalizaram, ou seja, fazem parte da vida, são comuns e não tem nada de surpreendente. Há até quem, pensando que essa seja uma regra do jogo político, pensa em fazer o mesmo caso tenha chance.

O conceito de obscenidade aplicável a essa cena nos faz pensar no modo como o dinheiro comparece nela. Há uma mala, como se nas cenas envolvendo esse tipo de corrupção ultra abjeta uma mala fosse sempre necessária. A corrupção em cena aparece como mais um “crime da mala” em que o corpo a ser oculto é a dignidade. Pois bem, há uma mala e o dinheiro não cabe nela, assim como de algum modo a cena não cabe em nossa cabeça.

O “obsceno” da cena é aquilo que vem à tona, não apenas o que se mostra, mas também aquilo que chama a atenção: é aquela parte do dinheiro que não cabe na mala. Aquele excesso, aquele “demais” para o qual não estamos preparados. Analogamente, o sexo exposto por meio de um excesso, aquele que não cabe em uma tela, tal como a clássica imagem de um coito usada explicitamente em filmes pornográficos. Mas não é um exagero colocar a analogia com a merda, um objeto escatológico que tem um destino específico em nossa cultura civilizada.

Pensemos nas coisas que fazemos sozinhos, às escondidas e com o fundamental consentimento de todos para esconder-se. Não é verdade que o cleptomaníaco rouba pequenas coisas pelo prazer de fazer algo escondido, assim como há quem se alimente, fume ou beba às escondidas, mais pelo prazer de esconder-se do que pela possibilidade de obter um suposto prazer com aquilo que nos parece, a nós, ingênuos, o seu objeto de prazer?

Mala

Na presença da mala, vemos o lado perverso, digamos assim, de um prazer que beira a felicidade: o do dinheiro fácil. Quem nunca sonhou em ganhar na loteria? Por outro lado, o dinheiro fácil não está ao alcance de quase todas as mãos em nosso sistema? Quem, por exemplo, hoje em dia não se encontra endividado desde que vive na ilusão do dinheiro fácil que vem com o uso do cartão de crédito?

Coloco essa questão desse modo, pois me parece importante perguntar em que sentido o dinheiro afeta nosso senso de realidade?

Não seria o capitalismo – esse jogo de poder que vai do dinheiro concreto ao capital abstrato – um joguinho de algum modo infantil por meio do qual cada um alcança o valor necessário para colocar no seu próprio cofrinho? Ora, o cofrinho é uma metáfora do desejo. E o desejo diz de nós mesmos.

Não é isso que também nos constrange quando vemos o dinheiro que não cabe na mala? A mala que, de algum modo, é o cofrinho? Não é esse dinheiro que nos constrange quando lembramos que um dia ele também não coube na cueca?

A mala é pequena para o dinheiro que se pode colocar nela, enquanto que o cartão de crédito é imenso e nele cabe todo um dinheiro que não existe. Mas digo isso apenas para que possamos pensar mais, e pensar juntos, e com calma.

Desonestidade

Nosso senso de honestidade tem a ver com a ideia de transparência e clareza. Mas isso deve ser analisado com calma. Por que, se seguirmos com essa ideia veremos que, no mais íntimo, somos todos de algum modo desonestos, na medida em que escondemos o lado escatológico de nossas vidas, aquele que não deve ser visto como não devem ser vistas as cenas obscenas. Mas por que será que elas são mostradas?

A estética burguesa que agrada a todos administra o que deve ser mostrado e o que deve ser escondido. O mundo da decoração, da moda, é um mundo de cuidado com as superfícies, de acobertamentos, de fachadas. Esconder o que está corrompido é o nosso modo de suportar o corrompido. De algum modo, é também a forma de autorizá-lo. Afinal, aquilo que se mantem oculto, ou que é feito no lugar convencional, não tem nada demais.

(Quando fazemos selfies sorrindo (existiriam selfies sem sorrisos e sorrisos em selfies que não sejam falsos?) estamos investindo na lógica da fachada. Por isso, há quem se constranja, quem peça desculpas antes de tirar uma fotografia dessas, mas mesmo assim, vai lá, afinal quem não “faria o mesmo se tivesse chance”?)

Talvez o cartão de crédito faça parte dessa desonestidade essencial, que nos faz consumir e gastar pelo prazer – ou seria dever? – de contribuir com a fachada na qual sempre investimos muito. Investimos em não parecer tão pobres, tão feios, tao velhos, tão cansados, tão doentes, tão deprimidos, tão infelizes.

Investimos também em não parecer tão corruptos.

Costumamos julgar moralmente a corrupção, quando deveríamos refletir sobre ela em pelo menos três campos: no nível ético, no nível político e no nível psicanalítico. Nosso senso moral mais geral e inicial, o que chamamos de senso comum, nos diz que a corrupção é uma coisa péssima e que não deveria existir. Não há como discordar dessa idealização. Fato é que a corrupção existe, ela é mais concreta do que podemos imaginar e é verdade que não pode ser eliminada totalmente.

A corrupção se apresenta para alguns como o próprio mal radical, aquele que em seu fundo, promove a destruição de tudo. Para outros ela é apenas o mal banal, aquele que todos praticam e que permite manter as coisas como elas estão.

Para além desses extremos, fato é que a corrupção, que implica a instância moral e ética de nossas vidas, faz mal à política. Desmontar a equação que aproxima política e corrupção é essencial e isso só será possível se aproximarmos ética e política por meio de uma profunda transformação na cultura da desonestidade burguesa que implica uma estética e uma moral. Que nos faz esconder tudo o que convém e interessa e mostrar com os mesmos objetivos.

Guerra à corrupção

A questão está em aprender a ver melhor o que se encena para nós. O que realmente se esconde quando todos sabemos que às escondidas fazemos coisas que devem, por acordo tácito e convenção social, ficar escondidas?

Nesse contexto, a corrupção, em seu momento mais escatológico, não é diferente da guerra à corrupção. Se há alguma diferença ela está em que a última é a fachada que se coloca contra a primeira e assume o seu lugar escondendo-se novamente. Sabemos que a “guerra à corrupção” é uma guerra corrupta (haveria alguma guerra que fosse menos ou mais que isso?) que destrói numericamente mais dinheiro do que a corrupção naturalizada. E, por isso mesmo, sabemos que a corrupção venceu por meio de sua guerra, mas apenas porque se apresentou como a forma moral da estética burguesa: como uma fachada. E se a fachada é desonesta, a guerra contra a corrupção é ainda mais desonesta.

Mas ela faz parecer que os corruptos não são tão corruptos. O valor moral que se consegue com a guerra à corrupção não tem igual. Vide o grupo que depôs Dilma Rousseff que podia ter mil defeitos, mas não o de ser corrupta. Como exceção à regra, ela deveria ser eliminada.

Na televisão

A televisão, aparelho voyerista por excelência, sobrevive da transformação da cena em obscena, do que deveria ficar oculto e, de repente, deve ser mostrado. Mas infelizmente a televisão é ela mesma um dispositivo ideológico-mercadológico que ao transformar imagens em mercadorias, escolhe aquilo que quer vender, sob a fachada de “o que vende mais”. Por isso, nem toda corrupção é mostrada, apenas aquela que convém. Perguntemos sobre o que convém, sobre o que interessa, e teremos portas abertas para pensar melhor.

A atual fixação na corrupção – à qual somos teleguiados – nos mostra que talvez estejamos realmente esquecendo alguma coisa. Que talvez haja algo ainda mais obsceno, mais oculto e, portanto, mais comprometedor em toda essa conversa sobre corrupção que se espalha pelo dia a dia. Não estaremos escondendo alguma coisa ao mostrar demais? Não haverá, por outro lado, algo debaixo de nosso nariz que não conseguimos ver?

Poder que corrompe e poder que não corrompe

Nesse momento em que a corrupção continua sendo o núcleo de um verdadeiro sistema da cultura política – e do todo da cultura – torna-se interessante e mesmo urgente refletir sobre ela. Digo isso pensando que não deveríamos perder de vista esse tema nesse momento em que precisamos tanto entender o poder como sistema (no caso, o sistema capitalista em sua fase atual, a neoliberal) da corrupção, ao mesmo tempo que não podemos deixar de lado a questão igualmente séria sobre o modo como o poder nos captura nos corrompendo e assim transformando-nos em “corruptos”. Ou seja, como não se tornar um “corrupto” torna-se uma questão para muitas pessoas, ainda que não seja uma questão para todos. Não gostaríamos de viver em sociedade para além desse estado de coisas?

Por outro lado, não podemos colocar as coisas dessa maneira sem antes perguntar de que poder estamos falando. Quem disse que o poder corrompe? A falta de poder não levaria igualmente à corrupção? A corrupção não poderia ser, na verdade, a deturpação do poder?

Ora, aqueles que perceberam que a falta de poder também corrompe (as mulheres e as demais minorias políticas que são em geral maiorias populacionais), resolveram aderir a processos de “empoderamento”. Essas minorias tentam realizar um poder que não corrompe. Não fazem a “guerra contra a corrupção”, ao contrário, promovem a “luta” por direitos que, a meu ver, é só o que pode enfrentar sincera e honestamente a corrupção em todos os seus sentidos.

Para pensar mais

Ora, a história do poder se confunde com a história da corrupção no sentido de que todo poder tem algo de destrutivo, de que todo poder obedece em alguma medida ao princípio do benefício próprio enquanto não for transformado em poder democrático capaz de sustentar direitos fundamentais.

O mesmo podemos dizer da história do Brasil, da corrupção da vida pela escravização, da corrupção da política pela oligarquia, pela plurocracia e pela atual “cleptocracia”. Nossos caminhos são os mais travados, historicamente falando. Desde o genocídio dos povos ameríndios até a naturalização da popular filosofia malufiana, a filosofia do rouba-mas-faz, a corrupção ganhou um estranho lugar nobre na ideologia conservadora e exploradora. Trata-se de mais uma dessas palavras manipuladas conforme interesses. Hoje, poderíamos falar de uma espécie nova, a do “homo corruptus” que veio a substituir o homo sapiens e ficaria tudo bem em nossa atual mentalidade pouco questionadora. Mas isso seria pouco e seria cair na armadilha de continuar naturalizando a corrupção e ajudando a manipulá-la.

Mas é fato que existem muitas formas de nos relacionarmos à corrupção. Atualmente, todos nós estamos envolvidos com ela por ação, omissão ou desconhecimento do que ela possa significar. Isso quer dizer que a corrupção se tornou um universal, problema para filósofos por um lado, mas também para cada um que ainda tenha algum senso de cidadania e de preservação de sua própria dignidade e da dignidade da nação contra as perversas ideologias dominantes que corrompem a inteligência e a alma de cada um e destroem assim, o que poderíamos construir como o bem comum.MA

(2) Comentários

  1. Os textos de Márcia confirmam Pondé.
    “A história do Brasil do PT”
    Luiz Felipe Pondé
    18/04/2016
    Mesmo após o teatro do impeachment, a história do Brasil narrada pelo PT continuará a ser escrita e ensinada em sala de aula. Seus filhos e netos continuarão a ser educados por professores que ensinarão esta história. Esta história foi criada pelo PT e pelos grupos que orbitaram ao redor do processo que criou o PT ao longo e após a ditadura. Este processo continuará a existir. A “inteligência” brasileira é escrava da esquerda e nada disso vai mudar em breve. Quem ousar nesse mundo da “inteligência” romper com a esquerda, perde “networking”.
    O PT e associados são os únicos agentes na construção de uma cultura sobre o Brasil. Só a esquerda tem uma “teoria do Brasil” e uma historiografia.
    Esta construção passa por uma sólida rede de pesquisadores (as vezes, mesmo financiada por grandes bancos nacionais), professores universitários, professores e coordenadores de escolas, psicanalistas, funcionários públicos qualificados, agentes culturais, artistas, jornalistas, cineastas, produtores de audiovisual, diretores e atores de teatro, sindicatos, padres, afora, claro, os jovens que no futuro exercerão essas profissões. O domínio cultural absoluto da esquerda no Brasil deverá durar, no mínimo, mais 50 anos.
    Erra quem pensa que o PT desaparecerá. O do Lula, provavelmente, sim, mas o PT como “agenda socialista do Brasil” só cresce. O materialismo dialético marxista, mesmo que aguado e vagabundo, com pitadas de Adorno, Foucault e Bourdieu, continuará formando aqueles que produzem educação, arte e cultura no país. Basta ver a adesão da camada “letrada” do país ao combate ao impeachment ao longo dos últimos meses.
    Ao lado dessa articulada rede de agentes produtores de pensamento e ação política organizada, que caracteriza a esquerda brasileira, inexiste praticamente opção “liberal” (não vou entrar muito no mérito do conceito aqui, nem usar termos malditos como “direita” que deixam a esquerda com água na boca).
    Nos últimos meses apareceram movimentos como o Vem Pra Rua e o MBL que parecem mais próximos de uma opção liberal, a favor de um Brasil menos estatal e vitimista. Ser liberal significa crer mais no mercado (sem ter que achá-lo um “deus”) e menos em agentes públicos. Significa investir mais na autonomia econômica do sujeito e menos na dependência dele para com paternalismos estatais. Iniciativas como fóruns da liberdade, todas muitos importantes para quem acha o socialismo um atraso, são essencialmente incipientes. E a elite econômica brasileira é mesquinha quando se trata de financiar o trabalho das ideias. Pensa como “merceeiro”, como diria Marx. Quer que a esquerda acabe por um passe de mágica.
    O pensamento liberal no Brasil não tem raiz na camada intelectual, artística ou acadêmica. E sem essa raiz, ele será uma coisa de domingo a tarde.
    A única saída é se as forças econômicas produtivas que acreditam na opção liberal financiarem jovens dispostos a produzir uma teoria e uma historiografia do Brasil que rompa com a matriz marxista, absolutamente hegemônica entre nós. Institutos liberais devem pagar jovens para que eles dediquem suas vidas a pensar o país. Sem isso, nada feito.
    Sem essa ação, não importa quantas Dilmas destruírem o Brasil, pois elas serão produzidas em série. A nova Dilma está sentada ao lado da sua filha na escolinha.

  2. Caramba, faz tanto tempo que não leio nada da Márcia Tiburi – aliás, deixei de ler desde que ela foi para o Saia Justa – que não imaginava o quanto ela continua coerente. Bom texto, como sempre, creio.

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